domingo, 29 de outubro de 2017

PAPÉIS DATADOS


Conheci o pintor Artur Bual numa exposição de obras suas no SNI, o coio da propaganda salazarista.

Muito anos mais tarde, com o Helder Pinho, o Karlos Faria, abancámos, numa patuscada, na cave que ele tinha por atelier/habitação na Amadora: latas de atum, azeitonas, queijinhos frescos, um garrafão de tinto.

Parvamente, a meio daquilo tudo e de muita converseta, lembrei-lhe o SNI.
Muito calmamente respondeu:

- Fomeca, meu caro, muito espaço no estômago.

Nem mais uma palavra.

Se parvo fui, parvo fiquei.

Faltavam muitos anos para ouvir o Mário-Henrique Leiria dizer: «Posso morrer de fome mas não peço esmola», ou ainda, «para vivir de rodillas vale más morir de pie.»

Mas isso era o Mário-Henrique Leiria, um louco genial e não podemos exigir que todos fossem como ele.

Aprende-se com as muitas merdas que vamos dizendo e fazendo.

Com aquela parvoeira no atelier/habitação do Bual, a sua resposta, tomei uma lição para a vida.

Receio bem que o Mário-Henrique Leiria tenha caído no esquecimento. Apenas alguns moicanos, provavelmente os últimos, ainda sabem quem seja e lhe conheçam as pinturas e os livros.

Conheci-o antes do 25 de Abril, por mero acidente líquido no «Expresso-Bar», ali no Largo da Trindade.

Uma atracção imediata, um espanto que não mais se esquece. Um excelente contador de histórias, rasgado por um humor colorido, gritante, irresistível, demolidor, corrosivo mas desfazer-se em ternura.

Um louco genial, que gargalhava frente à angústia. Era cruel e entendia que a «crueldade é somente um processo quotidiano de exprimir qualquer coisa», ou como dele disse o O’Neill: «um amigo que desconfia da amizade. Por instinto. No fundo tem medo que o apanhem nas filigranas de uma ternura qualquer.»

Aliás, como viemos a descobrir com a publicação de Depoimentos Escritos, um livro cruel cheio de beleza. Pela sua leitura ficamos a saber de uma paizão louca que teve por uma alemã, Dietlinde de seu nome, uma «ariana pura» e ele a ansiar por uma vida calma com fedelhos pendurados nos joelhos, doces natais, que ela sempre recusou.

A ariana acabou por fugir com outro, que ela considerou ser o amor da sua vida, e para além de o deixar destroçado e exigir o divórcio, levou-lhe quadros, discos com música e canções de Natal, música russa e brasileira.

(29 de Outubro de 2000)

Legenda: esta fotografia do «Expresso-Bar» tem alguns anos, estava o botequim em obras não sei se de restauro ou destruição. Terei que por lá passar… 

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