quarta-feira, 22 de julho de 2020

SARAMAGUEANDO


Estão os três voadores à proa da máquina, vão na direcção do poente, e o padre Bartolomeu Lourenço sente que a inquietação regressou e cresce, é pânico já, enfim vai ter voz é um gemido, quando o sol se puser, descerá irremediavelmente a máquina, talvez caia, talvez se despedace e todos morrerão, É Mafra, além, grita Baltasar, parece o gajeiro a bradar do cesto da gávea, Terra, nunca comparação alguma foi tão exacta, porque esta é a terra de Baltasar, reconhece-a, mesmo nunca a tendo vista do ar, quem sabe se por termos no coração uma orografia particular que, para cada um de nós, acertará com o particular lugar onde nascemos, o côncavo meu no teu convexo, no meu convexo o teu côncavo, é o mesmo que homem e mulher, mulher e homem, terra somos na terra, por isso é que Baltasar grita, É a minha terra, reconhece-a como um corpo.

José Saramago em Memorial do Convento, página 201.

Pormenor de leitura que levou ao sublinhado:

 «acertará com o particular lugar onde nascemos, o côncavo meu no teu convexo, no meu convexo o teu côncavo, é o mesmo que homem e mulher, mulher e homem, terra somos na terra, por isso é que Baltasar grita, É a minha terra, reconhece-a como um corpo.»

Reconhecer a terra como um corpo.

3 comentários:

  1. Dizia eu a um amigo que sabe mais de livros a dirmir do que eu plenamente acordado:
    -foi a melhor história de amor que li até hoje
    -de amor?
    -sim, de amor
    -nunca o tinha visto por esse prisma
    -não tenha dúvidas, meu amigo.

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  2. Sim, Seve, uma enorme história de amor.
    Já disse aos meus filhos que a biblioteca da família é valiosa, mas no que a certos livros, de certos autores, pouco «valem» porque estão largamente manuseados, sublinhados, anotados, sei lá mais o quê, acima de tudo não têm o que os alfarrabistas gostam de dizer: «miolo limpo».
    Não é que os meus livros não estejam estimados, mas foram lidos, outros relidos sem conta.
    Mais um pormenor desta extraordinária história de amor:
    «... Só uma mulher que está deitada num restolho com um homem em cima de si, cuida ver qualquer coisa a passar no céu, mas julga serem visões próprias de quem está a gostar.»
    Estavam a ser sobrevoados pela Passarola de Bartolomeu de Gusmão.
    Lembrar-me eu que em 1982, este memorável romance perdeu para a «Balada da Praia dos Cães», um livro menor na bibliografia de José Cardoso Pires de que gosto muito, o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores.

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