Terra
Sebastião
Salgado
Texto de
Introdução: José Saramago
Versos: Chico
Buarque
Capa: Lélia
Wanick Salgado
Editorial
Caminho, Lisboa, Fevereiro de 1997
Cabral de Melo Neto
Oxalá não venha nunca à sublime cabeça de Deus a ideia
de viajar um dia a estas paragens para certificar-se de que as pessoas que por
aqui mal vivem, e pior vão morrendo, estão a cumprir de modo satisfatório o
castigo que por ele foi aplicado, no começo do mundo, ao nosso primeiro pai e à
nossa primeira mãe, os quais, pela simples e honesta curiosidade de quererem
saber a razão por que tinham sido feitos, foram sentenciados, ela, a parir com
esforço e dor, ele, a ganhar o pão da família com o suor do seu rosto, tendo
como destino final a mesma terra donde, por um capricho divino, haviam sido
tirados, pó que foi pó, e pó tornará a ser. Dos dois criminosos, digamo-lo já,
quem veio a suportar a carga pior foi ela e as que depois dela vieram, pois
tendo de sofrer e suar tanto para parir, conforme havia sido determinado pela
sempre misericordiosa vontade de Deus, tiveram também de suar e sofrer
trabalhando ao lado dos seus homens, tiveram também de esforçar-se o mesmo ou
mais do que eles, que a vida, durante muitos milénios, não estava para a
senhora ficar em casa, de perna estendida, qual rainha das abelhas, sem outra
obrigação que a de desovar de tempos a tempos, não fosse ficar o mundo deserto
e depois não ter Deus em quem mandar.
Se, porém, o dito Deus, não fazendo caso de recomendações e conselhos, persistisse no propósito de vir até aqui, sem dúvida acabaria por reconhecer como, afinal, é tão pouca coisa ser-se um Deus, quando, apesar dos famosos atributos de omnisciência e omnipotência, mil vezes exaltados em todas as línguas e dialectos, foram cometidos, no projecto da criação da humanidade, tantos e tão grosseiros erros de previsão, como foi aquele, a todas as luzes imperdoável, de apetrechar as pessoas com glândulas sudoríparas, para depois lhes recusar o trabalho que as faria funcionar – as glândulas e as pessoas. Ao pé disto, cabe perguntar se não teria merecido mais prémio que castigo a puríssima inocência que levou a nossa primeira mãe e o nosso primeiro pai a provarem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A verdade, digam o que disserem autoridades, tanto as teológicas como as outras, civis e militares, é que, propriamente falando, não o chegaram a comer, só o morderam, por isso estamos nós como estamos, sabendo tanto do mal, e do bem tão pouco.

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