domingo, 30 de novembro de 2025

COMEÇOS DE LIVROS


Existem aquelas palavras de Herberto Helder: «Morrer era agora minha liberdade, e eu tinha a vida inteira para executá-la pormenorizadamente».

Também as do político e jornalista Vitor Cunha Rego, «A pessoa preparar-se para a morte é a grande finalidade da vida.»

Os mortos só sabem uma coisa: é melhor estar vivo.

Gostar de morrer sem dar por isso.

E há aquele começo de Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar, uma obra magnífica, lida as vezes precisas, não suficientes, para o compreender, e em cada leitura sempre algo de novo, «como é que deixai passar isto na(s) outra(s) leitura), onde tinha a cabeça?


«Meu caro Marco

 

Fui esta manhã a casa de Hermógenes, o meu médico, que acaba de regressar à Villa depois de uma viagem bastante longa pela Ásia. Devia ser observado em jejum; tínhamos marcado a consulta para as primeiras horas da manhã. Deitei‑me num leito depois de ter tirado o manto e a túnica. Poupo‑te a pormenores que te seriam tão desagradáveis como a mim próprio, e à descrição do corpo de um homem que avança na idade e se prepara para morrer de uma hidropisia do coração. Digamos apenas que tossi, respirei e retive o fôlego conforme as indicações de Hermógenes, alarmado, a seu pesar, pelos progressos tão rápidos do mal e disposto a atribuir as culpas ao jovem Iolas, que me tratou durante a sua ausência. É difícil permanecer imperador na presença de um médico e difícil também conservar a qualidade de homem. O olho do prático só via em mim um montão de humores, triste amálgama de linfa e de sangue. Veio‑me esta manhã, pela primeira vez, a ideia de que o meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, melhor conhecido por mim que a minha alma, não passa de um monstro dissimulado que acabará por devorar o seu dono. Basta… Amo o

meu corpo; serviu‑me bem e de todas as maneiras, e não lhe rega‑ teio os cuidados necessários. Mas já não conto, como Hermógenes pretende ainda fazer, com as virtudes maravilhosas das plantas e a dosagem exacta dos sais minerais que ele foi buscar ao Oriente. Este homem, aliás tão fino, dirigiu‑me vagas fórmulas de reconforto, excessivamente banais para enganarem alguém; ele bem sabe como eu odeio esse género de impostura, mas não é impunemente que se exerce a medicina durante mais de trinta anos. Perdoo a tão bom servidor esta tentativa de me esconder a minha morte. Hermó‑ genes é competente; é mesmo sábio; a sua probidade é muito su‑ perior à de um vulgar médico da corte. Terei a sorte de ser o mais bem tratado dos doentes. Mas ninguém pode ultrapassar os limites prescritos; as minhas pernas inchadas já me não aguentam as longas cerimónias romanas; sufoco; e tenho sessenta anos.»

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