Existem aquelas palavras de Herberto Helder: «Morrer era agora minha liberdade, e eu tinha a vida inteira para executá-la pormenorizadamente».
Também
as do político e jornalista Vitor Cunha Rego, «A pessoa preparar-se para a
morte é a grande finalidade da vida.»
Os
mortos só sabem uma coisa: é melhor estar vivo.
Gostar
de morrer sem dar por isso.
E
há aquele começo de Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar, uma
obra magnífica, lida as vezes precisas, não suficientes, para o compreender, e
em cada leitura sempre algo de novo, «como é que deixai passar isto na(s) outra(s)
leitura), onde tinha a cabeça?
«Meu caro Marco
Fui esta manhã a casa
de Hermógenes, o meu médico, que acaba de regressar à Villa depois de uma
viagem bastante longa pela Ásia. Devia ser observado em jejum; tínhamos marcado
a consulta para as primeiras horas da manhã. Deitei‑me num leito depois de ter
tirado o manto e a túnica. Poupo‑te a pormenores que te seriam tão
desagradáveis como a mim próprio, e à descrição do corpo de um homem que avança
na idade e se prepara para morrer de uma hidropisia do coração. Digamos apenas que
tossi, respirei e retive o fôlego conforme as indicações de Hermógenes,
alarmado, a seu pesar, pelos progressos tão rápidos do mal e disposto a
atribuir as culpas ao jovem Iolas, que me tratou durante a sua ausência. É difícil
permanecer imperador na presença de um médico e difícil também conservar a
qualidade de homem. O olho do prático só via em mim um montão de humores,
triste amálgama de linfa e de sangue. Veio‑me esta manhã, pela primeira vez, a
ideia de que o meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, melhor
conhecido por mim que a minha alma, não passa de um monstro dissimulado que
acabará por devorar o seu dono. Basta… Amo o
meu corpo; serviu‑me bem e de todas as maneiras, e não lhe rega‑ teio os cuidados necessários. Mas já não conto, como Hermógenes pretende ainda fazer, com as virtudes maravilhosas das plantas e a dosagem exacta dos sais minerais que ele foi buscar ao Oriente. Este homem, aliás tão fino, dirigiu‑me vagas fórmulas de reconforto, excessivamente banais para enganarem alguém; ele bem sabe como eu odeio esse género de impostura, mas não é impunemente que se exerce a medicina durante mais de trinta anos. Perdoo a tão bom servidor esta tentativa de me esconder a minha morte. Hermó‑ genes é competente; é mesmo sábio; a sua probidade é muito su‑ perior à de um vulgar médico da corte. Terei a sorte de ser o mais bem tratado dos doentes. Mas ninguém pode ultrapassar os limites prescritos; as minhas pernas inchadas já me não aguentam as longas cerimónias romanas; sufoco; e tenho sessenta anos.»

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