quinta-feira, 31 de março de 2016
POSTAIS SEM SELO
Passo o tempo lendo ou escutando música
Voltamos sempre ao princípio, estamos perdidos!
Manuel António Pina em Poesia Reunida
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HÁ UMA COR QUE ME PERSEGUE E EU ODEIO
Há uma cor que me persegue e que eu odeio,
Há uma cor que me persegue e que eu odeio,
Há uma cor que se insinua no meu medo.
Porque
é que as cores têm força
De
persistir na nossa alma,
Como
fantasmas?
Há uma cor que me persegue e hora a hora
A sua cor se torna a cor que é a minha alma.
Ricardo Reis
OLHAR AS CAPAS
Conversas Inacabadas Com Alberto Caeiro
José Flórido
Prefácio: Victor
Mendanha
Capa: Carlos
Reis
Pergaminho,
Lisboa, 1999
Durante estas nossas conversas, Caeiro deixou sempre
qualquer coisa incompleta, inacabada…
Se julgo, por vezes, tê-lo Compreendido, verifico,
mais tarde, que estou longe de ter atingido o centro das sias ideias: Houve
sempre algo que ficou por dizer… Melhor: houve sempre alguma coisa que não foi
possível dizer.
E foi no segredo desse indizível que ficámos os dois:
eu, por não conseguir compreender; Caeiro, por não me poder comunicar…
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quarta-feira, 30 de março de 2016
NÃO TE METAS NUM COMBOIO DE MERCADORIAS
Conta-se que EmmylouHarris, enquanto adolescente, passando os dias fechada em casa a ouvir música folk
na rádio, decide escrever uma carta a Pete Seeger confessando-se aflita por não
ter sofrido o suficiente na vida para poder cantar.
Teve como resposta:
Não te preocupes. A vida vai-te apanhar. Vais sofrer.
Não te metas num comboio de mercadorias.
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SARAMAGUEANDO
Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em
posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da
fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não
dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das
imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de
tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram
rebeldes.
Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam
pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um
machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira
fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi
cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um
guerrilheiro.
Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas
imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão
direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte,
cidade de Nova Iorque. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados
por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as
torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo um
terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder
bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas,
volatilizados, contam-se por milhares.
As fotografias da Índia, de Angola e de Israel
atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio
instante de tortura, da agónica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova Iorque
tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma
catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido
pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de
sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado
como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefacção para nos saltar à
garganta. O horror disse pela primeira vez "aqui estou" quando
aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma
morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma
pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça
irreconhecível, um braço, uma perna, um abdómen desfeito, um tórax espalmado.
Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas
imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietname
cozido a napalm, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles
linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos
debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atómicas que arrasaram e
calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazis a vomitar cinzas,
daqueles camiões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse.
De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a
conta dos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram
capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais
ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das
civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões,
todas elas, sem excepção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens,
que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis,
de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem
um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em
sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as
circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes
de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes
contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o
nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o
passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e
ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados
a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar.
Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não
existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se
tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais
horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os
talibans, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente
textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um
monstruoso conúbio pactado entre a Religião e o Estado contra a liberdade de
consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o
direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra
heresia significa.
E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que
não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um
universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes
para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua
glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gémeas de Nova
Iorque, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela
vontade e pela acção dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue
as páginas da História. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano,
prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o
"factor Deus", esse, está presente na vida como se efectivamente
fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o "factor Deus" o
que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a
América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o
"factor Deus" em que o deus islâmico se transformou que atirou contra
as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da
vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e
que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas
não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o "factor Deus", esse
que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e
seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e
aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão
aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um
homem acabou por fazer do homem uma besta.
Ao leitor crente
(de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas
palavras provavelmente lhe inspiram, não peço que se passe ao ateísmo de quem
as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento se não puder
ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele,
o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do
"factor Deus". Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um
dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente
continuará a demonstrar-se.
José Saramago, Público,
18 de Setembro de 2001
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terça-feira, 29 de março de 2016
POSTAIS SEM SELO
Lembro-me de imediatamente me lembrar
que não fui concebido para ser
aquele que entre vós julgais amar.
O cedo é cedo. Tarde é o entardecer.
Raul de Carvalho
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OLHAR AS CAPAS
O Lugar das Fitas
Dinis Machado
Edição: Marta
Navarro
Capa e vinhetas:
Rui Rodrigues
Quetzal, Lisboa,
Fevereiro de 2016
Dirá o leitor que o diálogo acciona uma certa
linguagem motora exagerada. Mas não andamos longe da nevralgia, se me permite
alguma caricatura. Esta questão do tabaco sempre me deu que pensar, incluindo a
radical filosofia do Neco Primavera, que ostentava no seu curriculum (além do
facto de ter ganhado a aposta de beber a água de dez igrejas de Lisboa num só
dia, percorrendo a cidade de púcaro na mão) a habilidade e o método de fumar
seis maços de cigarros em cada vinte e quatro horas, batendo o recorde olímpico
que ia do Largo de São Roque à Rua dos Correeiros. Quando lhe perguntei porque
fumava tanto, o Neco fez olhos espantados:
- Fazes o favor, dizes-me o que é que eu faço às mãos e à boca, quando não estou a mexer na Conceição, a comer bacalhau com batatas ou a chupar rebuçados do Dr. Centazzi? Fazes favor, dizes-me?
- Fazes o favor, dizes-me o que é que eu faço às mãos e à boca, quando não estou a mexer na Conceição, a comer bacalhau com batatas ou a chupar rebuçados do Dr. Centazzi? Fazes favor, dizes-me?
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segunda-feira, 28 de março de 2016
POSTAIS SEM SELO
Eu sei
que há um lugar por descobrir
um lugar tenebroso e cantante
como uma ponte de velhos manequins
aí
o teu corpo
dois seios despedaçados
e o vento só
o vento
soprado através
dos teus cabelos
Mário-Henrique
Leiria
Legenda: pintura
de Heidi Mallott
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OPERAÇÃO PAPAGAIO
Os escassos
atentados que foram levados a cabo para derrubar Salazar, fracassaram todos.
O ditador cairia
por um mero acidente cadeiral quando, em férias no Forte de Santo António da Barra, o calista
se preparava para lhe tratar das extremidades.
Os que lembram
estas coisas, sabem do assalto ao Santa Maria, o assalto ao Quartel de Beja,mas poucos saberão da Operação Papagaio.
A serenidade da
aleluia pascal tem dado para uma revisitação ao Mário-Henrique Leiria.
Que também mete Luiz Pacheco.
Olha que dois!
Que também mete Luiz Pacheco.
Olha que dois!
Ao Mário, conheci-o, antes
do 25 de Abril, na redacção do República.
Um tipo extraordinário,
vivaz, uma ternura desconcertante, de uma verticalidade assombrosa.
Perguntavam-lhe
por histórias velhas: os tiros de caçadeira na noite de Carcavelos, a Operação Papagaio.
Mário-Gin-Tonic
sorria e ficava-se por aí.
Como escreveria:
… já lá vão tantos anos que talvez o que me reste na
memória seja apenas aquela saudade melancólica que embeleza tudo. Sei lá.
Fernando Correia da Silva, no já citado Surrealismo e Carbonária conta assim sobre a
Operação Papagaio:
…a maioria dos
frequentadores do Café A Brasileira em 1961 já sabe, regabofe colectivo: tu, e
um grupo de malucos, entre os quais Virgílio Martinho e o poeta António José
Forte, estão a programar, de mesa para mesa e em voz alta, a revolucionária
“Operação Papagaio”. Numa das próximas noites vocês propõem-se bater à porta do
Rádio Clube Português, que fica na Parede, povoação mesmo ao lado de
Carcavelos. Lá dentro há apenas um contínuo enquanto roda a bobine com o
programa nocturno “Companheiros da Alegria”. A porta é aberta. Vocês apontam um
revólver, imobilizam, amarram e metem o contínuo num cacifo que depois fecham
por fora, a cadeado. Entram no estúdio e trocam a bobine por uma outra que
trazem convosco. Esta contem marchas militares, também o Hino Nacional tocado
frequentemente e, a cada cinco minutos, notícias sobre movimentações militares
para derrubar o Governo. Termina convidando a população a deslocar-se á Baixa
de Lisboa para saudar os militares vitoriosos.
Enquanto gira a
nova bobine vocês retiram-se do Rádio Clube Português. Ficarão, pelas esquinas,
a aguardar a reacção dos ouvintes que, esperam, seja de entusiasmo...
Quem não aguarda
é a PIDE, que vos prende mas fora d’A Brasileira, para não dar nas vistas.
Durante o interrogatório os agentes, volta e meia, correm para o corredor a
desrolhar as gargalhadas. Vocês ficam detidos uns quatro ou cinco dias, talvez
uma semana. Depois levam uns safanões e são postos na rua. O espaço já é curto
para arrecadar tantos subversivos, quanto mais uns brincalhões inofensivos...
Luiz Pacheco, no
seu Prazo de Validade, conta uma outra versão:
Que se passou na Parede? Ao chegarem ao Rádio Clube
Português, os carros dos conspiradores depararam com obstáculo inesperado,
imponderável: havia ali, no ringue de patinagem, um desafio de hóquei, gente a
assistir, um polícia, o gratificado, a olhar. Gerou-se discussão no interior dos
automóveis. Que fazer? Aquilo não fora previsto, aquilo, assim, podia dar para
o torto… não estavam mentalizados para violências. Somente uma acção anarca,
súbita, rápida, insólita. Sem vítima, sem derramamento de sangue nenhum. Por
mim sempre pensei, que, à chegada à Parede, já haveria arrependidos, temerosos
do pior. Que a presença de jogadores, entretidos na sua lida, algum público e o
chui não seria inconveniente para os forçar a desistir. Mas foi o pretexto.
Foram a votos e ganharam os indecisos e os pusilânimes. Voltaram para trás.
Argumento de peso: vimos cá a manhã!... Amanhã também é dia!
Luiz Pacheco
conta também de uma artigalhada, sem qualquer sentido pejorativo, o Pacheco gostava da frase, que Luís Filipe Costa escreveu para o semanário
Extra, a falar da Operação Papagaio, mas não encontrou o recorte na
Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Teria sido mais exacto, escreveu Pacheco.
Se para aqui chamássemos o John Ford ele diria que se os factos se transformam em lenda, deve publicar-se a lenda.
Se para aqui chamássemos o John Ford ele diria que se os factos se transformam em lenda, deve publicar-se a lenda.
Mas o poeta
Carlos Loures, em Estrolabio, tenta os factos e faz um apanhado das versões que ele conhece sobre a Operação
Papagaio.
Vale a pena ler!
Vale a pena ler!
domingo, 27 de março de 2016
POSTAIS SEM SELO
Agora tenho de sair. A carta acaba aqui. Vou tentar angariar subsistência, que eu, às vezes, até tenho o vício de comer... calcula, vícios burgueses...
Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos
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NUM DOMINGO À NOITE
Até que um dia me dizes e passo a entender-te melhor:
- O meu avô é que era um gajo porreiro e muito giro.
Pertencia à Carbonária. De segunda a sexta-feira trabalhava mas nos fins de
semana fazia a Revolução. Ainda tenho lá em casa o bacamarte que ele usava
contra a Monarquia...
Quero ver esse tal de bacamarte e tu convidas-me a ir
a tua casa, uma vivenda em Carcavelos, a dois passos de Lisboa, à beira-mar,
logo depois da foz do Tejo.
- Mas num domingo à noite, está a ouvir?
- Porquê domingo à noite?
- Tu vais ver...
E vejo. A vivenda onde moras, que foi dos teus pais,
que é da tua mãe, fica próximo da estação dos Caminhos de Ferro, mesmo ao lado
do cinema. À meia-noite subimos à torrinha e quando os espectadores começam a
sair do cinema para a rua, tu empunhas o bacamarte do teu avô e começas aos
tiros. Para o ar, mas aos tiros. A malta desata toda a fugir e tu a rir. E eu
também, obviamente...
Fernando Correia
da Silva em Surrealismo e Carbonária
RETRATO (SEM BONÉ) DE MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA
Mário-Henrique Leiria é um lírico recalcado. Se os
deuses o tivessem soprado brandamente para margens de idílicos remansos, ele
tereia jogado ao esconde-esconde com as ninfas de serviço e, até, levado ao
registo e ao colchão a primeira que, apanhando-o, se deixasse apanhar. Isto é o
que acontece, trivialmente, a quem comete a candura de ser lírico. Depois, para
ele, desenrolar-se-ia o trabalhoso novelo do dia-a-dia. E Mário-Henrique leiria
(eu conheço-o!) cumpriria. Até ao dia em que,,,
Mas os deuses teceram outros enredos para ele:
«Queremos o Màrinho para muitas bolandas!» E Mário teve-as, tem-nas tido,
tê-las-á.
Rapidamente compreendeu, como qualquer Baudelaire, que
o sorriso esconde o rictus e a flor dos lábios o dentário aqueduto da caveira.
Destes arquétipos de má literatura extraiu, ao invés do que se poderia supor,
salutar razão de optimismo. Recalcou o lírico que lhe assomava à Lágrima,
venceu a tentação do satanismo de feira e do franciscanismo de congresso e
riu-se das boas (ou más) intenções em literatura.
Salvou-se, assim, do abono de família.
Ninguém sabe como ele é quando está só. DE uma
infância nada cavalgante, imagino eu que ele tira correrias de índios, arcos e
flechas, rasgados gritos guturais. Adormece, na realidade, Rosto Pálido, e
acorda, no sonho, Pele Vermelha.
Já invocou o diabo, à meia-noite, numa encruzilhada,
enquanto tiritava de frio no centro do
círculo mágico e deixava pender o braço ao peso da espada. Já fez manoletinas
de salão. Disparou caçadeiras através do postigo do telhado só para acordar
Carcavelos da sua letargia de terra avivendada.
Se fosse muito rico, dedicar-se-ia às grandes e imperturbáveis
blagues de um Raymond Roussel. Assim, cria o mais imediato «Retrato de Família
com Boné», um retrato tão magro como aquele Chile que não deixaram engordar.
É um amigo que desconfia da amizade. Por instinto. No
fundo, tem medo que o apanhem nas filigranas de uma ternura qualquer.
A sua maldade-por-escrito é apenas a economia de meios
que ele usa na construção da máquina de absurdos que projectou. Como não tem
tempo de dar muita vida às suas fugazes personagens, devorando-lhes as peças
anatómicas. Pretende comer cru o que os outros comem cozido. É um antropófago
que não tem aquela vizinha do lado a quem se costuma pedir panela e sal. E
deixa os restos na praia. Para que o sábio da próxima expedição punitiva se
entretenha a identifica-los.
Escreve literariamente
mal e tira alguma força disso. Mas não deve exagerar.
Entretanto, vai desdobrando o óculo sobre as grandes
solidões oceânicas para ver se descobre o Capitão Morgan a ler, no tombadilho,
o seu último livro.
Era a maior alegria que os deuses lhe podiam dar!
Alexandre O’Neill
em Uma Coisa Em Forma de Assim
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Alexandre O'Neill,
Mário-Henrique Leiria
PÁSCOA
A senhora tia alisa a toalha
põe sobre ela talheres muito antigos
herdados dos avós que a terra come
quantos anos passados deste dia
ainda estaremos como agora juntos
na cozinha de Sangalhos
entre o fumo da lenha seca
e o cheiro misturado
das carnes e das hortaliças
que acabam de ferver mo fogo esperto
minha mãe diz um dito qualquer
seca a vista embaciada
eu venho do pátio
certamente cantando
o tio – as urinas presas
no laço da bexiga –
conta uma história
da guerra 14
do vizinho morto jovem
como ele Manuel sorte infeliz
ao tempo que isto foi
Fernando Assis
Pacheco em Respiração Assistida
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Páscoa
sábado, 26 de março de 2016
POSTAIS SEM SELO
Sê paciente; espera
Que a palavra amadureça
E se desprenda como um fruto
Ao passar o vento que a mereça.
Eugénio de
Andrade em Poemas
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Postais Sem Selo
QUOTIDIANOS
Semana Santa.
Lembro-me dos
cartazes de A Túnica nas paredes laterais do Cinema Lys.
Lembro-me que a
Rádio deixava de se ouvir e só interrompia o silêncio para a transmissão do
relato dos jogos da Selecçaõ Nacional no Torneio de Montreux de Hóquei em Patins.
Lembro-me de o
Carlos Alberto aparecer-nos na rua de calças à golf e uma gravata preta.
Perguntado do porquê, respondeu: «Cristo morreu!»
Lembro-me de que
continuámos a jogar à bola: «muda aos 5 acaba aos 10».
Tanto tempo!
A BELEZA DO FUTEBOL
Portugal-Bulgária,
ontem, em Leiria.
O jogo
aproximava-se do fim.
Levanta-se um
coro não identificável e só se percebe quando as camaras mostram um miúdo a
correr campo fora para abraçar Renato Sanches.
Apenas ele.
No fim do jogo,
deixaram-no ir à cabine e Renato Sanches deu-lhe a camisola com que se estreara
na Selecção.
Bonito e
comovente!
METIDOS NUM GRANDE SARILHO
Acabar com o Daesh é possível por meios militares, mas
nos últimos vinte anos emergiu uma realidade política e religiosa de natureza
muito violenta que existe muito para além do terreno sírio e iraquiano, e está
nas nossas cidades. A experiência militar e operacional que estes jovens
ganharam na Síria combatendo com o Daesh é importante, mas não é preciso ter
uma grande experiência militar, saber muito de explosivos, e obter
Kalashnikovs, o que não é difícil, para criar o caos criminoso num campo de
futebol ou numa rua apinhada ao fim da tarde. Contrariamente ao que às vezes se
sugere, não há grande sofisticação nestes atentados, com regras de
clandestinidade rudimentares que só funcionam porque é difícil infiltrar estes
meios, ou porque os serviços de informação como os belgas não viram nada na rua
ao lado.
Dito isto, estamos metidos num grande sarilho.
José Pacheco Pereira
no Público
QUOTIDIANOS
Se o navio afunda
a solução é atirar ao mar os passageiros.
E quando estivermos todos no fundo mar com o navio,
ainda que, mortos, não o possamos saber,
teremos então finalmente conseguido
atingir o ponto luminoso do equilíbrio.
Luís Filipe
Castro Mendes, poema colocado por Nicolau Santos na sua coluna Cem Por Cento
no Expresso.
Legenda: pintura
de Júlio Pomar
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Quotidianos
sexta-feira, 25 de março de 2016
POSTAIS SEM SELO
Que amarga esta Sexta-feira Santa. Não é da solidão;
nunca me sinto só. Quando estou sozinho sou todo meu, dizia Leonardo, e
entendo-me comigo.
António Lobo
Antunes em Terceiro Livro de Crónicas
Legenda: não foi
possível identificar o autor/origem da fotografia.
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Páscoa,
Postais Sem Selo
SARAMAGUEANDO
Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando
de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de para em par e Deus aparece,
vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo,
Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus
compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício,
que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios,
e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e sofrimento que do seu lado irá
nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens
perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio de um
sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e
sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me
todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma
esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para
baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já
não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue
gotejava.
LOOK BACK IN ANGER
Podia ser a névoa habitual da noite, os charcos
cintilantes, o luar trazido por um golpe de vento às trincheiras da Flandres,
mas não era. Quando acordou mais tarde num hospital da rectaguarda,
ensinaram-no a respirar de novo. Lentas infiltrações de oxigénio num granito
poroso, durante anos e anos, até à imobilidade pulmonar das estátuas.
Hoje, um dos seus filhos sobe ao terraço mais obscuro da cidade em que vive e olha o passado com rancor. O sangue bate, gota a gota, na pedra hereditária dos brônquios e ele sabe que é o mar contra os rochedos, a pulsação difícil das algas ou dos soldados mortos nessa noite da Flandres.
As imagens latentes, penso eu, porque sou eu o homem na armadilha do terraço difuso, entrego-as às palavras como se entrega um filme aos sais da prata. Quer dizer: numa pura suspensão de cristais, revelo a minha vida.
Carlos de Oliveira em Sobre o Lado Esquerdo
Hoje, um dos seus filhos sobe ao terraço mais obscuro da cidade em que vive e olha o passado com rancor. O sangue bate, gota a gota, na pedra hereditária dos brônquios e ele sabe que é o mar contra os rochedos, a pulsação difícil das algas ou dos soldados mortos nessa noite da Flandres.
As imagens latentes, penso eu, porque sou eu o homem na armadilha do terraço difuso, entrego-as às palavras como se entrega um filme aos sais da prata. Quer dizer: numa pura suspensão de cristais, revelo a minha vida.
Carlos de Oliveira em Sobre o Lado Esquerdo
Legenda: não foi
possível identificar o autor/origem da imagem.
quinta-feira, 24 de março de 2016
JOHAN CRUIJFF (1947-2016)
Hoje, JohanCruijff morreu pacificamente em Barcelona, rodeado pela família depois de uma dura
batalha contra um cancro no pulmão.
Morreu mais um
mágico do futebol, uma lenda.
Vai ficando mais
vazia a minha galeria.
São inúteis as
palavras para descrever Johan Cruijff.
Dos mais
espantosos jogadores que já tive oportunidade de ver.
E são muitos.
Uma única vez
vi-o ao vivo.
Noite de má
memória.
Estádio da Luz,
19 de Fevereiro de 1969, 2ª mão da 2ª eliminatória da Taça dos
Campeões
Europeus.
Na 1ª mão, em
Amsterdão, o Benfica tinha vencido, com alguma sensação, o Ajax por 3 a 1.
Falou-se de
favas contadas.
Pois é.
No jogo da Luz,
aos 33 minutos da 1ª parte, já o Ajax estava à frente na eliminatória.
Quem marcou os
dois primeiros golos?
Cruijff, pois
então!
A 15 minutos do
fim, o José Torres marcou e levou a eliminatória para um terceiro jogo.
Por aqueles
tempos, em caso de desempate, recorria-se a um terceiro jogo.
A 5 de Março, em
Paris, o tira-teimas.
Emigrantes em
peso, no Estádio Colombes.
Com zero a zero
ao fim dos noventa minutos, recorreu-se a um prolongamento de trinta minutos.
Aos 92 minutos
Cruijff marcou o primeiro golo e, num ápice, seguiram-se mais dois, metidos por
um tal de Danielsson.
Foi o adeus o
Benfica e começava a ascensão de Johan Cruijff.
O Ajax chegaria
à final, mas perdeu-a para o Milan.
Contudo, nas
épocas de 70/71, 71/72, 72/73 venceria as respectivas finais.
AS VELADAS
As noites de velada. O morto, no primeiro andar, mais
bem vestido que um noivo... Todos invejavam os fatos dos mortos porque eram
novos e muito bem passados a ferro. No rés-do-chão a família, os amigos, os
profissionais da morte, bebendo café com aguardente e falando em surdina. Uma
grande vontade de rir sacudia por vezes as pessoas, e todos começavam a soluçar
baixinho. Nem um grito. Respeito absoluto. Só na hora de sair o enterro é que os
ais reprimidos começavam a encharcar a cidade. Todos gritavam o mais que
podiam. Já ninguém tinha medo de acordar o morto. Agora tinham a certeza que o
caixão estava irremediavelmente fechado.
Eduardo Valente
da Fonseca em Os Criptogâmicos
quarta-feira, 23 de março de 2016
POSTAIS SEM SELO
De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a
conta dos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram
capazes de inventar.
José Saramago
INDEFESOS
Uma desesperante
incapacidade perante a estratégia do terror.
Os jihadistas,
essa não-gente, decretaram:
Nunca mais voltarão a viver as vossas vidas como
antes.
Assim que
acontecerá.
O mundo
transformou-se num lugar trágico.Não somos nada.
terça-feira, 22 de março de 2016
OLHAR AS CAPAS
Viver Todos os Dias Cansa
Pedro Paixão
Cotovia, Lisboa
Julho de 1995
Sei pouco sobre as mulheres e cada vez sei menos. Nem
sei – ou quando sei já é tarde demais – se gostam de mim e, quando isso
acontece, não chego a saber o que isso possa querer dizer. Há muitas maneiras de
gostar, é verdade. Quando se gosta de um casaco é ele o que trazemos mais
vezes. Com as mulheres é diferente. O que importa, acho eu, não é nem o que
elas dizem nem o que elas fazem mas o que elas não dizem e pensam fazer. É
preciso adivinhar e eu sou muito mau a adivinhar. Depois, quando as coisas
acabam e olhamos para trás, não ficamos mais elucidados. Sabemos contar aos
amigos uma história que tem princípio meio e fim mas que podia ter sido outra.
Uma pessoa é um mistério, duas, com um abismo pelo meio, uma prodigiosa
contradição.
QUOTIDIANOS
Nas garrafas de espumoso
as rolhas saltam
ao ritmo dos mecanismos que assinalam o fluir do tempo.
Autor desconhecido
Legenda; pintura de Diego Rivera
segunda-feira, 21 de março de 2016
POSTAIS SEM SELO
Destruir uma ponte é fácil, a sua reconstrução sólida
pode ser um trabalho longo e difícil.
Raúl Castro, em
Havana, durante a visita de Barak Obama.
AVANÇAR E NÃO OLHAR PARA TRÁS
Visita histórica do Presidente Obama a Cuba.
Guantanamera, guajira Guantanamera
Guantanamera, guajira Guantanamera
Guantanamera, guajira Guantanamera
Yo soy un hombre sincero
De donde crece la palma
Yo soy un hombre sincero
De donde crece la palma
Y antes de morirme quiero
Echar mis versos del alma
De donde crece la palma
Yo soy un hombre sincero
De donde crece la palma
Y antes de morirme quiero
Echar mis versos del alma
Guantanamera, guajira Guantanamera
Guantanamera, guajira Guantanamera
Guantanamera, guajira Guantanamera
Mi verso es de un verde claro
Y de un carmín encendido
Mi verso es de un verde claro
Y de un carmín encendido
Mi verso es un ciervo herido
Que busca en el monte amparo
Y de un carmín encendido
Mi verso es de un verde claro
Y de un carmín encendido
Mi verso es un ciervo herido
Que busca en el monte amparo
Guantanamera, guajira Guantanamera
Guantanamera, guajira Guantanamera
Guantanamera, guajira Guantanamera
Con los pobres de la tierra
Quiero yo mi suerte echar
Con los pobres de la tierra
Quiero yo mi suerte echar
El arroyo de la sierra
Me complace más que el mar
Quiero yo mi suerte echar
Con los pobres de la tierra
Quiero yo mi suerte echar
El arroyo de la sierra
Me complace más que el mar
Guantanamera, guajira Guantanamera
Guantanamera, guajira Guantanamera
Guantanamera, guajira Guantanamera
EXTREMA-UNÇÃO
Uma breve, amável mágoa à
flor dos olhos, um distante desapontamento,
morrias como se pedisses desculpa
por nos fazeres perder tempo.
Tinhas pressa mas não o mostravas,
receavas que não estivéssemos preparados,
e, suspenso sobre nós, esperavas
que disséssemos tudo, que fizéssemos o apropriado.
Morrer não é motivo de orgulho,
mas estavas cansado de mais para te justificares.
Ainda por cima no mês de Julho,
com as férias marcadas, ausentes os familiares.
Tínhamos levado as crianças de casa,
feito os telefonemas, escolhido os dizeres.
O quarto fora arrumado, a cama mudada
com roupa lavada. Só faltava morreres.
flor dos olhos, um distante desapontamento,
morrias como se pedisses desculpa
por nos fazeres perder tempo.
Tinhas pressa mas não o mostravas,
receavas que não estivéssemos preparados,
e, suspenso sobre nós, esperavas
que disséssemos tudo, que fizéssemos o apropriado.
Morrer não é motivo de orgulho,
mas estavas cansado de mais para te justificares.
Ainda por cima no mês de Julho,
com as férias marcadas, ausentes os familiares.
Tínhamos levado as crianças de casa,
feito os telefonemas, escolhido os dizeres.
O quarto fora arrumado, a cama mudada
com roupa lavada. Só faltava morreres.
Manuel António
Pina em Poesia Reunida
OLHAR AS CAPAS
Respiração
Assistida
Fernando Assis Pacheco
Organização:
Abel Barros Baptista
Posfácio: Manuel
Gusmão
Capa: Bárbara
Assis Pacheco
Assírio &
Alvim, Lisboa, Novembro de 2003
O que vai ser avô saúda-vos
parentes meus
mudos sob a terra guardados
em roupas que sobraram nas gavetas
papeleiras inúteis
pratas deformadas
velhas fotos severas
numa delas meu pai menino
de pé no seu bibe escolar
e a cara tão séria
que jamais perdeu
mesmo quando sorria
minha mãe moça magra
o que se dizia bem posta
vinda nesse ano
de Melias em Ourense
aturdida com a festa
que as minhas filhas
foram conhecer comigo
e como ela bonitinhas
mas depois chega a morte
adeus Cazurro barqueiro
adeus sr. Santiago A. A. Mendes
-nome comercial- adeus tios Eládios
logo dois um deles meu tio-avô
DIA MUNDIAL DA POESIA
Nunca liguei aos
dias do que quer que seja.
Hoje, por
exemplo, é o Dia Mundial da Poesia.
Como a poesia é
visita habitual deste Cais de Olhar, nunca me preocupei em assinalar o dia, até
é provável que já o tenha feito. Não me lembro.
Acontece que por
outros trabalhos, peguei em livros do Fernando Assis Pacheco e do Manuel
António Pina, grados poetas do reino e deu-me para colocar, de cada um, o seu
poema.
Neste segundo
dia de Primavera, em Lisboa, troveja fortemente e cai granizo que cobre as ruas
de branco.
Mas a Poesia não
necessita de guarda-chuva.
domingo, 20 de março de 2016
POSTAIS SEM SELO
A meio de uma aula na Universidade de Harvard, o
filósofo George Santayana interrompeu de súbito a palestra ao avistar pela
janela uma forsítia que rompia de um montículo de neve: "Não vou ser capaz
de terminar esta frase, acabei de descobrir que tenho um encontro marcado com a
Primavera!"Era assim antigamente. A Primavera tinha neve, forsítias e
poesia. Mas isso era antes de os americanos terem dado cabo do tempo com as
bombas atómicas.
Fernando
Magalhães
OLHAR AS CAPAS
O País das Uvas
Fialho d’Almeida
Prefácio de
Álvaro Júlio da Costa Pimpão
Livraria
Clássica Editora, Lisboa, 1946
Eu bem na sinto! Eu bem na sinto! apesar das fuligens
do céu hal humorado, e da ventania que me apupa, através das frinchas das
janelas. Uma pulsação vigora as alamedas, nas ascendências inexauríveis da
seiva, rebentando em folhagens de contextura fina, por forma que já não é
ficção o caso do homem que ouvia crescer erva nos campos, visto que eu há
quinze dias oiço, no recanto de parque aonde vivo, sob uma umbela vermelha de
paisagista, o burburinho da natureza que se revigora e emplumesce, numa dessas
orgias de cor que faziam rir o olho azul de Rousseau, e punham emoções na
palidez fatigada de Huet, o paisagista da ilha verde de Seguin.
A esta hora, por esses campos, nem vocês imaginam o
que os melros dizem de alegre, e o que as borboletas vivem de contentes. Os
murmúrios da água, que pelos regatos vai, como um sangue robusto, espalhando
juventudes na cultura, dizem às velhas árvores histórias duma suavíssima
poesia; e pelos ramos tufados de verdura húmida, tenra, tamisada
de cintilas solares, entra a repovoar-se a cidade dos ninhos, grande cidade
moderna, com avenidas, concertos, five o'clock, toilettes de plumas, e exibições de caudas
roçagantes. Ontem me dizia na tapada um velho pintassilgo...
E por esses pomares, entre sebes de silvados e
canaviais, que florações simpáticas, feitas com gotinhas de néctar e salpicos
de sangue arterial!
sábado, 19 de março de 2016
POSTAIS SEM SELO
A popularidade não deveria ter importância na eleição
dos políticos. Se dependêssemos da popularidade, o Pato Donald e os Marretas
teriam assento no Senado.
Etiquetas:
Orson Welles,
Postais Sem Selo
SARAMAGUEANDO
Fala-se interminavelmente de cultura, mas não se vive
a cultura. Comemoram-se os escritores que morrem, mas nada se faz para garantir
a actividade dos vivos. Se um escritor, por desespero, deixou de escrever,
ninguém lhe vai perguntar: «De que precisas para trabalhar?» Dão-se palmas
benévolas aos escritores que envelhecem, mas condenam-se ao silêncio os
escritores que nascem. Afirma-se que a cultura é uma e nacional, mas impede-se,
ou dificulta-se, ou menospreza-se a sua divulgação nos meios de comunicação social.
Apregoa-se o pluralismo, fomenta-se a letra única. Teoriza-se o consenso,
pratica-se a excomunhão.
José Saramago, do
discurso por ocasião do recebimento do Prémio Cidade de Lisboa, por Levantado
do Chão, 1 de Junho de 1982.
É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS
Três dias depois
de Barack Obama visitar Cuba, os Rolling Stones dão um concerto gratuito na
Ciudad Deportiva de Havana.
Temos andado por muito mundo, mas este concerto em
Havana vai ser um marco para nós, e, esperamos, para todos os nossos amigos em
Cuba, lê-se num comunicado do
conjunto.
OLHAR AS CAPAS
Em Nome do Pai
Pequena
Antologia do Pai na Poesia Portuguesa
Vários Autores
Organização:
José da Cruz Santos
Prefácio: Vasco
da Graça Moura
Capa: Armando
Alves
Modo de Ler, Porto,
Março de 2008
Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante
o sono - a ausência não te apaga como a bruma
sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos
meus sonhos um território suspenso de toda a dor,
um país de verão aonde não chegam as guinadas
da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí
nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo
que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te
chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com
lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum
ruído que envenene as palavras: pai, pai. Contam-me
depois que é deste lado da noite que me ouvem gritar
e que por isso me libertam bruscamente do cativeiro
escuro desse sonho. Não sabem
que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu
nome - porque a memória é uma fogueira dentro
das mãos e tu onde estás também não me respondes.
o sono - a ausência não te apaga como a bruma
sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos
meus sonhos um território suspenso de toda a dor,
um país de verão aonde não chegam as guinadas
da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí
nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo
que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te
chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com
lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum
ruído que envenene as palavras: pai, pai. Contam-me
depois que é deste lado da noite que me ouvem gritar
e que por isso me libertam bruscamente do cativeiro
escuro desse sonho. Não sabem
que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu
nome - porque a memória é uma fogueira dentro
das mãos e tu onde estás também não me respondes.
(Maria do
Rosário Pedreira)
sexta-feira, 18 de março de 2016
POSTAIS SEM SELO
… com a alegria sumptuária
de quem nasceu pobre e não ignora
que na morte ficará mais pobre ainda.
de quem nasceu pobre e não ignora
que na morte ficará mais pobre ainda.
Manuel de
Freitas
Legenda:
fotografia de Antanas Sutkus
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