quarta-feira, 31 de outubro de 2018

EM BUSCA DE SUCEDÂNEOS


No dia 19 de Janeiro de 1948, Cesare Pavese, coloca no seu Diário:

 «Comprei uma nova caneta de tinta permanente.»

A 10 de Fevereiro, constipado e com febre, começa outra vez a fumar. Engasga-se com o fumo. E escreve:

 «Encontrarei um sucedâmeo»

Estamos a umas 50 páginas do fim do livro, desse dia 18 de Agosto de 1950 em que decide:

«Não escreverei mais.»

Suicida-se a 26 de Agosto.

Francisco Duarte Mangas escreveu um poema dedicado a Cesare Pavese: 

«Virá a Morte e Terá os Teus Olhos:

«Tu não sabes as colinas
onde se derramou o sangue.
Todos nós fugimos
todos nós largámos
a arma e o nome. Uma mulher
olhava para nós quando fugíamos.
De nós só um
parou de punho cerrado,
olhou para o céu vazio,
inclinou a cabeça e morreu
contra o muro, em silêncio.
Agora é um trapo de sangue
e um nome. Uma mulher
espera-nos nas colinas.»

TRABALHO DE ESCRITOR


Porque é que o escritor não deve viver do seu trabalho de escritor? Porque então teria de fornecer uma determinada mercadoria. Deixa de ser livre perante si próprio. A todo o momento o escritor deve poder dizer: não, não escrevo isto. Isto é, ter outro ofício.
Haverá coisa mais arriscada do que sustentar uma família à custa dos romances que escrevemos ou, de uma maneira geral, à custa da pena?

Cesare Pavese em Ofício de Viver

OLHAR AS CAPAS


Poirot Salva o Criminoso

Agatha Christie
Tradução: M. E. Almeida Lima
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 107
Livros do Brasil, Lisboa s/d

 - Não é bem assim, sr.ª Welman. O dr. Lord diz que pode ainda viver muitos anos.
- Obrigada, mas não o desejo! Disse-lhe outro dia que num país decididamente civilizado, o que havia a fazer era eu declara-lhe categoricamente que queria terminar com isto e ele liquidava-me sem dor com qualquer droga apropriada. E disse-lhe mais: Se o doutor tivesse coragem, fazia-o!
- E que disse ele?
- O descarado limitou-se a rir de mim, filha e disse que não estava para se arriscar a ser enforcado. E acrescentou ainda: «Se me deixasse o seu dinheiro, era um caso diferente, é claro!» Ora vejam o impertinente! Mas eu gosto dele. As suas visitas fazem-me melhor do que os remédios que me receita.

SARAMAGUEANDO


«Em Lisboa, para votar. Encontro alguns amigos preocupados com o resultado das eleições de amanhã. Tudo aponta para uma vitória folgada de Jorge Sampaio, mas eles duvidam, parece-lhes ser bom de mais para poder ser verdade. Apresento um argumento para o qual não há resposta. «É impossível que este país tenha como presidente da República um homem chamado Aníbal Cavaco Silva. Não porque não  fizesse sentido, mas porque o faria de mais…»

José Saramago em Cadernos de Lanzarote IV Volume

O 4º Volume dos Cadernos de Lanzarote cobre o ano de 1996.

A 1 de Abril regista a morte de Mário Viegas:

«Mário Viegas morreu. Era um cómico que levava dentro de si uma tragédia. Não me refiro à implacável doença que o matou, mas um sentimento dramático da existência que só os distraídos e superficiais não eram capazes de perceber, embora ele o deixasse subir à tona da expressão às vezes angustiada do olhar e ao ricto sempre sardónico e amargão da boca. Fazia rir, mas não ria. Pouca gente em Portugal tem valido tanto.»

A 17 de Junho a «morte anunciada» de David Mourão-Ferreira:

«…não era só literariamente que tínhamos ficado mais pobres, que também ficávamos reduzidos espiritualmente. Ainda que a alguns possa parecer o mesmo, não o é.»

A 27 de Setembro dá notícia de que pediu a «Rui Godinho, vereador da Câmara Municipal de Lisboa, velho amigo e camarada», se conseguia descobrir a data do falecimento do seu irmão Francisco de Sousa dado não constar o averbamento do óbito no registo de nascimento e explica: «o que me leva a pedir a tua ajuda tem que ver com O Livro das Tentações, onde inevitavelmente falar desse Francisco de Sousa de quem não me lembro tal como estão as coisas agora, é como se eu tivesse um irmão imortal…»

Este Livro das Tentações será publicado no ano de Outubro de 2006 mas com o título de Pequenas Memórias.

A página final é para nos dizer que o ano entrou em Lanzarote com o acompanhamento de «uma trovoada gigantesca que parecia querer deitar abaixo o céu e afogar a terra num dilúvio.» e para nos fazer ver que «se entra na velhice quando se tem a impressão de ocupar cada vez menos lugar no mundo. Durante a infância e a adolescência cremos que ele é nosso e que para ser nosso existe, na idade madura começamos a suspeitar que afinal não é tanto assim e lutamos por que o pareça, começa-se a ser velho quando percebemos que a nossa existência é indiferente ao mundo. Claro que sempre o tinha sido, mas nós não o sabíamos.»

Legenda: capa de Cadernos de Lanzarote, Volume IV publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria da escritora Nélida Piñon. 

terça-feira, 30 de outubro de 2018

A PRIMEIRA VIRTUDE QUE SE PERDE


Chegamos ao fim do percorrer as páginas de O Ano da Morte de Ricardo Reis.
Aqui o mar acaba e a terra principia, são as primeiras palavras, as últimas serão: Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.
Um brilhante começo, um não menos brilhante findar de um extraordinário romance.

Então bateram à porta. Ricardo Reis correu, foi abrir já prontos os braços para recolher a lacrimosa mulher afinal era Fernando Pessoa, Ah, é você, Esperava outra pessoa, Se sabe o que aconteceu, deve calcular que sim creio ter-lhe dito um dia que a Lídia tinha um irmão na Marinha, Morreu, Morreu. Estavam no quarto, Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa choradeira. Anoitecera por completo. Meia hora passou assim ouviram-se as pancadas de um relógio no andar de cima. É estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembrava deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter ouvido pela primeira vez. Fernando Pessoa tinha as mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de cabeça baixa. Sem se mexer, disse, Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo. chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns meses, Lembro-me. Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa-de-cabeceira buscar The god of the labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo, Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar do desgosto de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer, E esse livro, para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma. Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu, Melhor da que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.

José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis

Legenda: Praça Duque de Terceira. Fotografia retirada do blogue Restos de Colecção.

OS AÇORES ESTÃO DESERTOS


A Capitania está fechada, mas o senhor Chaves recebe-me igualmente. É um homem distinto e amável, com um sorrisos aberto e ligeiramente irónico, os olhos de algum antepassado flamengo. Já não há quase nenhum, diz-me creio que não será fácil encontrar um embarque. Pergunto se se está a referir aos cachalotes, e ele ri-se divertido. Não, referia-me aos baleeiros, especifica, emigraram todos para a América, todos os açoreanos emigram para a América, os Açores estão desertos, não viu? Sim claro, apercebi-me disso, digo, lamento muito. Porquê?, pergunta ele? É uma pergunta embaraçosa. Porque gosto dos Açores, respondo com pouca lógica. Então gostará mais deles desertos, objecta.

Antonio Tabucchi em Mulher de Porto Pim

SARAMAGUEANDO


«A solidão, Sr. José, declarou com solenidade o conservador (cargo maior na Conservatória), nunca foi boa companhia, as grandes tristezas, as grandes tentações e os grandes erros resultam quase sempre de se estar só na vida, sem um amigo prudente a quem pedir conselho quando algo nos perturba mais do que o normal de todos os dias.»

José Saramago em Todos os Nomes

A génese de “Todos os Nomes” é uma investigação a que Saramago se entregou para saber algo do seu irmão Francisco, que morrera de difteria no Instituo Bacteriológico Câmara Pestana, mas não há registo da sua presença no Instituo, tão pouco, na Conservatória da Golegã se encontra o registo do seu falecimento. A investigação acaba por determinar que o irmão morrera de uma broncopneumonia no dia 22 de Dezembro de 1924 e foi enterrado na véspera de Natal.

No dia 8 de Novembro de 1996 escreve José Saramago no 4º volume de Cadernos de Lanzarote:

«Enfim, decifrou-se o mistério. O Chico – o meu irmão Francisco – faleceu às 18 horas do dia 22 de Dezembro de 1924, no Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, e foi enterrado às 16,35 horas do dia 24 de Dezembro, véspera de Natal. Tinha quatro anos e dois meses. Não morreu de difteria, ou garrotilho, como julgara minha mãe, mas de broncopneumonia. Morávamos então na Rua E, ao Alto do Pina.»

Dias depois, a 22 de Novembro:

«… é também de uma busca que se tratará em Todos os Nomes, um romance que com certeza não existiria (caso venha a existir, nunca se sabe…) se, banalmente, burocraticamente, o averbamento da morte do meu irmão constasse dos registos da Conservatória da Golegã. Digamos que o Francisco de Sousa, falecido na idade de quatro anos e dois meses, será co-autor de um livro que começou a ser escrito setenta e dois anos de pois da sua morte…»

José Saramago começou a trabalhar em Todos os Nomes no dia 24 de Outubro de 1997, «um romance onde não haverá nomes. Ter dito todos os nomes seria uma boa razão para não escrever nenhum.»

O protagonista é um homem de meia idade, funcionário inferior do Arquivo do Registo Civil. Este funcionário cultiva a pequena mania de coleccionar notícias de jornais e revistas sobre gente célebre. Um dia reconhece a falta, nas suas colecções, de informações exactas sobre o nascimento (data, naturalidade, nome dos pais, etc.) dessas pessoas. Dedica-se portanto a copiar os respectivos dados das fichas que se encontram no arquivo. Casualmente, a ficha de uma pessoa comum (uma mulher) mistura-se com outras que estás copiando. O súbito contraste entre o que é conhecido e o que é desconhecido faz surgir nele a necessidade de conhecer a vida dessa mulher. Começa assim uma busca, a procura do outro.

«Pessoas assim, como este Sr. José, em toda a parte encontramos, ocupam seu tempo ou o tempo que creem sobejar-lhes a vida a juntar selos, moedas, medalhas, jarrões, bilhetes-postais, caixas de fósforos, livros, relógios, camisolas desportivas, autógrafos, pedras, bonecos de barro, latas vazias de refresco, anjinhos, cactos, programas de ópera, isqueiros, canecas, mochos, caixinhas de música, garrafas, bonsais, pinturas, canecas, cachimbos, obeliscos de cristal, patos de porcelana, brinquedos antigos, máscaras de carnaval, provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por um pouco de tempo ainda o conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua coleção, porque quando chega o dia de ela se dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do colecionador, tudo volta ao princípio, tudo torna a confundir-se.»

O Sr. José fazia tudo com perfeição mas era um homem infeliz e só.

Isso mesmo lhe chamou a atenção o seu chefe: «os grandes erros resultam quase sempre de se estar só na vida.»

Eduardo Lourenço:

«Todos os Nomes é a história de amor mais intensa da literatura portuguesa de todos os tempos.»

Legenda: capa de Todos os Nomes publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de Miguel Gonçalves Mendes.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

TEMPO APÓS UM CONTRATEMPO


No primeiro dia do ano que vem, Jair Bolsonaro será o 38º presidente do Brasil.

Quase onze milhões de votos separam Bolsonaro (57.797.466 = 55,2%)  de Haddad(47.040.859 = 44,8%).

O Brasil está dividido.

Muitos dos que votaram em Bolsonaro, votaram na mudança.

Que mudança?

Esperar para ver, como diz o cego do costume.

No discurso de vitória ,Bolsonaro, jurou defender a liberdade, a democracia e ser o presidente de todos independentemente de região, cor ou orientações.

Não podemos mais flirtar com o comunismo, o socialismo, o extremismo.
O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

Amen, foi dizendo a futura primeira-dama, Michele de seu nome, a cada frase se Bolsonaro.

O resto não poderá ser o silêncio.

Devagar não se vai longe, tal como disse o poeta.

NOTÍCIAS DO CIRCO


O Governo, através do Ministério das Finanças, vai pedir ao Parlamento uma autorização de despesa no valor de 885,8 milhões de euros para gastar com os restos de dois bancos falidos ao abrigo do Orçamento do Estado de 2019: 337,6 milhões de euros para três veículos do Banif; 548,2 milhões para três sociedades com os restos do BPN.

Dos jornais

Legenda: fotografia do Expresso.

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Ao longe, a morte acena a Sam Shepard e ele fica com o entendimento que os seus leitores, ele próprio, merecem um último olhar sobre tabernas de cidades de fronteira ou perdidas no meio do deserto, terras de apaches e saguaros, sonhos e desventuras, olhar o céu, senti-lo perto de si, adormecer e acordar ao som do cântico dos tordos, uma espécie de melancolia, deitado à espera que alguém o encontre, algo de muito seu que lhe faça companhia na última viagem.

«Há alturas em que não posso deixar de pensar no passado. Sei que o presente é o lugar para se estar. Sei que me foi recomendado por pessoas muito sensatas que permanecesse no presente o mais possível, mas o passado apresenta-se. O passado não vem como um todo. Vem sempre em partes.»

Quem é que Sam espia?

Quem é que espia Sam?

Nem ele se lembra, ou sabe.

«Visto à distância. Isto é, a ver do outro lado da estrada, é difícil dizer qual a idade dele por causa do alpendre fechado com rede a toda a volta. Por causa dos óculos escuros a toda à volta. Roxos. O Mascarilha. Bandido mascarado. Não sei o que está a proteger. Está efectivamente dentro de um alpendre fechado, com insectos que zumbem, aves que chilreiam, todo o tipo de coisas estivais que vão ocorrendo, no exterior – borboletas, vespas, etc. -, mas é muito difícil dizer com exactidão a esta distância e a idade que tem. O boné de beisebol, as jeans encardidas, o colete velho.»

Sam Shepard começou a pensar no livro no ano de 2016.

Escreveu-o depois em rascunhos manuscritos já que a esclerose lateral amiotrófica que o atacou, impedia-o de dactilografar. Quando já não conseguia escrever à mão, passou a gravar os textos e os filhos faziam a transcrição para papel.

Patti Smith, amiga e antiga companheira apoiou-o na edição do manuscrito, quem mais o poderia fazer, ela que é uma eterna frequentadora de sombras, fragilidades várias, visões de cemitérios perdidos pelos mundos?

Sam fez a revisão do livro e ditou a versão final alguns dias antes de morrer, a 27 de Julho de 2017. Tinha 73 anos.

«A Lua está a ficar cada vez maior. A Lua dos Morangos (lua cheia do mês de Junho, Strawberry Moon, segundo nota do tradutor). Iluminando a nossa pequena trupe. A Lua Cheia. Dois filhos e o pai, com toda agente atrás. Seguindo pelo meio de East Water Street, e agora a noite está mesmo clara. A lua cheia. Conseguimos e coxeámos pelas escadas acima. Ou melhor, eu coxeei. Os meus filhos não coxearam, eu coxeei.»

Nas suas breves noventa e sete páginas, um livro desesperado mas um belíssimo livro.

Não sabemos o que pensar daquelas palavras dos seus últimos dias, não sabemos o que fazer quando fechamos o livro e o deixamos suspenso entre as mãos.

 «Aliás, já estou vazio. Do género de uma concha», escreveu Sam, no aproximar da página final quando sente que já não sabe como suportar a monotonia.

OLHAR AS CAPAS


Espião Na Primeira Pessoa

Sam Shepard
Tradução: Salvato Telles de Menezes
Capa: Teresa Reis Gomes
Quetzal Editores, Lisboa, Agosto de 2018

Fizeram-me todos os exames. Lá no meio do deserto. Do deserto pintado. Terra de apaches. Terra de saguaros. Fizeram-me análises ao sangue, é claro. Todos os tipos de análises ao sangue para analisar os meus glóbulos brancos, para analisar os meus glóbulos vermelhos, analisando-os uns em oposição aos outros. Depois fizeram exames à minha espinal medula. Até me fizeram uma punção lombar. Fizeram-me várias ressonâncias magnéticas. Tubos pelos quais era possível olhar para todo o meu corpo para ver se havia qualquer paralisia de ossos e músculos. Amostras, cortes transversais. Raios X. Imagens fantasmáticas. E observaram a deterioração e observaram todo o tipo de coisas e não conseguiram apresentar nenhuma resposta até que apareceu por fim um tipo, creio que era um neurocirurgião, tinha cabelo preto e uma bata branca e óculos, electrochoques de sondagem com uma vara metálica. Injetou-os em ambos os braços e uma corrente eléctrica começou a pulsar e senti esses choques nos meus braços. Foi ele que apresentou a resposta de que havia alguma coisa que não estava bem. E eu disse, bom, eu sei que alguma coisa não está bem. Porque acha que estou aqui? Limitou-se a olhar para mim com uma expressão vazia.
De manhã ia tomar o pequeno-almoço a uma tasca mexicana. Enchiladas. Queijo com ovos. Pimentos verdes.

A VIDA NÃO PASSA DE UMA TROCA DE CHEIROS


Os médicos autorizaram-me o uso moderado de bebidas alcoólicas. Para festejar a notícia, ao entardecer entrei na taberna A Estrela da Suécia, para beber uma taça de rum quente. Al balcão havia pescadores, guardas fiscais, carregadores. Acima de todas as vozes pontificava a de um velho fardado de guarda prisional, que desatinava ebriamente num mar de verborreia: - E todas as quartas-feiras a donzela perfumada me dá uma nota de cem coroas para que a deixe a sós com o recluso. E à quinta as cem coroas já marcharam em cerveja que nunca mais acaba. E quando chega ao fim da hora da visita a donzela sai com o fedor da cadeia nos seus vestidos elegantes; e o recluso torna para a cela com o perfume da donzela na sua roupa de condenado. E eu fico com o cheiro da cerveja. A vida não passa de uma troca de cheiros.
- A vida e também a morte, podes dizê-lo – respondeu outro bêbado, cuja profissão, como fiquei logo a saber, era coveiro – Eu com o cheiro da cerveja tento tirar de cima o cheiro a morto. E só o cheiro a morto te tira da cima o cheiro a cerveja, como a todos os bebedores a que tenho de abrir a cova.
Interpretei este diálogo como um aviso para me pôr em guarda: o mundo está a desfazer-se e tenta atrair-me para a sua dissolução.

SARAMAGUEANDO



«Uma leitora na Feira: «Para o ano que vem teremos mais Cadernos?» Respondo medievalmente como de costume: «Vida havendo e saúde não faltando…» E ela: «É que quero ler neles a notícia do Prémio Nobel…» Ponho a cara de sempre, sorriso contrafeito, tonto e de pouco caso, agradeço a gentileza do voto, e passo a assinar o livro que o leitor seguinte me apresenta. «Eu também…», diz este, que ouviu a rápida troca de palavras. Desta vez fico sem saber que sorriso pôr. O terceiro leitor, felizmente, é dos calados,»

José Saramago em Cadernos de Lanzarote Volume III


Desde Lanzarote, terceiro volume do «contar os dias pelos dedos e encontrar a mão cheia.»

O ano é o de 1995 e logo nos primeiros dias regista a morte de Miguel Torga:

«Sempre se morre demasiado cedo.»

Miguel Torga morreu com 87 anos.

«Compreendo agora quanto gostaria de tê-lo conhecido. Demasiado tarde.»

Preste o ano a findar, outra morte: a de Fernando Assis Pacheco.

«Não éramos amigos o que se chama amigos, mas havia ente nós relações muitos cordiais, de simpatia e respeito mútuos, e a admiração que sentia por ele não a sinto por muitos. Morreu daquele coração que desde há muitos anos o vinha ameaçando. Morreu numa livraria, provavelmente o lugar que ele próprio teria escolhido para quando tivesse de sair da vida.»

Legenda: capa de Cadernos de Lanzarote Volume III publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de  José Carlos de Vasconcelos.

domingo, 28 de outubro de 2018

NÃO ACRESCENTO RAZÕES DE DESCULPA


António Ramos Rosa era de uma humildade comovedora. Na véspera de Natal do ano de 1962, sabendo que Jorge de Sena iria partir para Luanda, escreve-lhe uma carta a devolver uns livros que Sena lhe emprestara:

Prezado Camarada:

Só hoje lhe pude enviar pelo correio, registado, a última remessa de livros que teve a gentileza de me emprestar. Peço-lhe desculpa de não os ter remetido mais cedo e não os ter entregue, como tinha combinado antes da sua partida para Inglaterra, em fim de Outubro.
Receio também que esta carta assim como a encomenda, caso seja verdadeira a informação que me deram que V. partiria para Luanda precisamente dia 25, não chegue a horas de recebê-la.
Por tudo isto receio que V. esteja justamente melindrado comigo. Não acrescento razões de desculpa, porque sei que V. dispensá-las-á. Apenas lhe peço para que acredite na involuntariedade da minha culpa.
Não tendo mais um minuto para lhe escrever, pois são horas do correio, envio-lhe os meus votos de felicidade e peço-lhe que creia na estima e camaradagem do

António Ramos Rosa


Legenda: António Ramos Rosa

LEITURAS


No dia 21 acabámos de percorrer O Livro dos Salmos de Mário Castrim.
No seu lugar irá surgir a Correspondência trocada entre António Ramos Rosa e Jorge de Sena.
Jorge de Sena é o escritor que mais livros publicados tem de correspondência trocada com os seus pares.

SARAMAGUEANDO


«A minha Lisboa foi sempre uma Lisboa de bairros pobres, quando muito remediados, e se as circunstâncias me levaram, mais tarde, a viver noutros ambientes, a memória mais grata e mais ciosamente defendida foi sempre a de Lisboa a da Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa da gente de pouco ter e pouco sentir, ainda rural nos costumes e na ideia que fazia do mundo»

José Saramago em Cadernos de Lanzarote, II Volume.

Razões existirão – cada um com a sua! – para que os leitores, a crítica teça loas aos romances, e outros livros, de Saramago e torça o nariz aos diários escritos em Lanzarote.

Este é o segundo volume, publicado em Março de 1995 e referente ao ano de 1994.

Entrada escrita no dia 28 de Fevereiro:

«Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.»

A 1 de Dezembro palavras sobre a morte De Fernando Lopes Graça:

«Morreu o querido Graça, o amigo do coração, o camarada fidelíssimo e leal. Tudo isso acabou. Sim, já sei, a recordação, a memória, a saudade, a lembrança. Essas coisas duram, de facto, mas porque duram, cansam. Um dia destes a evocação de Lopes-Graça só causará uma leve mágoa, que disfarçaremos contando uma das sua mil vezes repetidas anedotas. Buscaremos então o Graça onde ele verdadeiramente sempre esteve: nos seus livros, de uma linguagem puríssima que poderia servir de lição a escritores, principiando por este; nos seus discos, mas também nas salas de concerto, que não lhe abriram tanto quanto deveriam enquanto viveu. O homem acabou, não podemos pedir-lhe mais nada, mas a obra aí ficou, à espera do que sejamos capazes de pedir a nós próprios. O justo juízo vem sempre depois, quase sempre tarde de mais. Talvez seja essa a causa do amargor de boca que sinto ao terminar estas linhas.»

Legenda: capa de Cadernos de Lanzarote II Volume publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de José Santa-Bárbara.

sábado, 27 de outubro de 2018

A FRASE DE SEMPRE: «E AGORA, BRASIL?»




São negros os tempos que se avizinham.

As sondagens indicam que o fascista Jair Bolsonaro ganhará a segunda volta das presidenciais.

Entre tantas lamentáveis frases, já disse:

«O erro da ditadura foi torturar e não matar.»

«Mulher deve ganhar salário menor porque engravida.»

«Opositores devem sair do País ou serão presos.»

«Vamos varrer do mapa esses bandidos vermelhos do Brasil»

«Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí.»

«Não te estupro porque você não merece», para a deputada federal Maria do Rosário.

Isto foi dito em campanha eleitoral, poder-se-á pensar o que irá dizer, e fazer, se vier a ser eleito.

Há uma leve, apenas leve, esperança que o povo brasileiro consiga inverter o que as sondagens mostram.

Uma luta a travar até ao último segundo.

Que não haja nenhum brasileiro que pense como a «democrata» e «cristã» Assunção Cristas: «Entre Haddad ou Bolsonero escolhia não votar.»

É certo que a esquerda brasileira cometeu muitos erros.

No meio de toda a tristeza com que escrevo estas linhas, lembro-me daquele poema de Sophia Mello Breyner Andresen, que é uma lição de política e que se pode estender a qualquer país:

«Os ricos nunca perdem a jogada
nunca fazem um erro.
Espiam
e esperam os erros dos outros,
são hábeis e sábios
têm uma larga experiência do poder
e quando não podem usar a própria força
usam a fraqueza dos outros
e ganham.»

Tempo ainda para lembrar Carlos Drummond de Andrade:

«Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas

VEJA-ME ESSE PROBLEMA NO SEU MORAIS


Encontrei ontem o Carlos que reescreveu Os Pequenos Burgueses em dois meses e meio.
- Ficou um livro realmente diferente… E tão diferente que penso em mudar-lhe o título. Qualquer coisa deste género: Os Pequenos Burgueses e Outras Personagens.
Aqui levantou-se-lhe o eterno problema. Personagem é masculino ou feminino? Como toda a gente sabe os puristas afirmam que é feminino. «O personagem» é um horrendo galicismo.
- Mas a mim soa-me muito mal «outras personagens»!
Você é capaz de me ver esse problema no seu Morais?
À noite telefonei-lhe e li-lhe duas abonações clássicas constantes do maorai (uma de Manuel Bernardes e outra de Francisco Manuel e Melo) que justificam o emprego de personagem no masculino.
O Carlos respirou feliz ao telefone,

José Gomes Ferreira em Dias Comuns Volume IX

Legenda: pormenor da página do Dicionário de Morais para a entrada «personagem», problema que Carlos de Oliveira pediu a José Gomes Ferreira para lhe resolver.

SARAMAGUEANDO


«Haverá um governo, disse o primeiro cego. Não creio, mas no caso de o haver, será um governo de cegos a quererem governar cegos, isto é, o nada a pretender organizar o nada, Então não há futuro, disse o velho da venda preta, Não sei se haverá futuro, do que agora se trata é de saber como poderemos viver neste presente, Sem futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse, Pode ser que a humanidade venha a conseguir viver sem olhos, mas então deixará de ser humanidade, o resultado está à vista, qual de nós se considera ainda tão humano como antes cria ser.»

José Saramago em Ensaio Sobre a Cegueira

No dizer de Baptista-Bastos, Ensaio Sobre a Cegueira é uma verdadeira descida aos infernos.

Maria Alzira Seixo, num artigo no JL, «considera-o um livro impressionante, de leitura muito incómoda, mas que nos mantém presos até à última linha, e ainda bem, porque os últimos capítulos são uma espécie de libertação para as personagens, mas muito especialmente para o leitor, que se sente reconciliado com os problemas que lhe foram sendo postos ao longo dos capítulos, numa reconciliação que não é apagamento, mas antes intensificação dos problemas e das perplexidades que o texto levanta e configura, em proposta de reflexão e advertência para um olhar mais atento sobre o quotidiano.»

A ideia do livro ocorreu a Saramago, no dia 6 de Setembro de 1991, enquanto esperava que lhe servissem o almoço no restaurante Varina da Madragoa:

A pergunta que faz a si mesmo: E se nós fôssemos todos cegos?

De imediato saiu-lhe a resposta: Mas nós estamos todos cegos.

Mais tarde escreverá:

Estamos cada vez mais cegos porque cada vez menos queremos ver.

Segundo se pode ler no 3º volume de Cadernos de Lanzarote, Saramago terminou o livro no dia 8 de Agosto de 1995 quase quatro anos após o surgimento da ideia.

«E lutei, lutei muito. Só eu sei quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que a toda a hora me iam atravessando na história e me paralisavam. Como se isto não fosse bastante, desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei de sofrer mais.»

Um jornalista do Públic” perguntou-lhe como gostaria de ser recordado.

José Saramago respondeu:

«Como o escritor que criou a personagem do cão das lágrimas, no “Ensaio sobre a cegueira”. É um dos momentos mais belos que fiz até hoje como escritor. Se no futuro puder ser recordado como “aquele tipo que fez aquela coisa do cão que bebeu as lágrimas da mulher” ficarei contente.»


É este o pedacinho de oiro: 

«Não há dúvida, está perdida. Deu uma volta, deu outra, já não reconhece nem as ruas nem os nomes delas, então, desesperada, deixou-se cair no chão sujíssimo, empapado de lama negra, e, vazia de forças, de todas as forças, desatou a chorar. Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe na cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágrimas chora-as abraçada a ele. Quando enfim levantou os olhos, mil vezes louvado seja o deus das encruzilhadas, viu que tinha diante de si um grande mapa, desses que os departamentos municipais de turismo espalham no centro das cidades, sobretudo para uso e tranquilidade dos visitantes, que tanto querem poder dizer aonde foram como precisam saber onde estão. Agora, estando toda a gente cega, parece fácil dar por mal empregado o dinheiro que se gastou, afinal há é que ter paciência, dar tempo ao tempo, já devíamos ter aprendido, e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte, só ele sabe o que lhe terá custado trazer aqui este mapa para dizer a esta mulher onde está. Não estava tão longe quanto cria, apenas se tinha desviado noutra direcção, só terás de seguir por esta rua até uma praça, aí contas duas ruas para a esquerda, depois viras na primeira à direita, é essa a que procuras, do número não te esqueceste. Os cães foram ficando para trás, alguma coisa os distraiu pelo caminho, ou então muito habituados ao bairro e não querem deixá-lo, só o cão que tinha bebido as lágrimas acompanhou quem as chorara, provavelmente este encontro da mulher e do mapa, tão bem preparado pelo destino, incluía também um cão».

Legenda: capa de  Ensaio Sobre a Cegueira publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de Chico Buarque de Holanda.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

NOTÍCIAS DO CIRCO



Segundo o Jornal de Notícias, há câmaras ainda a pagar os estádios do Europeu de Futebol de 2004 e algumas têm elevadas dívidas em empréstimos contraídos na altura. Ao todo, falta pagar 107,4 milhões de euros e a de Leiria é a que tem a factura mais pesada.

MAS É MELHOR DO QUE ESTAR MORTO


Entramos hoje na entrevista que Luiz Pacheco deu a Paula Moura Pinheiro e publicada no Já, Julho de 1996, compilada em O Crocodilo Que Voa.

É hipocondríaco? Anda há quarenta anos a ameaçar que morre e afinal está a enterrar todos os outros.

Deixe-os ir. Os que vão á minha frente vão todos bem. Há uns anos o Saramago teve uma pataleta e eu liguei-lhe logo: «Tu não te deixes morrer que ainda temos de ir juntos ao funeral do Pires.» Há gente da minha idade que passa o tempo nos médicos, nos exames, nas análises. Eu devo ter dez doenças mortais mas só me apanham lá em último caso. E você não faz ideia das noites que eu passo aqui. É assim: adormeço por volta das oito horas, porque tomo um remédio. Durmo duas horas. Depois acordo. O remédio é diurético e eu tenho de urinar de duas em duas horas e de tomar de seis em seis dias. E é assim toda a noite. Foi assim toda a vida. Tive o meu primeiro ataque de asma quando tinha três meses. Mas sempre é melhor do que estar morto.

Porque é que finalmente se filiou no PCP?

Antes de 74 eu admirava o partido, mas sempre soube que não era talhado para guardar segredos. Não queria que me arrancassem as unhas ou me dessem bofetadas. Agora é diferente. E essa história de que o comunismo está acabado é mentira. Tenho gosto em estar no PCP, é uma coisa platónica.

OLHAR AS CAPAS


Mau Tempo no Canal

Vitorino Nemésio
Introdução de José Martins Garcia
Capa: José Rego
Obras Completas de Vitorino Nemésio: Vol. VIII
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa Maio de 1994

― Estás velha, hem? ...
― Velha, não; mas enfim ... o tempo não passa só para quem viajou muito como o tio. Quem me dera! ...
― Viajar ou envelhecer?
― Talvez as duas coisas ...
Sentiu sede de se abrir toda ao tio, explicar aqueles dois pontos que ele isolara tão bem a rasto da recordação do seu dia de anos no Pico; mas não achou palavras sensatas, ou pelo menos capazes de serem ditas ali de selim a selim, nos campos tão bonitos. As culturas começavam a cobrir-se das primeiras flores singelas; os olhinhos das árvores abotoavam discretamente. O verde-negro dos pastos, o verde dos Açores, quente e húmido, emborralhava-se até longe. Os cavalos seguiam de cabeça comprida, fazendo vibrar de vez em quando as ventas.
... Envelhecer não seria; mas era deixar passar um grande espaço de tempo, como um troço de filme em branco, fechar os olhos ao peso daquela doçura da volta, tapar os ouvidos como quem teve um mau dia e chora ao meter-se na cama, moída, gasta ... Na manhã seguinte acordar, mas passados uns anos, longe do Faial, ou noutro Faial só com o caminho à roda, o Pico em frente ... gaivotas ... sem ninguém.
O tio tinha dito: «viajar ou envelhecer?» Margarida gastara a resposta naquele silêncio e os olhos nas orelhas do cavalo.

SARAMAGUEANDO


«Na Feira aparece uma pessoa a comprar todos os meus livros. Põe-nos todos diante de mim para que os autografe, os grossos e os finos, os caros e os baratos, trinta e tal contos de papel, conforme vim a saber depois, e o que me desconcerta é que o homem não é um convertido recente ao saramaguismo, um adepto de fresca data, um neófito disposto às mais loucas ousadias, pelo contrário, fala do que de mim leu com à vontade e discernimento. Resolvo-me a perguntar-lhe a razão da ruinosa compra, e ele responde simplesmente, com um sorriso onde aflorou uma rápida amargura: “Tinha-os todos, mas ficaram na outra casa.” Compreendi. E depois de ele se ir embora, ajoujado sob a carga, pus-me a pensar na importância dos divórcios na multiplicação das bibliotecas…»

José Saramago em Cadernos de Lanzarote, 1º Volume.

Os Cadernos de Lanzarote são a parte borbulhosa da obra de José Saramago.

Logo a abrir, o autor diz ao que vem:

«Este livro, que vida havendo e saúde não faltando terá continuação, é um diário. Gente maliciosa vê-lo-á com um exercício de narcisismo a frio, e não serei eu quem vá negar a parte de verdade que haja no sumário juízo, se o mesmo tenho pensado algumas vezes perante outros exemplos, ilustres esses, desta forma particular de comprazimento próprio que é o diário.»

Torcato Sepulveda no Público de 16 de Abril de 1994:

«Cadernos de Lanzarote” assemelha-se a um guía das viagens do autor pelo mundo fora, porque o convidam muito para falar sobre as suas ideias. Ainda assim, isso poderia ajudar-nos a entender a obra de Saramago, se ele nos transmitisse aquilo que disse nesses colóquios aos seus ouvintes. Mas o que lá está limita-se, quase sempre, a comunicar-nos que ocorreram sucessos, que os estrangeiros o estimam, enquanto em Portugal não o amam.»

António Tabucci no JL, 4 de Janeiro de 1995:

“José Saramago, que diz ter ido procurar a solidão nas Ilhas Canárias, é o menos solitário de todos nós. O seu “Diário” desenrola-se entre jantares elegantes, editores internacionais, cocktails, recepções nas embaixadas e citações de elogios à sua pessoa.
Como bom novo-rico, Saramago, impante de orgulho do seu renome internacional, exibe-o qual troféu, assim como os caçadores nos romances de Hemingway exibem a cabeça de uma gazela.
Um médico da minha aldeia, uma espécie de médico filósofo, discípulo de Hipócrates e Galeno, disse-me recentemente uma coisa que me deu que pensar: os escritores quando envelhecem, devem ter cuidado com duas hipertrofias, a do ego e da próstata. Não conheço o estado da próstata de Saramago, mas a sua hipertrofia do ego, é evidente neste “Diário” que anda à volta do seu umbigo.»


Ainda Saramago:

Na verdade, terá de vir procurar-me nestas crónicas quem verdadeiramente me quiser conhecer.

Contracapa do 1º volume dos Cadernos de Lanzarote:

«Contar os dias pelos dedos e encontrar a mão cheia.»

Cadernos de Lanzarote


1º volume: Março de 1994
2º volume: Março de 1995
3º volume: Março de 1996
4º volume: Março de 1997
5º volume: Outubro de 1998.

«A pasta Cadernos de Lanzarote estava no computador de José Saramago, e sempre que Pilar del Río lá entrava pensava que continha apenas os cadernos que já estavam publicados. Mas, no final de Fevereiro — quando estava à procura de uma referência a uma determinada conferência, a pretexto do livro que reúne conferências e discursos públicos de José Saramago, e que o seu biógrafo Fernando Gómez Aguilera, autor do livro e curador da exposição José Saramago. A Consistência dos Sonhos, está a organizar —, a viúva do escritor fez o que nunca tinha feito. Clicou na pasta e deparou-se com: caderno 1, caderno 2, caderno 3, caderno 4, caderno 5 e caderno 6…»

Explicação pública de Pilar del Rio.

Esse 6º Volume, Último Caderno de Lanzarote, foi agora publicado.

Num destes dias falaremos desse Diário, escrito no ano em que foi atribuído a José Saramago o Nobel da Literatura.

Legenda: capa de  Cadernos de Lanzarote I publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria da pintora Graça Morais.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

DESFEITO EM NOSTALGIA


Aqui estou eu no meu quarto habitual, onde me parece ter estado sempre. Como tantas outras manhãs da minha vida, encontro-me em casa a escrever. Ressoa, vibrante a música Be My Baby, cantada pelas The Ronettes. Quando tinha dezasseis anos, era a minha canção favorita. De repente, ouço perfeitamente que alguém acaba de chegar ao patamar, no elevador. Mas ´estranho. Quem chegou não toca a nenhuma das quatro portas, nem se decide a abrir nenhuma delas. É como se tivesse ficado indeciso, aturdido ou simplesmente imóvel, ali. Vivo há tantos anos nesta casa, que controlo muito bem os sons que se possam ouvir perto da minha porta. Passam quase dois minutos até que, exactamente quando a canção termina, tocam à minha campainha. Abro. Vejo um homem, mais ou menos da minha idade. É o estafeta de uma editora e veio entregar-me um livro. Dá-mo e assino o papel. «As Ronettes…», sussurra o homem, melancólico. «Põem-me bem-disposto», comento sem me mostrar surpreendido – embora o esteja – poe ele conhecer The Ronettes. Sorrio, despeço-me, fecho a porta devagar, com a amabilidade habitual. Fico à escuta atrás da porta e noto que o homem não entra no elevador. É possível que tenha voltado a ficar imóvel no patamar. Seguramente, deixou-se ficar encostado a uma parede, quebrado, desfeito de nostalgia e até a chorar, à espera que volte a pôr-lhe Me My Baby.

Enrique Vila-Matas em Diário Volúvel



                                         

LEITURAS


O Diário Volúvel de Enrique Vila Matas está aqui na casa desde Junho de 2013 e navega sempre nas margens da entrada para as Leituras.

Escreveu Jorge Marmelo:

«Para os devidos efeitos declaro que fumo, bebo e sou viciado em Enrique Vilas-Matas, o escritor catalão. Sinto tremuras assim que tomo conhecimento da publicação de alguma coisa que ele tenha escrito. Tento resistir, mas acabo sempre por ir furtivamente até alguma livraria a fim de adquirir a minha dose. Perguntam-me se "é para oferta" e eu tenho vontade de responder o mais sinceramente que posso.»

Diário Volúvel chega agora ás Leituras.

Histórias quotidianas deste catalão e de outros que ele entende, por bem, visitar e colocar em destaque. Gosta de Portugal que, em boa e excelente parte lhe foi dado a conhecer pelo editor Manuel Hermínio Monteiro, não poderia ter encontrado melhor cicerone, tem um romance a que chamou Estranha Forma de Vida que é um fado de Amália Rodrigues.

«Despedimo-nos todos os dias de alguém que nunca mais voltaremos a ver. Como estamos sempre a despedir-nos perigosamente, há tardes em que me despeço de toda a gente e, quando fico só, decido retardar o meu regresso a casa para evitar que me ocorra o que aconteceu a uma amiga que se despediu e nunca mais a voltámos a ver.»

Diário Volúvel substitui nas leituras a Correspondência trocada entre António José saraiva e Óscar Lopes e tem uma tradução competente de Jorge Fallorca.

OLHAR AS CAPAS


Dito Em Voz Alta
Entrevistas sobre literatura, isto é sobre tudo

Manuel António Pina
Organização: Sousa Dias
Colecção Linhas de Fuga mº 11
Documenta, Lisboa Junho de 2016

Eu, que já fui agnóstico, agora sou mesmo ateu. Mas tenho muita sedução por religiões e por livros religiosos. Sou um grande leitor da Bíblia, embora laeia aquilo como um romance.

SARAMAGUEANDO


«Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios., e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava.»

José Saramago em O Evangelho Segundo Jesus Cristo

O livro da grande polémica.

 «Eu vivo nesta sociedade: portanto ateu, comunista e tudo isso, Não me retira o direito de questionar ou de estudar uma figura que é decisiva, é a figura fundamental na civilização em que eu vivo.» 

A mais lamentável polémica que rodeia este livro, respeita ao governo de Cavaco Silva, mais Santana Lopes e um tal de Sousa Lara, ao recusarem a inclusão do livro na lista de candidatos ao Prémio Europeu de Literatura.

Entendiam estas três incultas pessoas que Saramago atacava princípios que tinham a ver com o património religioso português, dividindo os gentios pátrios.

A ridícula e miserável atitude desse ser inenarrável ser que dá pelo nome de Cavaco Silva mais os seus «muchachos», é responsável por Saramago ter ido viver para Lanzarote e, porventura, rasgou os caminhos para que o Nobel viesse a ser-lhe  atribuído.

«Quando o senhor Sousa Lara já nem a si mesmo se representar, eu ainda representarei este país.»

José Saramago, 2 de Maio de 1992.

Legenda: capa de O Evangelho Segundo Cristo publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria do fotógrafo Sebastião Salgado.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

EM BUSCA DE UM SUCEDÂNEO


10 de Fevereiro de 1948

Terça-feira (constipado e com febre), comecei outra vez a fumar há dois dias e senti novamente a irritação terrível, intolerável. Desisti-desistir. O mesmo jogo de há vinte anos, quando me engasguei com o fumo do cigarro e tive de desistir. Encontrarei um sucedâneo?

Cesare Pavese em Ofício de Viver

Legenda: Cesare Pavese.

OLHAR AS CAPAS


O Caso do Gato Envenenado

Erle Stanley Gardner
Tradução: José Correia Ribeiro
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 84
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Os olhos do gatinho oscilavam seguindo a bola de papel que Helen Kendal acenava por cima do braço da cadeira. O gatinho chamava-se Ambar por causa da cor amarela dos seus olhos.
Helen gostava de os observar. As suas pupilas negras estavam em constante mutação, ora estreitando-se em expressão diabólica, ora alargando-se em manchas opacas de ónix. Aqueles olhos negros amarelados tinham efeito quase hipnótico sobre Helen. Depois de os observar durante alguns instantes, os seus pensamentos pareciam esvair-se. Chegava ao ponto de se esquecer dos factos próximos, tais como a data em que estava, aquela sala e o gatinho… esquecia-se até de Jerry Templar e das manias excêntricas da tia Matilde e acordava a recordar-se subitamente de coisas distantes ou muito remotas.

SARAMAGUEANDO



«Deixe que me despeça com um beijo, está a chegar o tempo deles, Para mim já vai tardando, Só uma pergunta mais, Diga, Já começou a escrever a História do Cerco de Lisboa, Já, Não sei se continuaria a gostar de si se me respondesse que não, adeus.»

José Saramago em História do Cerco de Lisboa

«Tenho a impressão que aquilo que em mim podia ser poético está nos romances.»

É uma frase perdida nas muitas e muitas entrevistas que Saramago deu.

Uma outra:

«Considero difícil escrever um romance sem lhe meter uma história de amor, mesmo que se trate de amores infelizes. Sempre terá que haver um homem e uma mulher e neste livro a história de amor empurrou a história da guerra.»

Podemos dizer que História do Cerco de Lisboa é um livro de História,  mas, no fundo dos fundos, é um romance de amor.

No tempo da sua publicação, José Carlos de Vasconcelos não tem dúvidas em considerar a História do Cerco de Lisboa como o melhor romance de Saramago:

 «O de mais notável construção, simultaneamente o mais inventivo e o mais equilibrado, o de maior riqueza e até complexidade de planos, que se vão sucedendo, entrelaçando ou quase sobrepondo, apesar de oito séculos de história os separar, e ao mesmo tempo o mais límpido até na escrita.»

É a história de um homem, Raimundo Silva de seu nome, que está a rever um livro que se chama História do Cerco de Lisboa. 

Intencionalmente apõe um não a um texto histórico sobre o cerco de D. Afonso Henriques a Lisboa.

«Está como fascinado, lê, relê, torna a ler a mesma linha, esta que de cada vez redondamente afirma que os cruzados ajudarão os portugueses a tomar Lisboa.
(…)
É evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente.»

O erro é descoberto, publica-se a obra com uma errata e os directores da editora chamam Raimundo à pedra dizendo-lhe que semelhante coisa não poderá voltar a acontecer sob pena de prescindirem dos seus serviços de revisor.

Maria Sara, responsável da editora pelos revisores, presente na reunião mas que nada disse, chama Raimundo Silva ao seu gabinete e entrega-lhe um exemplar do livro sem a errata. E a partir do voluntário erro incita-o a escrever a reinvenção da história do cerco de Lisboa.

O amor irrompe entre Sara e Raimundo, razão para a citação que está no topo do texto e que se repete:

«Deixe que me despeça com um beijo, está a chegar o tempo deles, Para mim já vai tardando, Só uma pergunta mais, Diga, Já começou a escrever a História do Cerco de Lisboa, Já, Não sei se continuaria a gostar de si se me respondesse que não, adeus.»

Legenda: capa de História do Cerco de Lisboa publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de Álvaro Siza Vieira.