quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

POSTAIS SEM SELO

Se queres alguém em quem confiar, confia em ti.

Bob Dylan

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

DIGA QUAL O PREÇO


Tenho uma prece
para ser dita
tenho palavras
para serem ouvidas.
Os soberbos não querem
os tiranos não deixam.

Se quem pode ajudar-me não ajuda
diga qual é o preço.

Ao menos diga.

Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

OLHAR AS CAPAS


O Adversário Secreto

Agatha Christie
Tradução: Isaac Soares
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 43
Livros do Brasil, Lisboa s/d

_ Querida! Exclamou Tommy, apertando-a nos braços.
- Decidi a obrigá-la a dizer. E isso por causa do modo implacável como você me fulminava quando eu tentava ser sentimental.
Tuppence ergueu o rosto. O táxi continuava a sua marcha pela ala norte de Regent’s Park.
- Você ainda não se declarou verdadeiramente – observou Tuppence. Ao menos, segundo o que as nossas avós entendiam por uma declaração. Mas, depois de escutar a incrível declaração de Julius, inclino-me a dispensá-lo da formalidade.
- Você não pode deixar de casar comigo.
- Será uma pândega! – respondeu Tuppence. – Dão ao casamento toda a sorte de denominações: um abrigo, um refúgio, uma coroa de glória, um estado de servidão e inúmeras coisas. Mas sabe o que penso que seja o casamento?
- Que é?
- Um divertimento.
- E um divertimento espantosamente bom! – Disse Tommy.

UM HOMEM PODE AMAR UMA PEDRA


Um homem pode amar uma pedra
uma pedra amada por um homem não é uma pedra
mas uma pedra amada por um homem

O amor não pode modificar uma pedra
uma pedra é um objecto duro e inanimado
uma pedra é uma pedra e pronto

Um homem pode amar o espaço sagrado que vai de um homem a uma pedra
uma pedra onde comece qualquer coisa ou acabe
onde pouse a cabeça por uma noite
ou sobre a qual edifique uma escada para o alto

Uma pedra é uma pedra
(não pode o amor modificá-la nem o ódio)

Mas se a um homem lhe der para amar uma pedra
não seja uma pedra e mais nada
mas uma pedra amada por um homem

Ame o homem a pedra
e pronto


Emanuel Felix

Legenda: fotografia de Gérard Castello-Lopes

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

QUOTIDIANOS


Resto de conversa, apanhado no metro, entre duas mulheres negras:

- Não é por chegarmos chibata aos nossos filhos que deixamos de gostar deles. Está na Bíblia, é palavra de Deus!

NOTÍCIAS DO CIRCO


Face aos números de 2016 as vendas das lojas Pingo Doce e Continente registaram um crescimento de 531 milhões de euros em Portugal durante o ano passado: 173 milhões para a primeira, 358 milhões para a segunda.
Apesar destes valores, grande parte d os trabalhadores auferem o ordenado mínimo nacional e praticando horários a roçar a quase escravatura.
Lembrar, de novo, a frase histórica de Belmiro de Azevedo:
«Diz-se que não se devem ter economias baseadas em mão-de-obra barata. Não sei por que não. Porque se não for a mão-de-obra barata, não há emprego para ninguém.»

GOSTARIA QUE HOUVESSE UM NOBEL PORTUGUÊS...


Carta de Sophia, datada de Março de 1978, para Jorge de  Sena:

Surgiu um facto que quero que fique claro: Por alturas de Dezembro recebi uma carta da Academia Sueca a convidar-me para eu propor um candidato ao Nobel da Literatura. No ano passado propus o teu nome. Depois disso, aqui há tempos surgiu uma comissão propondo o Torga e pediram-me que me associasse à sua proposta. Associei-me pois não me podia negar. Primeiro porque admiro muito o Torga, segundo porque gostaria que houvesse um Nobel português, uma vez que seja um escritor que tenha um nível de qualidade que como pátria me honre. Isto é : eu queria que o voto em ti funcionasse a teu favor, mas não contra o Torga. Para que não fosse diminuída a possibilidade de o Nobel ser atribuído a um português. Em consequência escrevi de novo à Academia Sueca explicando que mantinha o voto em ti mas que também apoiava uma candidatura do Torga dado que ambas eram candidaturas com grande qualidade e dignidade.
Só te digo isto a ti porque a carta da Academia Sueca me pede silêncio sobre o meu voto por isso te peço que não fales disto a ninguém.

OLHAR AS CAPAS


Teatro I
Ti Coragem e os Seus Dois Filhos
A Boa Alma de Sé-Chuão

Bertolt Brecht
Tradução: Ilse Losa
Poemas de Ti Coragem e os Seus Dois Filhos traduzidos por Jorge de Sena
Poemas de A Boa Alma de Sé-Chuão traduzidos por Alexandre O’Neill
Capa e desenho: Tóssan
Portugália Editora, Lisboa, 1961

A Canção do Fumo

O avô:

Em tempos, ainda não tinha eu estes cabelos brancos,
Julgava poder viver perfeitamente
Só da minha esperteza, como tantos…
Mas hoje sei: não há esperteza que sobre
Para encher o estômago dum pobre.
Portanto digo: deixa-te disso,
Olha o fumo cinzento que vai para além
De regiões frias, cada vez mais frias.
Assim vais tu também…

O homem:

Vi espancar os bons, vi espancar os justos,
E resolvi então seguir o meu caminho,
Mas por esse caminho, nós, os brutos,
Ainda mais brutos vamos ser.
Agora já não sei o que fazer.
Portanto digo: deixa-te disso,
Olha o fumo cinzento que vai para além
De regiões frias, cada vez mais frias.
Assim vais tu também…

A sobrinha:

Oiço dizer que os velhos já não esperam
Pois o tempo – e o tempo é tudo! – já lhes falta,
Que aos jovens como eu – foi o que me disseram –
A porta se oferece escancarada,
Mas disseram-me ainda: aberta sobre o nada.
E então digo também: deixa-te disso,
Olha o fumo cinzento que vai para além
De regiões frias, cada vez mais frias.

Assim vais tu também…

PEQUENOS CADERNOS


Recorte do Diário de Notícias de 1 de Janeiro deste ano guardado em Pequenos Cadernos.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

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Sobre os incidentes ocorridos no Teatro Capitólio, em Março de 1960, durante a representação, pela Companhia de Maria Della Costa, da peça de A Boa Alma de Sé-Chuão de Bertolt Brecht, e referidos nestas Pancadas de Moliére, reproduz-se uma página de memórias, escrita por Luiz Francisco Rebello, e que está incluída no programa da representação da peça pelo Novo Grupo.

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Capa do programa da representação de a Boa Pessoa de Setzuan pela Companhia  Grupo Novo no Teatro Aberto em Fevereiro de 1983.
Encenação de João Lourenço, interpretações, entre outros, de Irene Cruz, Mário Viegas, António Montez, Mário Sargedas.

PANCADAS DE MOLIÉRE


Em plena ditadura salazarista, vieram a Portugal algumas companhias brasileiras de Teatro

Recordo-me de o meu pai contar que, nos anos 60, assistiu no Capitólio à representação de A Alma Boa de Sé-Chuão de Bertolt Brecht, pela Companhia de Maria Della Costa, em que metade da assistência era composta por agentes da PIDE e legionários, que no final desataram a patear, mas foram engolidos pela ovação que ecoou pela sala, entremeada com Vivas à Liberdade e à Democracia.

Por sinal, José Saramago numa carta para José Rodrigues Miguéis,  datada de 22 de Março de 1960 fala da proibição das representações da Companhia de Maria Della Costa no Capitólio:

«… sabe que a «rapaziada» do Tempo Presente fez escândalo no Capitólio durante as representações da Alma Boa de Se-Tsuan, do Brecht, pela maria della Costa? Garrafinhas de mau cheiro, gritos de «fora!» e «abaixo!», intervenção da autoridade – um encanto! O cabecilha era o Goulart Nogueira, nazista honrado e confesso, que tem chorado amargamente lágrimas pela morte de S. Hitler, principal santo do seu (dele) agiológico. Conseguiram o que queriam: a peça foi retirada…»

Este é o bilhete que regista a minha presença no Recital que Paulo Autran realizou, no Teatro Monumental, na noite de 19 de Abril de 1966.

Paulo Autran fazia parte da Companhia de Tonia Carrero que, por esse tempo, esteve em Lisboa e aproveitou um intervalo nas representações para este Recital de Poesia.

Um deslumbramento.

Ouvimos o discurso de Marco António em Júlio César de Shakespeare, monólogos do Othelo, outra vez Shakespeare, monólogo do rei Creonte da Antígona de Sófocles, poemas dos poetas brasileiros Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Castro Alves, Carlos Drumond de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen, Alexandre O’ Neill, Mário Cesariny de Vasconcelos, António Gedeão, Joaquim Namorado.

Antes da recitação dos poemas dos poetas portugueses Paulo Autran teve o cuidado de dizer que no Brasil os poetas portugueses, da moderna geração eram completamente desconhecidos. Foi apenas em Lisboa que, mão amiga, lhe mostrara poemas desses poetas e pedia desculpa pelo pouco tempo que dedicara à  preparação da recitação desses poemas.

ERA UMA FLOR TÃO ORGULHOSA...


O principezinho arrancou também, não sem uma certa melancolia, os últimos rebentos de embondeiros. Pensava nunca mais voltar. Mas todos estes trabalhos familiares lhe pareceram, nessa manhã, extremamente enternecedores. E, quando, pela última vez, regou a flor, sentiu uma grande vontade de chorar.
- Adeus, disse à flor.
Mas ela não lhe respondeu.
- Adeus, repetiu.
A flor tossiu. Mas não era por causa da constipação.
- Fui uma tola, disse-lhe por fim. Perdoa-me e procura ser feliz.
Surpreendeu-o a ausência de censuras. Permanecia ali, todo confuso, com o globo na mão. Não compreendia aquela suavidade calma.
- É certo, amo-te, disse-lhe a flor. Por minha culpa, não soubeste de nada. Isso não tem importância alguma. Mas tu foste tão tolo como eu. Procura ser feliz… Pousa essa redoma. Já não a quero.
- Mas o vento…
- Não estou tão constipada como isso… O ar fresco da noite vai fazer-me bem… Sou uma flor…
- Mas as feras…
- se tiver de suportar duas ou três lagartas, para chegar a conhecer as borboletas, não faz mal. Dizem que é tão bonito. Senão, quem me há-de visitar? Estarás longe, tu. Das feras maiores não tenho medo nenhum. Tenho as minhas garras.
E mostrava ingenuamente os quatro espinhos. Depois acrescentou:
- Não te demores mais, é irritante. Decidiste partir. Vai-te embora.
É que não queria que ele a visse chorar. Era uma flor tão orgulhosa…

Antoine de Saint-Exupéry em O Principezinho

Legenda: desenho de Antoine de Saint-Exupéry

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Última página de O Libertino Passeia Por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor, com a assinatura, a tinta verde, de Luiz Pacheco.

OLHAR AS CAPAS


O Libertino Passeia Por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor

Luiz Pacheco
Contraponto, 1970

Outubro, 15. Noite em Vieira do Minho friorenta e agitada por pesadelos, incongruências, palpitações. Já de madrugada, O Mensageiro das Trevas aparece-me na cama, agarra-me quase ao colo com os seus dedos de aço nos braços e diz-me baixo, numa voz irónica mas simpática (ou cínica e trocista?): "Ontem (referência, parece, a um sonho meu da véspera, em que me surgira A Morte, com a sua caveira comum, de dentuça à mostra, cara desgraçada!), ontem viste-me com a minha triste cara verdadeira, hoje venho alegre (a face dele era uma máscara apalhaçada, coberta de giz) mas é para te dar uma má notícia, coitado (1):

AMANHÃ MESMO MORRERÁS!

Acordo aos estremeções, aflito, com uma consciência muito nítida do encontro, e começo por fazer figas debaixo da roupa ao Intruso, mas depois, cheio duma superstição infantil (que me ficou da criança que fui, entenda-se), faço o sinal-da-cruz. E para não tirar as mãos debaixo do quente das mantas, engrolo gestos e palavras mesmo sobre o peito, à matroca, como um aprendiz de catequese faria. Sossego mais. Começo a pensar como morrerei. Desastre? colapso? ou loucura súbita e logo suicida? Adormeço nisto. Ao acordar conto ao Forte o meu sonho, para o esconjurar. Ou talvez para criar uma testemunha do meu presságio nocturno, se sair certo. Figas! Cruzes! Malandro! Canhoto! E logo eu, que gosto tanto da Vida! A caminheta dos livros segue para Braga; primeira paragem, em Esporães ou Esporões (2), outra terra a que perdi o nome (3) e depois Somar. Eis a grande revelação da jornada: Deolinda da Costa Rodrigues, 14 anos, no 3º ano do curso comercial, residente no lugar de Assento. Fico varado! Mas é a Lolita tal-e-qual do Nabokov, é a Super-Gêninha jamais esquecida. A Super-Super-Gêninha, que talvez me vá fazer esquecer de vez a outra. Baixa, encorpada, ancas cheias como se quer, barriga abaulada, leveza nos modos, gravidade e força de mulher no corpo, uma suave expectativa de adolescente. Que beleza! Que maravilha! Morena, olhos atentos, cabelo entrançado (seria? ou rabo-de-cavalo?). Adivinho e aspiro o perfume do seu sexo; leio-lhe nos olhos os gritos que ela daria de prazer se a possuísse agora, nesta luta de vida ou de morte contra o Mafarrico, a última, a grande vitória do Libertino. O espichar de corpo, o estrebuche no orgasmo, que beleza, que maravilha!

domingo, 28 de janeiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Nós matamos o tempo, mas é ele que nos enterra.

Machado de Assis

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Os filmes envelhecem? Os livros envelhecem? As canções envelhecem? Os heróis envelhecem?
Manuel António Pina diz-nos que a juventude é tempo, não é virtude e que ser jovem, como ser velho. é uma penosa tarefa, tantas vezes uma perigosíssima aventura.

Um filme: Pedro, o Louco.

«Vejo alguns filmes que encheram de confusão e emoção a minha juventude e os seus precipícios formais têm agora a profundidade da piscina de Charlot nos Tempos Modernos. De Pierrot le Fou, por exemplo, pouco resta: uma canção («Jamais j ene t’ai dit que je t’aimerais toujours, oh mon amour!»); Jeam-Paul Belmondo  conversando com Samuel fuller sobre cinema; Anna Karina dançando e cantando: «Ma ligne de chance, ma ligne de chance, dis-mois, cheri, qu’est-ce que t’en penses…». Vi-o de novo um doa destes e antes não o tivesse feito! As filhas comentaram com sarcamo: «É afinal este o filme de que tanto falas…?; e eu: «Não, não é este, é o que eu vi quando tinha 20 anos…»

Manuel António Pina em Crónica, Saudade da Literatura

OLHAR AS CAPAS


Sobre as Feiticeiras

Jules Michelet
Tradução: Manuel João Gomes
Prefácio: Roland Barthes
Comentários: Afonso Cautela, Manuel João Gomes, Maria Alzira Seixo,
                         Maria Teresa Horta
Edições Afrodite, Lisboa, Novembro de 1974

O tenebroso tema de que tratei é semelhante ao mar. Quem nele mergulhar muitas vezes acaba por aprender a ver. A necessidade cria sentidos. Assim o testemunha aquele singular peixe de que fala Forbes (Pertica astrolabus), o qual, vivendo no fundo do mar, criou um olho especial capaz de captar e concentrar as luzes que descem até às profundidades. À primeira vista, a feitiçaria tinha, para mim, a unidade da noite. Pouco a pouco verifiquei que era múltipla e muito diversificada.

COMEÇAR


23 de Novembro de 1936

A única alegria neste mundo é a de começar. É belo viver, porque viver é começar, sempre, a cada instante. Quando esta sensação desaparece – prisão, doença, hábito, estupidez, deseja-se morrer.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

ESTAS MÚSICAS


O crítico e jornalista brasileiro Paulo Frances dizia que «uma das razões por que morrer me incomodava é não ouvir mais as canções de Cole Porter»
Sei, seguramente, que não seria o mesmo se, enquanto miúdo e jovem, não tivesse ouvido no «Pilot» da casa do meu pai, mais tarde num «Blaupunkt», os «crooners» e os «standards» que ainda hoje me deliciam e não há ouvido que se canse.
Gigantes do Swing, gigantes do Fox-trot, gigantes seja do que for, são a música mais maravilhosa que se possa ouvir.
Ah! América, América!...
Este tema, «I’ve Heard That Song Before» conhece diversas versões, Frank Sinatra incluído, mas nada como esta, interpretada pela Orquestra do trompetista Harry James que acompanha a voz celestial de Helen Forrest.
Como se ouve por lá: «para sempre é uma memória.»

ÀS VEZES TENHO MEDO DE ESQUECER TUDO


Às vezes tenho medo de esquecer tudo:
a casa onde nasci, o recreio
da escola, essas vozes
que lembram um copo de água
no verão.

Jorge Gomes Miranda

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

sábado, 27 de janeiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Atravessa-nos um rio de palavras: com elas eu me deito, me levanto, e faltam-me palavras para contar... 

Egito Gonçalves

Legenda: pintura de Albert Moore

ENA, TETRAVÔ!


E já agora, se não vos deixastes dormir, meus queridos tetranetos, quando passastes pelas últimas páginas que escrevi, vou dizer-vos qual era o meu vencimento, ou seja, quanto é que eu ganhava, por mês, como professor.
Estas coisas dos dinheiros, do presente e do passado, são muito pouco significativas para quem não as viveu. O dinheiro só interessa, quantitativamente, por aquilo que se pode adquirir com ele, e não é fácil ter-se o sentimento dessas relações. O meu pai, por exemplo, ganhava 100 escudos por mês e eu ainda há pouco dei 100 escudos, de gorjeta, por vontade própria, ao operário que veio aqui a casa instalar uma gelosia numa janela, para ele beber uma cerveja (e se calhar não chega) e ainda ontem comprei um pão, grandinho, para os meus pequenos-almoços, que me custou 155 escudos.
Em 1958, depois de ter sido nomeado metodólogo, os meus ganhos eram, por mês como professor, 4.500$00, mais a gratificação de metodólogo, 1.000$00, mais a direcção do Gabinete de Física, 200$00, o que perfaz 7.700$00, isto é, 5 contos e setecentos escudos, dos quais eram descontados, para impostos, 445$20. Da direcção da Biblioteca do liceu não recebia nenhum subsídio porque já tinha o da direcção do Gabinete de Física e não era permitido ter dois subsídios. Recebia, portanto, 5.254$80.
Quando me aposentei, em Janeiro de 1975, ganhava 11.762$00 ilíquidos, isto é, sem atender aos inevitáveis descontos, e muito próximo de 11.500$00, na realidade, depois dos impostos descontados. Assim, de 1958 a 1975, num intervalo de 17 anos, os meus ganhos ultrapassaram um pouco do dobro.
Actualmente, meus queridos tetranetos, no ano de 1995 em que vos estou escrevendo, ganho, por mês, 150.873$00. Ena, pai! – dirão vocês. Ou melhor: ena, tetravô! De 1975 a 1995, isto é, em vinte anos, saltaste de 11.500$00 para 150.873$00! Aumentaste, 13 vezes o teu vencimento, em vinte anos! Que é que queres mais?

Rómulo de Carvalho em Memórias

OLHAR AS CAPAS


Sonhar a Terra Livre e Insubmissa

Egito Gonçalves/Luís Veiga Leitão/Papiniano Carlos
Desenho de Augusto Gomes, Vinheta de José Rodrigues
Capa: Armando Alves
Colecção Duas Horas de Leitura nº 16
Editorial Inova, Porto, Fevereiro de 1973

Cm Palavras…

Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras - inaudíveis - grito
para rasgar os risos que nos cercam.

Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
para dormir o cansaço. 

As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silêncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?

Possuímos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade...
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmão que as encerra. 

Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar... 

Egito Gonçalves

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Por enquanto não passa de uma noção, mas penso que posso obter o dinheiro suficiente para fazer dela um conceito e, mais tarde, transformá-la numa ideia.

Woody Allen em Annie Hall

UM LABIRINTO COM UM DEUS


Pôs o livro na mesa-de-cabeceira para um destes dias o acabar de ler, apetecendo, é seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês também, por não singular coincidência, esse sim, é singularíssimo, mas o nome, pois sem máximo erro de pronúncia se poderia ler, Quem, repare-se, Quain, Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o achou no Highland Brigade, agora, se lá estava um único exemplar, nem isso, razão maior para perguntarmos nós, Quem, repare-se, Quain, Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em único exemplar, nem isso, razão maior para perguntarmos nós, Quem. O tédio da viagem e a sugestão do título o tinham atraído, um labirinto com um deus, que deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um simples romance policial, uma vulgar história de assassínio e investigação, o criminoso, a vítima, se pelo contrário não preexiste a vítima ao criminosos, e finalmente o detective, todos três cúmplices da morte, em verdade vos direi que o leitor de romances policiais é o único e real sobrevivente da história que estiver lendo, se não é como sobrevivente único e real que todo o leitor lê a história.

NESSE VERÃO O VENTO DESPENTEOU OS CAMPOS E OS BARCOS


Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias

rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. De noite, os rapazes deitaram-se às baías

atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:

o verão desarruma os sentimentos.

Maria do Rosário Pedreira em O Canto do Vento nos Ciprestes

Legenda: fotografia Reditt

DO BAÚ DOS POSTAIS







No Verão, a Cristina e o Miguel andaram pela Rússia.
Estes são alguns dos postais que me trouxeram de São Petesburgo.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


- Não devias fumar. O tabaco pode-te dar cancro no pulmão.
- Mas porque preferir o cancro noutro sítio?

Vergílio Ferreira em Conta-Corrente 4º Volume

NOTÍCIAS DO CIRCO


Marcelo Rebelo de Sousa deverá ter em Belém um assessor que lhe selecciona os afectos.

Há incêndios e ele corre… há uma avioneta que cai em Tires e ele corre… há trabalhadores da Triumph, desde o dia 5 de Janeiro em vigília à porta da fábrica para impedir a saída das máquinas, e ele não corre…

Trabalhadores lamurientos, porque os salários estão em atraso, porque perderam o emprego, dá pouco «share» televisivo, está fora de uma qualquer cartilha que deverá existir pelos corredores do Palácio Belém.

Depois de o Presidente da República ter faltado à reunião com as trabalhadoras da antiga Triumph, na passada segunda-feira, estas confrontaram-no à porta da Escola Secundária de Camarate, no concelho de Loures e alá teve ele que alinhavar umas palavritas, que não sei quê o governo…

Mas ontem, os trabalhadores da Triumph, 463 ao todo, souberam que foi decretada, pelo tribunal, a falência da empresa e assim poderão aceder ao subsídio de emprego e ao fundo de garantia social e ficam a aguardar que lhe sejam pagas as indemnizações.

Apenas um certo alívio porque a outra parte do drama é terem ficado sem emprego, uma empresa que eles sabem ter viabilidade.

«Pode depois aparecer à posteriori um investidor, porque nós estamos dispostas a trabalhar. Nós estamos aqui para trabalhar», reiterou Mónica Antunes, delegada sindical.

Certamente, não mais quererão ouvir falar em afectos presidenciais, mas sabem, de certeza certa, de que sem a sua luta nada teria sido conseguido.

VÍCIOS BURGUESES...


Carta, datada de S. Paulo 10 de Dezembro de 1962 para a Isabelinha

Mário-Henrique acusa o conhecimento de que o divórcio com Dietlinde foi decretado. Menos uma chatice…

Agora tenho de sair. A carta acaba aqui. Vou tentar angariar subsistência, que eu, às vezes, até tenho o vício de comer… calcula, vícios burgueses…

OLHAR AS CAPAS


A Cidade das Flores

Augusto Abelaira
Capa: João Segurado
Edições O Jornal, Lisboa s/d

Estamos catalogados, estamos empalhados dentro de uma redoma de vidro, mergulhados num frasco com álcool, isolados de tudo e com um rótulo debaixo dos pés. O rótulo puseram-no os outros; nós consentimos, acomodámo-nos e vamos vivendo com ele. Mas tudo pode desfazer-se dum momento para o outro. Sei o que fui, sei ainda o que sou. Mas tal não contribui em nada para o que serei. Um só gesto e os outros vêm ao museu onde estamos embalsamados, arrancam-nos o rótulo, não querem mais saber de nós, dizem que traímos. O que fomos? O que ainda ontem fomos? Os gestos que fizemos? Não. Não querem saber, Podem ter sido gestos da mais espantosa pureza, que em nada contribuem para que os outros nos perdoem. Pelo contrário. Esses gestos, pela sua própria beleza, mais ainda nos condenam, mais ainda nos enterram.

ACERCA DE GATOS


Contigo chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não lhe tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do Público ao domingo.

Eugénio de Andrade em Assinar a Pele

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

QUE POSSO EU FAZER?


Se tu passas o dia
a imaginar o crime
que posso eu fazer?

Se a tua língua
é navalha afiada
comida pelo engano
que posso eu fazer?

Gabas-te dos teus truques?
Acumulam-se as fraudes?
Arrancaste a raiz?
E eu que posso fazer?

Como pode ajudar-te
quem não é mais do que uma oliveira
verdejante?

Mário Castrim em O Livro dos Salmos

OLHAR AS CAPAS


O Caso do Gato do Porteiro

Erle Stankley Gardner
Tradução: Carlos Vidal de Oliveira
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 40
Livros do Brasil, Lisboa s/d

- Já lhe disse uma vez – observou Mason – que nunca dou o golpe no lugar em que o meu adversário espera recebê-lo.

SÉTIMO DIA


                                                                                              Ao Manuel Hermínio


Voltámos, um a um, da tua morte

para a nossa vida como quem regressa a casa
de uma longa viagem. Para trás ficaram recordações, países,
e agora é como se te tivéssemos sonhado.

A voz que, diante da escuridão, suspendemos
quando se desmoronou o mundo para o fundo de ti
erguêmo-la de novo para os afazeres diurnos
e para as horas comuns.

Ainda ontem estávamos sozinhos diante do Horror
e já somos reais outra vez.
A própria dor adormeceu no nosso colo
como um animal de companhia.

25/06/01

Manuel António Pina em Poesia Reunida

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Por mais longos que sejam os caminhos, eu regresso.

Sophia de Mello Breyner Andresen  em Mar

UMA TRISTEZA TÃO FRIA!...


Uma cidade pode medir-se, cheirar-se pelas suas livrarias.

Podemos lembrar Nova Iorque, Paris, Londres.

Mas também sabemos que nestas, tantas outras, cada vez há menos livrarias.

Lisboa tem agora uma quantidade incalculável de hotéis e hostels, o raio que os parta, e estão muitos mais a serem construídos.

Mas cada vez tem menos livrarias.

Há um mundo da minha cidade que estou, em cada dia, a perder.

Já não percorro a cidade como em outros tempos o fazia. Vão-me escapando coisas, causas várias, e isso entristece-me, mas é assim…

Sou capaz de tomar conhecimento, através dos jornais on-line, das coisas mais inúteis e disparatadas, acontecimentos de gentes que desconheço completamente e não me interessam para nada.

No entanto, apenas soube, através do blogue de Maria do Rosário Pedreira, de que a Livraria Aillaud e Lellos, na Rua do Carmo, fechou portas no passado mês de Dezembro.

A Amazon isto, aquilo e aqueloutro.

Mas eu gosto de olhar os livros, folhear os livros, cheirar os livros numa livraria.

A Aillaud terá sido a livraria que menos frequentei mas sinto um inexplicável sobressalto agora que sei que não volto a lá entrar.

A ganância do senhorio entendeu que livros não são negócio rentável e terá exigido uma renda incomportável aos donos da livraria.

Irá agora nascer mais uma daquelas lojas disparatas que em breve tempo fecham portas.

Por quantos diferentes negócios já passou o que foi a Livraria Portugal?

Legenda: esta fotografia da Aillaud e Lellos foi tirada em Janeiro de 2012, no mesmo dia em que tirei a da então Livraria Portugal. Tirei-a na convicção que também não iria durar muito.
Assim foi...

PARA O LEITOR LER DE/VAGAR


Volto minha existência derredor para. O leitor. As mãos
espalmadas. As costas
das. Mãos. Leitor: eu sou lento.
Esta candeia que rodo amarela por fora,
e ardentescura por dentro.
Candeia tão baixa-viva. Sou lento numa luminos-
idade como em meio de ilusão.
Volto o que é um rosto ou um
esquecimento. Uma vida distribuída
por solidão.

Sou fechado
como uma pedra pedríssima. Perdidíssima
da boca transacta. Fechado
como uma. Pedra sem orelhas. Pedra una
reduzida a. Pedra.
Pedra sem válvulas. Com a cor reduzida
a. Um dia de louvor. Proferida lenta.
Escutada lenta.

- Todo o leitor é de safira, é
de. Turquesa.
E a vida executada. Devagar.
Torna-se a infiltrada cor da. Pedra
do leitor.
Volto para essa pedra absoluta. Relativa
à minha pedra.
Minha pedra pensada com a forma
de. Uma lenta vida elementar.

Leitor acentuado, redobrado leitor moroso.
Que entende o relato sem poros,
o mês atroz dealbado sobre a pedra
sem orelhas, pedra sem boca. E que desce os dedos
sobre. Meus dedos pelo ar. E toca e passa.
Pelas pálpebras paradas. Pelos
cerrados  lábios até às raízes.
E cai com seus dedos em meus dedos.
Podres. E espero devagar.
Leitor que espera uma flor atravancada,
Balançando baixa
Sobre. Mergulhados
filamentos no terror
devagar.

Mas que espera. Doce. Contra o hermético
movimento do mundo.
E que o mundo movimenta contra.
As ondas de Deus auxiliado
auxiliar. E que Deus movimenta contra. Suas ondas
muito lentas, amarguradas ondas muito.
Antigas, ignoradas, corridas. Sobre
a primitiva face do poema. Leitor
que saberá o que sabe dentro. Do que sabe
de mais selado. E esperará
dias e anos dobrado, leitor. Varrido
pelo movimento dos doas.
Contra o movimento nocturno do. Poema devagar.

E que espera.
E para quem volto. Muitas coisas sobre
uma coisa. Volto
uma exaltante morte de Deus. Auxiliado
auxiliar. O espírito, a pedra.
Do poema.
Leitor à minha frente. Vindo
do mais difícil lado
das noites. Ainda tocado e molhado
de suas flores aniquiladas.
Rodo. Para este rosto difuso e vagaroso
meu sono
a fantasia minuciosa. A oblíqua inovação.
A solidão. Trémula devagar

Leitor: volto.
para ti. Um livro que vai morrer depressa.
Depressa antes. Que a onda venha, a onda
alague: A noite caída em cima de teus dedos.
De encontro à cor de encontro à. Paragem
da cor. este livro apertado nas estrelas
da boca, estrelas.
Aderentes fechadas. Por fora
leves às vezes, presas.
Para eu batê-las durante o tempo.
Eterno, o tempo. De uma onda maior que o nosso
tempo. O tempo leitor de um. Autor.
Ou um livro e um Deus com ondas de um mar
mais pacientes. -
                             Ondas do que um leitor devagar.

Herberto Helder em Poesia Toda 1º Volume

Legenda: pintura de Karen Offutt

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Nada, no mundo, existia de mais terrível do que uma garrafa vazia! A não ser um copo vazio.

Malcolm Lowry em Debaixo do Vulcão

Legenda: pintura de Guy Péne du Bois

TRUMPALHADAS


Mais uma capa sobre os primeiros doze meses de Donald Trump na Casa Branca.

O POVO NÃO PRECISA DE GRAMÁTICA


Carta de Sophia, datada de Abril de 1976, para Jorge de Sena:

O problema, a tragédia de toda esta revolução é a sua INCOMPETÊNCIA CULTURAL. Desde a descolonização onde tudo se fez com um despachado simplicíssimo, primário, «ad-hoc», até à reforma agrária falseada e demagógica! Passando pela constituição onde se lutou pela vitória da estupidez com o maior sucesso salvo alguns pontos que a muito custo foi possível salvar. Houve até quem  no grupo parlamentar, numa reunião de discussão, respondesse à minha crítica à má redacção de um articulado, dizendo-me que «o povo não precisa de gramática». Via dia a dia como a esquerda se suicida.

OLHAR AS CAPAS



Um Barco para Ítaca

Manuel Alegre
Colecção Poesia Nosso Tempo nº 2
Nosso Tempo, Águeda 1971

Penélope

Quem és tu ó estrangeiro? Quem és e donde vens?

Velho

Pode o homem ter muitos nomes e não ter nenhum
pode ter um só nome tendo muitos.
Pode ter uma pátria e já não ter nenhuma
ou tendo muitas ter uma só.
Pode ter uma pátria que nunca teve
e pode ter uma pátria que não há.

Penélope

Dizem que sabes notícias de Ulisses
dizem que és cegos mas vês.
Talvez tu saibas o onde
talvez tu saibas o quando.

Velho

Todo o homem tem um navio no coração
todo o homem tem um navio
tem um país a descobrir em cada mão
tem um rio no sangue tem um rio
todo o homem tem um navio no coração.
Todo o homem tem um onde e tem um quando
um tempo de partir um tempo de voltar
sete palmos na terra mil caminhos no mar.
Todo o homem se perde. Todo o homem se encontra.
E tem um tempo em que se mostra. E tem um tempo em que se esconde.
Todo o homem tem um por e tem um contra.
Todo o homem se perde. Todo o homem se encontra:
Todo o homem tem um quando e tem um onde.