terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

OS FURORES DE TODA A MEDIOCRIDADE


A Portugália Editora, nos anos 50/60, manteve uma série de Antologias: Líricas Portuguesas, Contos Portugueses.

Jorge de Sena foi responsável pelas Líricas Portuguesas que conheceu diversas séries.

Em carta a Eugénio de Andrade, datada de 3 de Julho de 1958, dá conta da 3ª série da Antologia:

A Antologia está em vias de conclusão. – tem sido um trabalho insano, pesquisas, Biblioteca Nacional, o diabo, mas creio que ficará um monumento para os últimos vinte anos.

Dois dias depois, dá conta a Eugénio que incluiu António Gedeão na Antologia:

O António Gedeão, aliás Rómulo de Carvalho, que iniciava o seu professorado liceal na minha turma de 7º ano – o que eu não sabia -, está já selecionado e biográfico-criticado. Ele havia-me mandado o primeiro livro, de que eu gostara, com certa expectativa, e o segundo, recentíssimo, acho-o excelente, para lá dos jogos a que V. justamente se refere e provém de uma maestria, como direi, excessiva em relação à matéria. Mas muito bom. Vai, sendo «o mais jovem» de todos, ser cronologicamente o primeiro poeta da 2ª parte da Antologia.

Em carta datada de 5 de Janeiro de 1959, Eugénio pergunta por novas da Antologia.

A 25 de Janeiro, Sena responde com humor e ironia:

A antologia continua a despertar os furores de toda a mediocridade. Os ataques e os insultos continuam a desabar por todos os lados. Em grande parte são inspirados pelo furor (uterino) da megera Natália Correia que, segundo diz um amigo meu, é tristemente, em carne e osso, o que se arranjou do busto da República. Com a diferença que esta senhora de barrete frígio, por ser só busto, não intrigava com outras partes mais abaixo. Mas têm amas em comum o servirem-se da língua, embora com fins opostos.


Legenda: a capa da 3ª Série da Antologia de Líricas portuguesas é tirada da Livraria Sidarta.

PEQUENOS CADERNOS


Mais uma frase da série Pequenos Cadernos:

E o sol lá for a pedir companhia.

O Carnaval está de tempo cinzento, não deu para sair e corresponder à frase do Caderno razão porque tive que ir buscar uma fotografia dum dia de sol, 12 de Março de há três anos, tirada perto do Aljube.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

POSTAIS SEM SELO


O futuro da América está em risco e a República está sob assalto: podemos perder a sociedade em que acreditamos.

Paul Auster

DO BAÚ DOS POSTAIS


Os Irmãos Marx.

TRUMPALHADAS


Em tempo de Carnaval seria impossível Donald Trump não aparecer com as suas Trumpalhadas.

A noite da atribuição dos Óscares foi um corrupio de piadas e piadolas sobre Trump.

Os americanos ficaram também a saber que três fins-de-semana que Donald Trump passou no seu clube privado em Mar-a-Lago – local bem mais aprazível que a Casa Branca! – já lhes custaram mais de 10 milhões de dólares.

Mas não resisto a transcrever o final de um artigo de Luís Ribeiro, publicado na Visão de 16 de Fevereiro:


Não admira que Trump esteja tão irritado com as fugas de informação. As mais recentes traçam-lhe um perfil (quase) cómico: certa noite, o republicano terá telefonado, por volta das três da manhã ao próprio Michael  Flynn para lhe perguntar se era melhor para a economia americana um dólar fraco ou forte; haverá ordens explícitas para que os documentos informativos para o  Presidente tenham apenas uma página e organizados por pontos (e não podem ter mais de 9 pontos); ao telefone com Vladimir Putin, demonstrou que não sabia o que era o Tratado START (acordo de redução de armas estratégicas entre os dois países); passa uma enorme parte do dia e da noite a ver televisão, e muita da informação que recolhe tem origem na ultraconservadora Foz; finalmente para passar o tempo entre reuniões, vai ter com os visitantes da Casa Branca (aberta a tours pagos) e entretém-se a mostrar-lhes as mudanças decorativas que fez na residência oficial.

DÉCIMO SEGUNDO POEMA SOBRE A MORTE DE DEUS


Julgava ter todo o poder
por isso inventava verdadeiros homens
e falsos deuses
criava mil realidades e dez mil quimeras
isso do bem
isso do mal
o mal do bem
o bem do mal

Dizia: é belo
é perfeito
é frio
é gelado
o mundo.
Como se Fosse Deus.

António Rego Chaves em Três Vezes Deus


Nota do editor: o primeiro poema está publicado em Dizendo-me Aqui Estou

Legenda: The Agony in the Garden de William Blake

domingo, 26 de fevereiro de 2017

POSTAIS SEM SELO


O olhar é a última gota do ser humano.

Walter Benjamim em Imagens de Pensamento

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

VISITA DE MÉDICO AOS SUICIDAS


Parecia-me que andava em visita de médico aos suicidas. Akutagawa. Dazai. Plath. Mortos pela água, por barbitúricos e por monóxido de carbono; Sylvia Plath matou-se na cozinha do seu apartamento em Londres, no dia 11 de Fevereiro de 1963. Tinha trinta anos. Foi um dos invernos mais frios de que há memória em Inglaterra. Tinha estado a nevar desde o Boxing Day e a neve atingia uma grande altura nas valetas. O rio Tamisa estava gelado e as ovelhas morriam à fome nas montanhas. O seu marido, o poeta Ted Hughes, tinha-a deixado. Os filhos estavam cuidadosamente aconchegados nas suas camas. Sylvia meteu a cabeça no forno. Treme-se só de pensar na situação de uma existência capaz de chegar a um desencanto tão radical. O cronómetro marca o tempo. Ainda restam alguns momentos, a possibilidade de ainda poder viver, de desligar o gás. Imagino o que terá passado pela sua cabeça naqueles minutos: os seus filhos, o embrião de um poema, o marido mulherengo a barrar uma tosta ao pé de outra mulher. Pergunto-me o que terá acontecido ao forno. Talvez o inquilino seguinte tenha ficado com um fogão impecavelmente limpo, um enorme relicário da última reflexão de um poeta e um fio de cabelo castanho-claro preso numa dobradiça de metal.

Patti Smith em MTrain

Legenda: Sylvia Plath

NOTÍCIAS DO CIRCO



Hoje é domingo de Entrudo e logo à noite vamos ter Lua Nova.

Soube-se agora que o Governo de Direita chefiado, por Pedro Passos Coelho e acolitado por Paulo Portas, deixaram sair, pelo menos, 10 milhões de euros para off-shores. sem que tenha existido um controlo por parte do fisco.

Instado a dizer como foi possível, Paulo Núncio, então secretário de estado dos Assuntos Fiscais, disse que a culpa não foi dele mas da Autoridade Tributária.

Azevedo Pereira, então director da Alta Autoridade, já respondeu que por três vezes solicitou autorização para publicar as estatísticas do dinheiro que voava para os paraísos fiscais e nunca obteve essa autorização.

Paulo Núncio é um rapaz do CDS que nos primeiros tempos do Governo do PS, declarou solenemente que o CDS tem de estar preparado para voltar a governar quando o Partido Socialista gastar o dinheiro que resta.

Como escreveu José Pacheco Pereira no Público:

… é uma afronta para os portugueses tomá-los por parvos!


Legenda: imagem da esquerda net

VELHOS DISCOS


Em tempo de Carnaval, não sei bem porquê, lembro-me sempre da Banda de Chico Buarque.
Este disco da Nara Leão é um velho disco da casa.
Bom Carnaval!

Divirtam-se, porque tudo acabará na quarta-feira!

sábado, 25 de fevereiro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Ouvir um político, é ouvir um papagaio insincero.

Miguel Torga em Diário, Volume IX

PALAVRAS CRUZADAS


Rómulo Vasco da Gama Carvalho gostava muito de fazer palavras cruzadas, daquelas sem quadradinhos pretos e também das outras. Gostava também de hieróglifos comprimidos. Deve ter sido das primeiras coisa que me ensinou. A fazer palavras cruzadas.
Tinha sempre na carteira de bolso um ou dois recortes do jornal Diário de Notícias ou do Diário de Lisboa com as tais palavras cruzadas. Toda a vida vi-o a fazer isto. Era quase como um comprimido para o cérebro. Dizia ele que era um ótimo exercício cerebral!
Coisas simples!
Começava por ler o jornal – colocava-o em cima do armário – e lia. Com pormenor, as notícias principais, os anúncios, sem nunca perder de vista a necrologia. A necrologia era a última secção do jornal a ser lida mas era lida com muito interesse e muitas vezes comentada «Olha, lá se foi o senhor tal e tal ou a senhora tal e tal!» ou então «Coitado! Andei com ele na escola… Um grande patife!»
Ou «Há sempre quem vá e não volte nunca mais!»

TRUMPALHADAS


Donald Trump apelidou os jornalistas e a comunicação social, que não que não aparam as suas golpadas e mentiras, de «inimigos do povo».

Ontem a Casa Branca impediu a entrada de jornalistas da CNN, BBC, The New York TimesLA TimesThe New York Daily News e do Daily Mail, não permitindo o acompanhamento do briefing diário feito pelo porta-voz Sean Spicer.

O New York Times irá aproveitar, amanhã à noite, a transmissão televisiva da gala da entrega dos Óscars, para num dos intervalos publicitar um vídeo que se centrará no lema «A verdade é difícil. Difícil de encontrar. Difícil de saber. A verdade é mais importante agora do que nunca.»

O editor Arthur Sulzberger, Jr. afirmou em comunicado que o New York Times está a estará «comprometido com a procura pela verdade», especialmente numa época «em que há tantas incertezas sobre o que é real e o que são notícias falsas»

A CNN reagiu na rede social Twitter com a mensagem:

«Este é um desenvolvimento inaceitável pela Casa Branca de Trump. Aparentemente, esta é a forma como retaliam quando se noticiam factos de que não gostam».

NOTÍCIAS DO CIRCO



Segue-se o inquérito do costume.

QUOTIDIANOS


A vida é muito longa, escreveu T.S. Eliot.
Nunca pretendi fugir de mim mesmo e, de resto, os meus gostos são simples.
Razão porque os meus passos, sempre que possível, se encaminham para uma bifana no Beira Gare.
Um espectáculo deslumbrante, um must do colesterol.

V.S.T. & ETC



O periódico & etc, quer na sua forma primitiva (1967-1971) como suplemento literário do Jornal do Fundão, quer já autónomo (1973-1974), como magazine cultural, marcou uma época histórica que acompanha a resistência ao salazarismo e, depois, o fim do marcelismo.

As suas caraterísticas contraculturais e libertárias ficaram a dever-se a um vasto conjunto de escritores e ilustradores, de que Vitor Silva Tavares sempre se fez rodear, numa deliberada proposta límpida e moderna, posteriormente enformadora do que veio a ser a editora de livros homónima.

A Biblioteca Nacional de Portugal assinala com a presente exposição os 50 anos decorridos sobre a publicação do número 1 do periódico, mas também o inesperado falecimento do seu respetivo mentor.

Vitor Silva Tavares, filho da Madragoa, nascido a 17 de julho de 1937, faleceu num hospital da sua cidade a 21 de setembro de 2015. 


Mais conhecido como editor de livros e do periódico & etc, são de assinalar as suas fulgurantes passagens pela programação da editora Ulisseia, num curto período que se estende de finais de 1964 ao início de 1967, esporadicamente até meados de 1968, e pela direção do suplemento literário do Diário de Lisboa, no início dos anos 70. De permeio inventa, para encarte no Jornal do Fundão, o suplemento cultural & etc..., já na altura de cariz libertário, e experimental no sentido em que ali se ensaiaram algumas das regras básicas no jogo de iludir a censura.

Paulo da Costa Domingos
Comissário

A exposição está patente na Biblioteca Nacional de 22 de Fevereiro a 31 de Maio e será acompanhada pela projeção, às 12,00 e 16,00 horas, na Sala Multimédia, do filme Vitor Silva Tavares – certos curtos sinais, um projeto de Diogo Vaz Pinto, Hugo Magro e Paulo Tavares.


O catálogo da exposição é editado pela Letra Livre

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Unir dor e alegria, ligar paciência ao grito, perceber que a noite áspera e a leveza do riso estão costuradas com a mesma delicada linha são aprendizagens para aceder à profundidade da vida.


José Tolentino Mendonça

A NOITE E O RISO



Crónica de José Tolentino Mendonça publicada no Expresso de 17 de Agosto de 2013-

Legenda: Violeta Parra, pintura de Madalena Lobao-Tello.


JARDIM À BEIRA-MORTE PLANTADO


Que ideia a sua de cuidar que eu andaria aqui embezerrado, a rilhar enfados e malquerenças! Que grande engano o seu, se o pensou. Os nossos arrufos passavam-se num plano a que se pode chamar «técnico», o qual plano nada tem que ver com o calor da boa e funda amizade que lhe consagro. Fica é entendido que quando o autor-Miguéis tiver qualquer motivo de queixa, por mais insignificante que seja ou pareça ser, rapa da portátil e põe ali, preto no branco, enquanto tiver de ser, os seus agravos. Cã estão os amigos-editores para os escutar e atender. E encerrado o incidente, passo ao restante.
Já cá tinha lido a denúncia miserável do miserável Anselmo. (*) Teria ficado edificado, se o não estivesse há muito quanto à função policial por este «escritor» exercida. Bem compreendo a vontade de voltar que essas coisas lhe estarão dando… Isto por cá está tão podre, meu Amigo, tão triste e tão mesquinhamente pobre! Agora já nem da fachada se cuida: como eu dizia há tempos em carta ao Jorge de Sena: «vive-se num jardim à beira-morte plantado…» em constante incerteza e insegurança, num temor que corrói tudo – a começar pelo futuro. Será que conseguiremos sobreviver? Como lugar geográfico, naturalmente, mas como povo? Que lugar ocuparemos no mundo daqui por cinco, dez anos? Põe-se a gente a imaginar, e o que imagina dá vontade de fugir.

Carta de José Saramago para José Rodrigues Miguéis, datada de 12 de Maio de 1961 em Correspondência.

(*) Trata-se de Manuel Anselmo e de um episódio relatado por Miguéis, em carta para Saramago, datada de 10 de Abril de 1961:

A casa onde moramos, aqui, vais ser finalmente demolida dentro não sei de que prazo, e temos agora a apoquentação duma mudança – com rendas ao dobro! (Era uma casa velha, vasta, de renda fixada por lei.) Basta isto para me desorganizar o trabalho. Foi uma das razões que cá me trouxeram, porque minha mulher, cidadã americana, tem de ter domicílio aqui estabelecido, se quiser residir em Portugal sem perder a naturalização USA – Não sei se sabe que o gatuno encartado Manuel Anselmo acaba de me denunciar (mais uma) no último dos seus Cadernos periódicos: reproduz uma notícia do Avante de 1941, extraída dum jornal americano, sobre um discurso que eu fiz aqui, nesse a ano a respeito da invasão da URSS pelos alemães. Falei ao lado de professores da Harvard e de líderes trabalhistas. Já se vê onde ele quer chegar – atingir o escritor através do homem… de há vinte anos. Estão-me a fazer a cama, e isto dá-me imensa vontade de voltar…

Legenda: fotografia tirada do Catálogo da Exposição comemorativa do centenário do nascimento de Miguéis, 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

ZECA UM POUCO AO ACASO


Pertence a Sérgio Godinho a mais feliz definição de José Afonso:

Abriu janelas onde nem paredes havia.

Já fui andarilho e cantor, Bendito seja o pão, Bendita seja a dor, Bendita as portas do amor!

José Afonso

Quando há alguém maior do que o tempo, só podemos ficar gratos. Quando é português, só podemos ficar orgulhosos. As canções de José Afonso são tão bonitas e importantes que não se consegue imaginar a sua ausência. Vivem de um tempo para a eternidade, como tudo o que é genial e belo.
Toda a obra de José Afonso está agora reeditada em CD. Não deve ser preciso dizer mais nada.

Revista K, Agosto de 1992

Sem muros nem ameias, gente igual por dentro e por fora.

José Afonso

… talvez no fundo eu seja um homem mal resolvido.

Entrevista à José Amaro Dionísio, Expresso, 15 de Junho 1985

O medo foi sempre um sentimento que conviveu comigo. O medo a que se sobrepunha uma sensação de angústia, género «como é que me vou comportar em tal ou tal situação?

Entrevista à José Amaro Dionísio, Expresso, 15 de Junho 1985

Amigo maior que o pensamento.

José Afonso

Se os encartados arrumadores de música persistirem, mesmo assim, em recusar à obra de José Afonso um lugar na categoria da música «clássica» que se apressem a rever a sua definição desta, antes que, por completo, os deixemos de tomar a sério.

João de Freitas Branco

Sou fruto de muita gente, de muitos lugares e dissabores.

Entrevista O Diário 2 de Janeiro de 1983

Nunca tive prazer em fazer música.

Entrevista Alexandre Manuel ao Diário de Notícias de 28de Abril de 1984

Um dia hás-de aprender haja o que houver.

José Afonso

… e afinal, eu só queria dizer que fazes uma falta do caraças!

Manuel Freire, Fevereiro de 1992

… pois tu é que partiste cedo demais, meu sacana!

Samuel, Fevereiro 2012

Legenda: fotografia de Júlio Gomes tirada do Cinéfilo nº 8.

A MORTE SAIU À RUA NUM DIA ASSIM



O escultor José Dias Coelho foi assassinado pela PIDE no dia 19 de Dezembro de 1961, na Rua da Creche, rua que hoje tem o seu nome, junto ao Largo do Calvário.

O assassinato está assinalado na canção de José Afonso “A Morte Saiu à Rua”do álbum “Eu Vou Ser Como a Toupeira", gravado em 1972.

Antes de ser assassinado, José Dias Coelho estivera em casa de Mário Castrim que, na altura, morava na Rua Luís de Camões, perto da estação dos carros eléctricos de Santo Amaro. 

No livro “Viagens”,  o poema “Viagem Através de Uma Fatia de Bolo-Rei”, Mário Castrim assinala  esses últimos momentos de vida de José Dias Coelho:


Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.
Eram quase duas horas da manhã
e eu perguntei-lhe
se queria comer alguma coisa.
Disse que sim. Mas que
estava com muita pressa.

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe
uma sanduíche de fiambre
um copo de vinho
uma fatia de bolo-rei.
Estava de pé
comia como se fosse a primeira vez
desde a infância.

- Há quantos anos
deixa cá ver
há quantos anos é que eu não comia
bolo-rei?
Este é bom, sabe a erva-doce
e a ovos.
(Caíam-lhe migalhas
aparava-as com a outra mão
em concha)

- Comes outra fatia, camarada?

- Isso não.
Estou atrasado já.
Mas se ma embrulhasses...

Através da janela
do quarto às escuras
fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche
seguir pela Rua dos Lusíadas.

Nenhum de nós sabia
que estava já erguida a pirâmide do silêncio
à espera dele
num breve prazo.

Quando talvez o gosto do bolo-rei
mais forte do que nunca
tivesse ainda na boca.

Funcionário clandestino do Partido Comunista, José Dias Coelho seguia pela Rua dos Lusíadas, quando cinco agentes da PIDE, saltaram de um automóvel e alvejaram-no, à queima-toupa, com um tiro no peito, e dispararam outro tiro quando já se encontrava por terra.

No  nº 9, referente a Março de 1962, de “Notícias do Bloqueio”, Pedro Alvim, no poema intitulado “Lisboa”, refere o assassínio de Dias Coelho:

4 – Alcântara

Há quem tombe por um rio
Impetuoso e comum:
Alcântara dos tiros cegos
Alcântara sessenta e um.


No dia 24 de Novembro de 1976, começava, no 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, o julgamento do ex-agente da PIDE António Domingues, acusado de ter assassinado José Dias Coelho, julgamento que só terminaria no ano seguinte:

Na 1ª página do “Diário de Notícias”, de 6 de Janeiro de 1977, lia-se:

“O antigo agente da PIDE/DGS António Domingues, responsável pela morte do escultor comunista José Dias Coelho, foi, ontem, condenado em três anos e nove meses de prisão maior. Perdoados 90 dias e tomado em conta o tempo de prisão preventiva que já sofreu, desde 1974, vai o réu cumprir apenas mais cerca de 10 meses de cadeia. O tribunal (3ºTMTL) considerou não ter havido homicídio voluntário, mas apenas “ofensa corporal voluntária, de que resultou a morte “praeter-intencional”. Dado como provado o disparo de dois tiros, o último dos quais com a arama “muito próxima da roupa da vítima, a sentença foi recebida pela assistência com uma manifestação de protesto.”


No editorial do “Diário de Lisboa," também de 6 de Janeiro, lia-se:

“Na verdade, reconhece-se a legitimidade da “profissão” de assassino de adversários políticos de um regime. É um insulto à memória de José Dias Coelho.
Um insulto aos mortos e aos vivos da resistência antifascista.
Um insulto ao 25 de Abril.”

Legenda:  A imagem de topo é uma gravura de José Dias Coelho, representando o operário Cândido Martins, assassinado na frente da manifestação do Barreiro contra a burla eleitoral e publicada no “Avante” nº 130 de Novembro de 1961. Para a que seria a sua última gravura, José Dias Coelho escreveu: “De todas as sementes deitadas à terra, é o sangue derramado pelos mártires que faz levantar as mais copiosas searas”


Ó RIBEIRAS CHORAI QUE EU NÃO VOLTO A CANTAR


Recorte do Diário de Notícias de 23 de Fevereiro de 1987.


ZECA AFONSO, UMA VOZ QUE JÁ NÃO CANTA


Chamada  da 1ª página do Diário de Lisboa de 31 de Dezembro de 1984 para uma entrevista de Ribeiro Cardoso.


PORTO DE LISBOA, 1967


Adelino Gomes, Público, 23 de Fevereiro de 1992

JOSÉ AFONSO VEIO PARA FICAR


O ano é o de 1967.

José Afonso, vindo de Moçambique, regressa a Lisboa.

Este recorte do Diário de Lisboa regista esse regresso-amargo-triste.

«Desembarquei sem um tostão no bolso, mas com seis meses de ordenado em atraso.»

A notícia refere também que José Afonso gravou no Estúdio do RCP quatro canções que seriam transmitidas à noite no P.B.X. e que levaram quatro horas a ser gravadas.

«Estive muito tempo sem cantar. Estou sem caixa nenhuma.»

No estúdio, estavam Carlos Paredes, o dr. Jorge Tuna, Durval Moreirinhas e outros amigos e ouviram o Zeca futurizar:

«O ensino dá-me para o tabaco e para pagar a renda. Por isso vou cantar.»

Final da reportagem:

«José Afonso veio para ficar. Agora, vai para o Algarve. Depois voltará em direcção ao Centro, mas não importa onde porque aqui vai ficar, cantando, ensinando, trabalhando em novas músicas, em novos poemas, porque agora terá mais diálogo do que em Moçambique, porque a velha realidade lhe dará novos pontos de partida, porque mais ele a sentirá. José Afonso veio para ficar.“Velas e remos a arder”, ele não é homem para deixar.» 

TRINTA ANOS SEM O JOSÉ AFONSO


Trinta anos.
Como é que já passou tanto tempo?
Ficou-nos o seu exemplo, o sorriso simples e franco, a música, as canções.
Inúteis as palavras que possa trazer para aqui.
Neste dia em que a tristeza nos invade, sempre nos envolverá essa tristeza, trago uma das canções do Zeca que só muito tarde descobri, uma canção que aprendi a gostar.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

CHEGAR ATÉ ELES


A minha paragem seguinte era na Newbury’s , a loja das pechinchas no centro da cidade. Se voltássemos logo à direita, depois de entrarmos, íamos para o canto apertado onde estavam os discos (nesse tempo, lá nos confins onde vivíamos, não havia lojas de discos). Havia apenas algumas prateleiras com singles a 45 cêntimos. Não havia propriamente discos para mim, apenas alguns de Mantovani ou compilações de vários artistas, talvez alguns discos de jazz na prateleira do fundo. Nunca ninguém olhava eles. Eram discos para «adultos». O mundo dos adolescentes era o mundo dos discos de 45 rotações. Um pequeno círculo de cera com um buraco do tamanho de meio dólar ao meio, onde tínhamos de pôr um adaptador de plástico. O gira-discos lá de casa tinha três velocidades: 78, 45 e 33 rotações por minuto. Os «nossos» eram os de 45. A primeira coisa que descobri foi um disco chamado The Beatles with Tony Sheridan and Guests. Uma vigarice. Os Beatles a acompanharem um artista qualquer de que nunca tinha ouvido falar a cantar «My Bonnie». Comprei-o. E ouvi-o. Não era grande coisa, mas era o mais perto que eu conseguia chegar até eles.

Bruce Springsteen em Born to Run

OLHARES


Dedicatória de Mário Dionísio para o poeta Joaquim Namorado.

Até domingo ainda podem ver a Exposição no Museu do Neo-Realismo.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

POSTAIS SEM SELO


- Não sei. O vento existe para as mulheres segurarem os cabelos com as mãos.
- E também para usarmos lenços de seda.
- Sim, o vento faz as mulheres bonitas. Os lenços de seda também.

Augusto Abelaira em Quatro Paredes Nuas

Legenda: Brigitte Bardot

OS CROMOS DO BOTECO


Mais um disco dos velhos «Cinco latinos que encontrei no Boteco.
A sua antiga proprietária, alguém que se chamava Ilda, escreveu a data de compra na contracapa: 31 de Março de 1962.

Bolas! Como o tempo passa!...

FICAREI A MESMA PESSOA?


4-4-63
Muito triste, mesmo depois da visita da K., em que a L. fez tudo como sempre para me restituir a alegria perdida, subitamente ontem. Continuam as torturas tendo estar a espancar um moço das 3 menos 10 até às 4 horas. Nem sei como almocei. Eram berros horríveis e mesmo assim parecia que lhe tinha(m) posto um lenço na boca, porque chegavam abafados. Estive quase a vomitar o almoço, o estômago recusa-se a digerir e cada vez me sinto pior. Terei ainda que aguentar isto muito tempo? Ficarei a mesma pessoa? Às vezes tenho medo de perder a cabeça, de enlouquecer. Pensando na tristeza desde ontem naquele súbito sentimento de solidão total descobri que foi devido a uma coisa que a K. me contou.

José Luandino Vieira em Papéis da Prisão

OLHAR AS CAPAS



Respondo Por Mim

Orlando Neves
Prefácio de Urbano Tavares Rodrigues
Publicações Novo Mundo, Lisboa, 1971

Para todos os efeitos, respondo por mim
A cédula de identidade não existe.
A força porém desabrocha. Neste
vácuo. Aparentemente alheio.
Respondo por mim. E pelo local
onde me cravo.
Trespasso, trespassam-me – hão-de
ver-me, descobrir-me, inventar-me.
Respondo por mim. Agora,
milhões de anos antes de
sem me trespassarem
me encontrarem.
O equilíbrio é um mito.
Proponho
a lâmina em movimento
contínuo
por dentro
dos universos. 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Quando se é escravo até as flores pesam.

José Fernandes Fafe, de um poema dedicado a Diego Rivera em Poesia Amável.

Legenda: Diego Rivera

O INTENSO E AGRIDOCE MUNDO SOLITÁRIO


As canções do Woody Guthrie regulavam o meu universo mas, antes dele, Hank Williams tinha sido o meu compositor favorito, embora fosse sobretudo como cantor que eu o visse. O Hank Snow andava empatado. Mas nunca consegui escapar do intenso e agridoce mundo solitário do Harold Arlen. Van Ronk conseguia cantar e tocar estas canções. Eu também mas nunca sonharia fazê-lo. Não estavam no meu guião. Não estavam no meu futuro. O que era o futuro? O futuro era uma parede sólida, não promissora, não ameaçadora – apenas pedra. Não havia garantias de espécie alguma, nem mesmo de que a vida não fosse uma grande anedota.

Bob Dylan em Crónicas

Legenda: Harold Arlen

JOSÉ FERNANDES FAFE (1927-2017)


Morreu JoséFernandes Fafe, escritor e diplomata.

Sofreu um AVC no dia 1 de Fevereiro, depois de, na véspera, celebrar 91 anos.

Foi o primeiro embaixador português em Cuba nomeado por Mário Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros.

A propósito, ler o texto que o embaixador Francisco Seixas da Costa escreveu no seu blogue Duas ou Três Coisas.

A produção literária de José Fernandes Fafe inclui mais de duas dezenas de obras, de poesia, teatro, romance e ensaio. Uma das suas obras mais conhecidas - Annie: uma portuguesa na revolução cubana - centra-se na biografia de Ana ("Annie") Silva Pais, a filha do último diretor da PIDE, Fernando Silva Pais, que foi para Cuba em 1963 acompanhando o marido e se apaixonou pela revolução cubana.

Um poema de José Fernandes Fafe tirado de Poesia Amável:

Poente

Compreende-se tudo,
de repente:

São oito séculos a ver o Sol morrer
afogado no mar,

diàriamente.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

TRUMPALHADAS



È muito difícil, quase impossível, saber onde poderá chegar o mundo com Trump na presidência dos Estados Unidos.

Num discurso proferido, hoje, na Florida, declarou que na sexta-feira houve um ataque terrorista na Suécia.

Eles acolheram um grande número de imigrantes e refugiados e estão a ter problemas como nunca pensaram ser possível.

Card Bildt, ex-primeiro-ministro sueco, escreveu no Twitter:

A Suécia? Um atentado? O que é que ele fumou?

Por tal informação, Donald Trump já está a ser ridicularizado um pouco por todo o mundo.

A administração norte-americana sonha com atentados terroristas.

Kellyanne Conway, a conselheira de Trump referiu-se ao "massacre de Bowling Green" numa entrevista e explicou mais tarde que se referia aos "terroristas de Bowling Green", dois iraquianos condenados em 2011 por tentarem enviar dinheiro e armas para a al-Qaeda.

Também o porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, falou por três vezes numa semana no atentado de Atlanta (no Estado da Geórgia), antes de se lembrar que o mesmo tinha na verdade acontecido em Orlando, na Florida.
Preocupante mesmo é a revelação dos «media» que o presidente russo, Vladimir Putinn, e Donald Trump, acertaram na segunda-feira a «normalização» das relações entre os dois países e a busca de uma «cooperação construtiva.»


Legenda: a imagem é a capa da Time com a legenda: «Não há nada para ver aqui».

APANHADOS DO FACEBOOK

COMO DE VÓS

Final da carta de Jorge de Sena para Eugénio de Andrade datada de 2 de Novembro de 1958:

P.S. – Sabe V. que o meu soneto à memória do papa me valeu uma carta anónima do Porto, classificando-o de… não poesia mas desinteria? Palavra que, para meu governo, gostaria de saber quem foi, pois não terá sido um simples leitor qualquer, Investigue-me isso.

Por carta, datada de 10 de Novembro, Eugénio de Andrade responde a Sena:

Que coisa horrorosa essa história da carta anónima! Não poderei averiguar nada sobre isso – há já muito, muito tempo, que me afastei de qualquer convívio de todos os «literatos» capazes de tais infâmias! E aqui há bastantes!

É este o soneto de Jorge de Sena:

Como de Vós

                       À memória do papa Pio XII que quis, ouvir, moribundo, o «Alegret-
                       To da Sétima Sinfonia de Beethoven

Como de Vós, meu Deus, me fio em tudo,
mesmo no mal que consentis que eu faça,
por ser-Vos indiferente, ou não ser mal,
ou ser convosco um bem que eu não conheço,

importa pouco ou nada que em Vós creia,
que Vos invente ou não a fé que eu tenha,
que a própria fé não prove que existis,
ou que existir não seja a Vossa essência.

Não de existir sois feito, e também não
de ser pensado por quem só confia
em quem lhe fale, em quem o escute ou veja.

Humildemente sei que em Vós confio,
e mesmo isto o sei pouco ou quase esqueço,
pois que de Vós, meu Deus, me fio em tudo

sábado, 18 de fevereiro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Gosto de animais porque não discutem a existência de Deus.

Walt Whitman citado por António Lobo Antunes numa entrevista ao Expresso.

DO BAÚ DOS POSTAIS

Tavira em outros tempos.

DÉCIMO PRIMEIRO POEMA SOBRE A MORTE DE DESUS


Visitava a cidade dizimada pela fome
os velhos moribundos becos imundos
os meninos
destroçados
injustiçados
os meninos
torturados
triturados
pelo cancro.

Dizia: assim foi assim é e assim será.
Como se fosse Deus.

António Rego Chaves em Três Vezes Deus


Nota do editor: o primeiro poema está publicado em Dizendo-me Aqui Estou

Legenda: fotografia retirada de Pankarta.

OLHAR AS CAPAS


O Paraíso Triste

Maria João Martins
Capa: Luís Eme
Colecção Memória de Lisboa
Veja, Lisboa, 1994

Vivia-se de cócoras – o riso era uma indecência e o amor uma extravagância. A vida, qualquer coisa que, de repente, se descobria ter desperdiçado enquanto fora tempo. Nessa noite, no entanto, Lisboa festeja, como uma louca sem noção do tempo, do espaço ou das circunstâncias, o duplo centenário. Vive-se a última oportunidade para visitar essa obra-prima da arquitectura para ver e deitar fora que é a Exposição do Mundo Português, em Belém. Centenas de lisboetas não perdem tempo e tratam de se extasiar com o simulacro de Império erguido à beira-Tejo, para maior glória do Estado Novo.

TRUMPALHADAS


Faz hoje um mês que Donald Trump começou a fazer da Casa Branca um circo e uma feira de vaidades.

Os jornais fazem uma selecção de frases proferidas por Trump desde que assumiu a presidência:

«Tudo começa hoje.»

«A partir de agora, a América primeiro.»

 «Hoje, não estamos só a transferir poderes. Estamos a retirar o poder de Washington para o devolver ao povo
20 de janeiro será recordado como o dia em que o povo voltou a mandar no país.»

«A América vai começar a ganhar de novo, a ganhar como nunca antes. Vamos trazer de volta empregos. Vamos trazer de volta fronteiras. Vamos trazer de volta riqueza. E vamos trazer de volta os nossos sonhos.»

O México aproveitou-se dos EUA durante demasiado tempo. Enormes défices comerciais e a pouca ajuda na muito débil fronteira, isso deve mudar, AGORA.»

«O decreto de restrição à imigração e entrada de refugiados nos Estados Unido] está a funcionar muito bem. Vê-se nos aeroportos, por todo o lado.»

«Para que as coisas sejam claras, não se trata de uma proibição contra os muçulmanos, como os 'media' noticiam falsamente. Isto não tem nada a ver com a religião, trata-se de terrorismo e da segurança do nosso país.»

«Quando um país não é capaz de dizer quem pode e quem não pode entrar e sair, especialmente por razões de segurança, é um grande problema.»

«Não posso simplesmente acreditar que um juiz tenha posto o nosso país em tanto perigo. Se algo acontecer, a culpa será sua e do sistema judicial. As pessoas estão a entrar no país. Mal!»

«Às forças da morte e da destruição, saibam que os EUA e os seus aliados vão vencer-vos. Vamos vencer o terrorismo islâmico radical e não o deixaremos ganhar raízes no nosso país.»

«Se os Estados Unidos não ganharem este caso [decisão judicial contra o veto migratório], como tão obviamente deveriam, nunca conseguiremos ter a segurança a que temos direito. Política!»

A minha equipa funciona como uma máquina afinada à perfeição.» 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

POSTAIS SEM SELO


E o terror habite as vogais. O medo
o ignore. E a timidez. E o orgulho.
Uma só palavra na inocência de múltiplas palavras.
Que o poema seja lido como quem bebe. Um plano
de longa data pensado. E esquecido.

Eduardo Guerra Carneiro em É Assim Que Se Faz a História.

OS CROMOS DO BOTECO


Encontrado no Boteco o «single» de uma das grandes canções de Patxi Andion.: 20ºAniversário.