sábado, 30 de novembro de 2019

HÁ 24 ANOS FICÁMOS SEM O ASSIS PACHECO


No dia 30 de Novembro de 1995, morria Fernando Assis Pacheco. Tinha 58 anos.

Saía da Livrareia Bucholz, quando um ataque cardíaco o vitimou.

Jornalista, poeta, romancista, um tipo de que se gostava à primeira vista.

Conheci-o nos idos de 1967, na redacção do Diário de Lisboa.

Mas o convívio aconteceu quando, juntamente com outros jornalistas do Diário de Lisboa, Raul Rego e Vitor Direito à cabeça, o Assis Pacheco, mais a sua HCESAR, se passou para o Republica.

Naquela manhã, fiquei parvo de todo a olhar os títulos dos jornais, a tentar perceber se aquilo era mesmo possível: o Assis Pacheco já não estar por aqui.

Tinha um fino humor, uma ironia cortante, uma cultura sem limites.

As suas entrevistas são de mão cheia e algumas delas encontram-se reunidas em Retratos Falados, que as Edições ASA publicaram em Maio de 2001. A Assírio Alvim tem vindo a publicar toda a sua obra.

Na sua HCESAR, escrevia com o indicador direito e gargalhava para a redacção, contando a última pilhéria.

Gozador da vida, perdia-se por vinhos e petiscos.

Deixou escrito que os melhores tordos que comeu, foram preparados pelo José Cardoso Pires  que tinha um apartamento, rasgado para o Atlântico, na Costa da Caparica.

No dia em que escorregou para dentro de si mesmo, Fernando Assis Pacheco estivera a folhear livros nos escaparates da Bucholz.

Quem dedicou toda uma vida à cultura, só poderia partir assim.

José Cardoso Pires:

Aqui para nós palpita-me que não vou tardar muito a ir ter contigo, é cá uma fé, até já sei que te vou encontrar “solitário diante de uma folha branca” como o Maiakowski. Mas sabes?, enquanto por cá ando fazes-me falta. Bastante, Assis. Mesmo bastante, acredita.

Último Tesão

Alombo contigo há uma porção de anos
e vou-te dizer és um chato
não tens ponta de paciência
para a vida nem para ti próprio

já te ouvi discursos a mandar vir
já te carreguei às costas
bêbedo como um Baco de aldeia
mijando as ceroulas
és um adolescente retardado
faltou-te sempre a quarta do bom senso

vez por outra um livrinho
de versos vez por outra nada
qualquer um do teu tempo
está bastante melhor do que tu
deputado administrador de empresa
ministro da maioria
puta (alguns chegaram a isso)

só tu meu inocente brincas com a neta
açulas o cão pedindo
à família que te ature
o tipo um dia destes morde-te
que é para aprenderes

mas aqui entre amigos
vou-te dizer também
uma coisa importante não cedas
à tentação de mudar
fica nesta pele que é tua

como é que tu escrevias
merdalhem-se uns aos outros

o país mete dó

guarda o último tesão
para mandares
meia dúzia de canalhas à tabua

Lisboa
5/6/9-VII-95

Fernando Assis Pacheco em Respiração Assistida

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

PAPÉIS DATADOS


adeus longos e tristes embarques de soldados na Rocha de Conde de Óbidos para África ecos de lágrimas uma raiva mastigada passar as fronteiras a monte comboios que partem o som de um acordeão na gare de Austerlitz um povo acossado queríamos um país acontecia-nos uma enorme desesperança uma paz podre de cemitérios como se mantém este deserto? um país medonho monstruoso calado amordaçado sitiado vigiado o medo sobretudo o medo um silêncio de não poder respirar vontade de outros olhares vontade de dizer hoje toda a cidade me fala de ti mas «como hei-de amar serenamente com tanto amigo na prisão» (1) os dias a correr «um verão quando voltava de Londres, tinha passado por Portugal. Tinha posto a si mesmo mil perguntas sobre o declínio dessa nação cujo império se tinha estendido à volta do Globo. Ele tinha pensado que era a pior das infelicidades nascer português. Em Lisboa, pela primeira vez na sua vida, tinha-se encontrado com um povo que se tinha desinteressado» (2) dias e mais dias «estamos catalogados, estamos empalhados dentro de uma redoma de vidro, mergulhados num frasco com álcool, isolados de tudo e com um rótulo debaixo dos pés. O rótulo puseram-no os outros; nós consentimos acomodámo-nos e vamos vivendo com ele» (3) de quando em vez um grito «instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses. Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado! Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!»(4) tentar acreditar «diz-lhes que se resiste na cidade desfigurada por feridas de granadas e enquanto a água e os víveres escasseiam aumenta a raiva e a esperança reproduz-se» (5) ler a história e ficar a saber «que um povo não morre porque o oprimem, mas morrerá certamente, se antes da luta, abdica» (6) e por fim sim por fim «digo-vos senhores é findo o vosso tempo o jogo terminou ainda que não o pareça» (7).

Citações:

(1) Versos de Fernando Assis Pacheco para uma canção de Adriano Correia de Oliveira
(2) Roger Vailland em A Lei
(3) Augusto Abelaira em A Cidade das Flores
(4) Mário Sacramento, em Carta-Testamento
(5) Egito Gonçalves, em A Viagem Com o Teu Rosto
(6) Basílio Teles em Textos Políticos
(7) Daniel Filipe em Pátria Lugar de Exílio

23 de Setembro de 1968

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

OLHAR AS CAPAS


Cais negramente reflectido nas águas paradas,
Bulício a bordo dos navios,
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
Que quando o navio volta ao porto
Há sempre qualquer alteração a bordo!

Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos reflectidos devagar nas águas,
Quando o navio larga do porto!
Flutuar como alma da vida, partir como voz,
Viver o momento tremulamente sobre águas eternas.
Acordar para dias mais directos que os dias da Europa,
Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar,
Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atónitas...

Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe,
E depois as praias próximas, vistas de perto.
O mistério de cada ida e de cada chegada,
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Deste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramam
Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar,
Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,
Para o navio que se aproxima.

Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
E a palidez das manhãs em que se parte,
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um medo
– O medo ancestral de se afastar e partir,
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo –
Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fosse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer coisa.
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento,
E só fica um grande vácuo dentro de nós,
Uma oca saciedade de minutos marítimos,
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor
Se soubesse como sê-lo...

A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca,
Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido.
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.

Fernando Pessoa

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

CREPÚSCULO


Era aquela altura do dia de que tanto gosto. Sobre a quala houve quem escrevesse poemas. A altura do dia em que a tarde caminha para noite. Crepúsculo, acho que é assim que se chama, e esgueirei-me para o outro lado da estrada, na expectativa de dar uma espreitadela antes que começasse uma conversa qualquer com alguém visível ou invisível.


Legenda: pintura de Théodore Rousseau

terça-feira, 26 de novembro de 2019

NO NOSSO TEMPO...


No nosso tempo havia cegos e surdos que falavam
e nos queria cegar e ensurdecer.
Mas nós mantínhamos nos pulsos a tensão vertical
de um fogo verde de um outra vida.
Era um horizonte de palavras novas, de árvores reverentes.
Escrevíamos panfletos que às vezes nos fugiam dos bolsos
em revoadas que se confundiam com as aves.
Acampávamos em pinhais, cantávamos e dançávamos,
saudando o sol de um novo dia
e às vezes a polícia surpreendia-nos
com as metralhadoras aperradas contra nós.
Devorávamos os livros proibidos apaixonadamente
reunidos em exíguos quartos ou solitariamente.

Não importa se muitos se enganavam adorando um déspota como um deus
porque a verdade estava na sua oposição
à tirania que nos roubava o sol,
à liberdade e à justiça da palavra viva.
Vivemos duramente com obstinada paixão
mas vivíamos solidários e lúcidos na sombra
e a fraternidade era a nossa força e o prémio da nossa luta.
Vencemos finalmente mas a madrugada da nossa liberdade
foi apenas um momento. O que se seguiu depois
é um sistema que não sabemos combater
porque a sua teia é anónima, de uma violência esparsa
que nos impede a defrontação
com os seus disfarces e os seus estratagemas.

Diz-me meu querido Manuel, os nossos sonhos diluíram-se apagaram-se
ou resta ainda um tronco verde com duas ou três folhas
e a nossa sede não morreu, ela é a nascente viva
tal como eu te procurava para partilhar o meu fogo ansioso
entre as anelantes aranhas da minha angústia obscura?
Será que resta uma centelha insubmissa
desse lume fascinante que nos deslumbrava como se fôssemos náufragos
que procuravam um madeiro ou uma giesta incendiada
para que sentíssemos que a vida era a vida com o seu horizonte azul?

António Ramos Rosa

Legenda: desenho de António Ramos Rosa

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Vencemos finalmente mas a madrugada da nossa liberdade
foi apenas um momento.

António Ramos Rosa

Legenda: pintura de Kandinsky

ESTE DIA NÃO!


Algures, numa dobra da história, alguma coisa falhou, algum erro se cometeu. Seria altura de saber, onde, como, porquê. Mas talvez seja demasiado tarde…

Rodrigues da Silva, jornalista

OLHAR AS CAPAS


Herzog

Saul Bellow
Tradução: Luísa Ducla Soares
Capa: Luís Filipe de Abreu
Colrcção Latitude nº 62

Posso não estar bom da cabeça, mas tudo me parece claro, pensou Moisés Herzog.
Algumas pessoas julgavam-no louco, e durante um certo tempo ele próprio duvidou da sua integridade. Mas agora, embora o seu comportamento fosse ainda estranho, sentia-se confiante, alegre, clarividente e forte. Um feitiço envolvera-o, e começara a escrever cartas a toda a gente. Estava tão excitado com estas cartas que desde o fim de Junho andava dum lado para o outro com uma mala cheia de papéis. Levara essa mala de Nova Iorque para Martha’s Vineyard, mas regressou de Vineyard imediatamente; dois dias mais tarde voou para Chicago, e de Chicago dirigiu-se para uma aldeia na zona oriental de Massachusetts. Escondido no campo, escreveu incessantemente, fanaticamente, para os jornais, aos homens públicos, a amigos e familiares e até aos mortos, aos seus próprios mortos obscuros, e finalmente aos mortos famosos.

domingo, 24 de novembro de 2019

NOTÍCIAS DO CIRCO


O CDS apresentou, na Assembleia da República, um voto de saudação pelo 25 de Novembro.

Lê-se no texto que «o 25 de Novembro é um dia que não deve ser esquecido, por isso, ano após ano, propomos que seja aqui votado um voto de saudação pela data.»
Por esse dia, lembra o CDS, «é que nos tornámos um estado de direito democrático.»
É importante lembrar que o CDS foi sempre um partido preocupado com o estado democrático, ao ponto de se ter recusado assinar o Pacto MFA/Partidos.
O voto foi aprovado pelo CDS, pelo PSD, pela Esquerda Liberal, pelo Chega e por sete deputados do Partido Socialista. Ficam aqui os nomes desses deputados pois devem ser os guardiões da gaveta onde um dia Mário Soares guardou o Socialismo.
João Ataíde
João Paulo Pedrosa
Pedro Cegonho
Ascenso Simões
Sérgio Sousa Pinto
Hortense Martins
Marcos Perestrelo.
As abstenções estiveram a cargo do Partido Socialista e do PAN.
Escreveu um dia Eduardo Lourenço que «PS e PSD são duas alternativas à mesma coisa.»

Legenda: Ramalho Eanes, Jaime Neves, Vasco Lourenço

sábado, 23 de novembro de 2019

OLHAR AS CAPAS


O Relógio Parado

Joel Townsley Rogers
Tradução: Almeida Campos
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 139

Há muito tempo já que o seu assassino a tinha deixado, julgando-a morta. Contudo, uma leve pulsação batia ainda dentro dela e até mesmo um ténue raio de consciência penetrava-lhe na mente.
A escuridão era pesada e impenetrável. No entanto, dentro dela, em qualquer ponto, uma voz de homem murmurava com simpatia e ternura.

«Encara os factos sensatamente, minha querida. Ninguém sabe que eu estou aqui contigo. O idiota com quem estás casada não o sabe. Nenhum dos teus amigos nem dos mais próximos vizinhos tem possibilidade de o saber. Somos apenas tu e eu, portanto quais são os teus receios? Tudo quanto desejo é ver-te feliz, meu amor. Acredita-me, eu não seria capaz de te fazer menos mal…»

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

DIAGNÓSTICO DA CIVILIZAÇÃO


Em algum lugar de uma selva qualquer, alguém comentou: Como são estranhos civilizados. Têm todos relógio e ninguém tem tempo

Eduardo Galeano em O Caçador de Histórias

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Mãe, eu quero ficar sozinho... Mãe, não quero pensar mais... Mãe, eu quero morrer mãe. Eu quero desnascer, ir-me embora, sem ter que me ir embora

José Mário Branco em FMI

Legenda: pintura de Vilhelm Hammershoi

UMA GOTA NO OCEANO DO GRANDE CAMINHO


O funeral de José Mário Branco parte esta tarde, pelas 17,30 horas, do Salão Nobre da Voz do Operário para o cemitério do Alto de São João onde o corpo será cremado.

«Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe, no fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco. Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra, o meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui convosco e ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez. Sou português, pequeno burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto.»
                                          
José Mário Branco em FMI

Legenda: pintura de Winslow Homer

AS VONTADES QUE ZÉ MÁRIO AJUDOU A MUDAR


Só alguém possuído de uma fina sensibilidade, decide colocar como faixa primeira do seu primeiro disco, o som da chegada de comboios na Gare d’Austerlitz, vozes, ranger de rodas nos carris, marcando vincadamente os que saíram de um país cinzento em busca de qualquer pedacinho de sol.

Havia também os que, a monte, saltavam fronteiras correndo todos os perigos.

Muitos encontraram a morte.

Miguel Torga, no seu Diário, lembra o aviltamento humano desses portugueses que se aventuraram e, na maior parte dos casos ficavam nas mãos de gente sem escrúpulos.
 
«- Entregas-me as peles em Moiros.
- A que horas?
-Às onze”»

As «peles», adianta Torga, eram os emigrantes clandestinos. 

Este álbum de José Mário Branco, é uma peça admirável.

Nas badanas do disco, escreveu José Duarte:
 
«primeiro em afirmações definitivas
num jornal cor de rosa
depois em cantigas do amigo dom dinis
a seguir com canções
em circuito concêntrico
por fim numa esplanada de paris
assim conheci josé mário branco
estamos perante um mural sonoro
do Portugal das últimas gerações
um mural onde as cores
são a mordacidade a caricatura
uma simbologia transparente
com tipos populares uma grande romaria
viva e em movimento
um mural onde os temas são a emigração
e o regresso
as guerras e os senhores
a juventude e as prendas
a esperança sem futuro
o medo e os fantasmas
o tempo e as novidade
tal como em perfilados de medo
a linha quebrada de sons electrónicos
é uma interferência uma ameaça
na arquitectura vertical e obstinada
do arranjo do medo
assim esta obra combate uma tradição
onde a palavra é o som mais inteligível
assim se encerra a fase confusa
da nova música portuguesa
assim se inaugura uma época nova
onde também cantar bem e compor melhor
serão condições a exigir a canção útil
da afinação da palavra
à desafinação das cordas
à percussão das peles e teclas
à imaginação nos arranjos
à criação melódica à vocalização justa
aqui o circo foi desmantelado
com todas as ferramentas do som»


quarta-feira, 20 de novembro de 2019

OLHAR AS CAPAS



Capa do Público de 20 de Novembro de 2019.

Como o Vitor Dias  costuma dizer:

«Coisas em que o «Público» dá cartas.»

SER SOLIDÁRIO


Ser solidário assim pr'além da vida
Por dentro da distância percorrida
Fazer de cada perda uma raiz
E improvavelmente ser feliz

De como aqui chegar não é mister
Contar o que já sabe quem souber
O estrume em que germina a ilusão
Fecundará por certo esta canção

Ser solidário, sim, por sobre a morte
Que depois dela só o tempo é forte
E a morte nunca o tempo a redime
Mas sim o amor dos homens que se exprime

De como aqui chegar não vale a pena
Já que a moral da história é tão pequena
Que nunca por vingança eu te daria
No ventre das canções sabedoria

Ser solidário assim pr'além da vida
Por dentro da distância percorrida
Fazer de cada perda uma raiz
E improvavelmente ser feliz

José Mário Branco

Legenda: fotografia de Alma Lavenson

terça-feira, 19 de novembro de 2019

JOSÉ MÁRIO BRANCO (1942-2019)


Morreu o José Mário Branco.

Há palavras para falar desta morte?

O João César Monteiro, que arrancou daqui com um cigarro na beiça e sem dever nada a ninguém, deixou escrito que a morte é silenciosa e nada tinha a dizer sobre o assunto.



A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes

São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Ensinas-me fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas

Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco para chegar
Eu não meti o barco ao mar
Pra ficar pelo caminho

Cá dentro…

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

OLHAR AS CAPAS


Histórias Com Juízo

Mário Castrim
Capa e ilustrações. Isabel Laginhas
Plátano Editora, Lisboa, Novembro de 1973

Ofício

-Mãezinha cadeira, o que é preciso fazer para ser uma boa cadeira?
- Muita paciência, filha, e ter as costas largas.

TISANA 45


 De cada vez que respiro sei que alternadamente perco e recupero o meu corpo. Depois penso que é na praia-mar da respiração que o meu corpo se forma, nesse intervalo. (Quando as pessoas dormem ou estão no cinema, por exemplo, o ar do recinto fica alternadamente cheio e vazio de corpos!) Respirar o corpo para fora inspirar o corpo para dentro. Eis como a ginástica é uma forma de vampirismo. Penso nisso quando estou na praia olhando um homem deslizar numa prancha de surf por uma onda fora. De repente desequilibra-se e cai. Tudo o que é profundo se revela à superfície.

Ana Hatherly em Tisanas

domingo, 17 de novembro de 2019

VELHAS CANÇÕES


Domingo de chuva.
Arrumações tendo em vista o Natal que se aproxima.
E de repente, cai este velho disco da Eurovisão de 1967, quando as canções da Eurovisão eram mesmo canções e não um folclore de macacadas e efeitos especiais, excepção feita ao nosso Salvador Sobral em que se chegou a pensar que o Festival poderia voltar aos velhos tempos… mas não… não voltou…
Devem lembrar-se que a Sandie Shaw apresentou-se a cantar Puppet on s String, descalça.
Conversa puxa conversa e, de repente, saltou que também existe uma canção do Elvis Presley que faz parte de um filme do Elvis que nunca vi. Também se chama Puppet on a String e, escusado será dizer, que o Elvis é sempre o Elvis e o que canta faz a sua diferença.



O MEU RESPEITO PELOS SEUS PODERES


Ela estava tão profundamente implantada na minha consciência que durante o meu primeiro ano de escola eu julguei, tanto quanto me lembro, que cada uma das minhas professoras era a minha mãe disfarçada. Assim que soava o último toque eu precipitava-me para casa, perguntando a mim próprio, enquanto corria, se seria possível chegar ao nosso apartamento antes de ela conseguir transformar-se. Mas ela já estava invariavelmente na cozinha quando eu chegava, pronta a servir-me o leite e as bolachas. Em vez de pôr fim ao meu delírio, no entanto, tal proeza limitou-se a intensificar o meu respeito pelos seus poderes. Aliás, era sempre um alívio não a apanhar entre encarnações, se bem que eu nunca deixasse de tentar; sabia que o meu pai e a minha irmã ignoravam a verdadeira natureza da minha mãe, e o peso da traição que — imaginava eu — recairia sobre mim se alguma vez a apanhasse desprevenida era mais do que eu me sentia capaz de suportar aos cinco anos de idade. Acho que receava mesmo ser morto se porventura a avistasse, vinda a voar da escola, a entrar pela janela do quarto, ou a aparecer membro após membro, saindo de um estado invisível e preenchendo o seu avental.
Quando ela me pedia que lhe contasse tudo o que fizera durante o dia no jardim-escola, eu, é claro, fazia-o escrupulosamente. Não tinha a pretensão de entender todas as implicações da sua ubiquidade, mas que esta se destinava a descobrir que género de rapazinho eu era quando julgava que ela não estava presente — eis o que era indiscutível. Uma consequência desta fantasia, que subsistiu (sob esta forma particular) até à primeira classe, foi que, verificando não ter alternativa, eu me tornei honesto.

Philip Roth em O Complexo de Portnoy

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS


As pessoas juntam-se pelo Natal. 
Poderiam fazê-lo mais vezes ao longo do ano mas, por isto ou por aquilo, não estão para aí voltadas.
Há quem diga que estes almoços/jantares de amigos, de colegas de trabalho, são uma hipocrisia como outra qualquer.
Eu, que gosto tanto do Natal, que logo que a quadra termina começo a contar os dias até ser Natal outra vez, não levo as coisas para esse lado. Que se juntem, que hipocritamente alguns façam um sorriso para o parceiro do lado, mas que se juntem.
Por mim, já comecei a trazer das lojas por onde passo, catálogos e toda a papelada que cheire a Natal.
Para cumprir, como diz o João, meu neto de 4 anos, que, na família, quem sabe de Natal é a avó Aida.

FUNDI UMA BALA...


Fundi uma bala para ti
Para te atingir no meu próprio coração
É de pedra, talhada por forçados
É de chumbo, temperado no sangue
É de ferro, temperada no mel
É de minério, talhada
Em toscas mordeduras
Para mais dilacerar
Para que sintas enfim
O que quer dizer morte de amor.

sábado, 16 de novembro de 2019

QUOTIDIANOS


De telemóvel em punho atrapalham as entradas e saídas nos transportes públicos, atravessam as passadeiras de peões.
E pode-se morrer a falar ao telemóvel...
Segundo o Jornal de Notícias, uma mulher morreu atropelada na Linha do Norte, em Valadares, Vila Nova de Gaia, depois de ter sido colhida por uma máquina de serviço da CP. Estaria a falar ao telemóvel, enquanto atravessava a linha, não tendo ouvido os sinais sonoros de alerta emitidos pela composição de serviço interno da CP.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

RELACIONADOS


Tropeço em velhas agendas, e fico a saber que há dezenas e dezenas de projectos para este Cais, que nunca viram qualquer linha e outros que começaram e ficaram a meio.
Um desses projectos é o das vilas de Lisboa.
Apenas fiz o registo de algumas dessas vilas – e elas são tantas! -  e foi isso que me levou a pensar que já tinha colocado a Calçada do Sol no Olhar as Capas. Mas não. A Calçada doSol apenas foi um pretexto para falar na Vila Rodrigues, largamente referida no livro do Zé Gomes Ferreira.

«Como hoje, sempre vivi a meditar em coisas em que pouca gente repara ou pensa», escreve o José Gomes Ferreira na Calçada do Sol.

OLHAR AS CAPAS



Calçada do Sol

José Gomes Ferreira
Capa: Luís Duran
Moraes Editores, Lisboa, Setembro de 1983

Então, o meu pai principiou a levar-nos à Ópera do Coliseu e aos concertos do Teatro da República, hoje São Luís.
Quando nos portávamos mal durante a semana, castigava-nos com rigor de olhos acesos:
- No Domingo não vão ao concerto.
Mas pouco a pouco os olhos apagavam-se, contentes de tanto amarmos a música que ardia na inocência dos nossos corações.
E nunca cumprimos qualquer castigo, determinado pelo meu pai que nos perdoava sempre com ternura de haver tão belas melodias no mundo.

MORTE


Sabemos que de todas as sementes
é a mais pesada. Havemos de esperar
por ela. Acolhemo-la e nada
podia ser tão nosso. Compreendemos
que no seu interior talvez exista
a última seiva, o rumor de outra
germinação para que fique
junto dela. Descai silenciosa
e devagar. A terra é o nosso corpo.


Fernando Guimarães em Resumo: a poesia em 2010

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Quando somos novos, pensamos que os velhos se queixam de os tempos já não serem o que eram porque isso lhes torna mais fácil não ter medo de morrer. Quando somos velhos, tornamo-nos impacientes com o modo como os jovens aplaudem o progresso mais insignificante mas não dão importância à barbárie do mundo. Não vou dizer que as coisas estão piores, o que digo é que, se estivessem, os jovens não dariam por isso. Os velhos tempos eram bons porque nós éramos jovens e ignorávamos quão ignorantes os jovens podem ser.

Julian Barnes em O Papagaio de Flaubert

Legenda: pintura de Edwarad Hopper

OLHAR AS CAPAS


Conspiração nas Trevas

Hartley Howard
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 267
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Na quarta-feira, 15 de Maio, o despertador acordou-o, como de costume, às sete e
Meia. Como de costume, também, às oito horas já estava barbeado, lavado e vestido. Enquanto tomava o pequeno-almoço leu o Daily Telegraph e, mais uma vez como de costume, levantou-se da mesa às oito e meia em ponto.
Todos consideravam Harry Brogan um homem que gostava de obedecer a um horário regular, a um padrão diário certo. Podia-se contar que, todas as manhãs, fazia as mesmas coisas, à mesma hora e do mesmo modo. Às oito e um quarto desdobrou o jornal e leu, na primeira página, as cartas ao director; às oito e vinte deu uma vista de olhos à secção desportiva e às oito e vinte e cinco leu os anúncios, na segunda página.

SARAMAGUEANDO


José Luís Peixoto começa alguns capítulos de Autobiografia com palavras de José Saramago:

Um dia escrevi que tudo é autobiografia, que a vida de cada um de nós a estamos contando em tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objeto no chão. Queria eu dizer então que, vivendo rodeados de sinais, nós próprios somos um sistema de sinais. Seja como for, que os leitores se tranquilizem: este Narciso que hoje se contempla na água desfará, amanhã, com sua própria mão, a imagem que o contempla.
José Saramago, Cadernos de Lanzarote, 1997

Não me escondo por trás do narrador.
José Saramago, 1994

Somos as palavras que usamos. A nossa vida é isso.
José Saramago, 2008

Há que escolher. Memórias ou romance? Confissão ou ficção?
José Saramago, 1951

Damos voltas e voltas. Mas, na realidade, só há duas coisas: ou você escolhe a vida, ou se afasta dela.
José Saramago, 1987

A linha que parece uma linha recta, não o é.
José Saramago, 1997

O leitor lê o romance para chegar ao romancista.
José Saramago, 2009

O leitor deve ter um papel que vai mais além de interpretar o sentido das palavras.
José Saramago, 2008

Que este romance (Todos os Nomes) possa ser entendido como mum ensaio sobre a existência – talvez. Julgo que todos os livros o são, que escrevemos para saber o que significa viver.
José Saramago, 1997

Toda a obra literária leva uma pessoa dentro, que é o autor. O autor é um pequeno mundo entre outros pequenos mundos. A sua experiência existencial, os seus pensamentos, os seus sentimentos estão ali.
José Saramago, 2001

Somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não.
José Saramago, 1997

A literatura não é um compromisso. Nunca. Se o compromisso existe, será o dessa pessoa que é o escritor. A literatura não pode ser instrumentalizada.
José Saramago, 1998

José Saramago disse-me muitas vezes: o José tem de pensar na sua obra. O José era eu.
José Luís Peixoto, 2010

A literatura é o resultado de um diálogo de alguém consigo mesmo.
José Saramago, 2008

CORPO


Corpo serenamente construído
Para uma vida que depois se perde
Em fúria e em desencontro erguidos
Contra a pureza inteira dos teus ombros.

Pudesse eu reter-te no espelho
Ausente e mudo a todo outro convívio
Reter o claro nó dos teus joelhos
Que vão rasgando o vidro dos espelhos.

Pudesse eu reter-te nessas tardes
Que desenhavam a linha dos teus flancos
Rodeados pelo ar agradecido.

Corpo brilhante de nudez intensa
Por sucessivas ondas construído
Em colunas assente como um templo.

Sophia de Mello Breyner Andresen de Mar Novo em Cem Poemas de Sophia

MARCADORES DE LIVROS

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

POSTAIS SEM SELO



A poesia é a arte de juntar palavras que cavalgam sobre os impossíveis do mundo.

João Pedro Condesso em O Poeta Super-Herói

Legenda: fotografia de Hengki Koentzhoro

MANUEL JORGE VELOSO (1937-2019)


Manuel Jorge Veloso, personalidade marcante na história do jazz em Portugal,  faleceu hoje, contava 82 anos.
Quando há quem diga as coisas de uma certa maneira, não hesito: Vitor Dias, em O Tempo das Cerejas, sobre a morte de Manuel Jorge Veloso.

NOTÍCIAS DO CIRCO


Aquele rapaz que palreia sobre futebol na estação-sargeta, que é deputado chegado a cheiros de ultra-extrema direita, apresentou um projecto de resolução, na Assembleia da República, a recomendar ao Governo que proceda à instauração de uma celebração solene do 25 de Novembro, com o fim de que lhe seja dado a mesma dignidade do 25 de Abril.

No projecto de resolução, o rapaz lembra que a liberdade só foi devolvida aos portugueses no dia 25 de Novembro de 1975 e isso deve-se à intervenção pronta e eficaz do Regimento de Comandos da Amadora, então sob o Comando do Coronel Jaime Neves, pelo que à sua ação decisiva devemos todos nós a liberdade e o regime democrático de que hoje podemos usufruir.

Em Novembro de 1976, Maria Velho da Costa escreveu um texto, manuscrito acima, que intitulou ESTE DIA NÃO.

«O 25 de Novembro não é para celebrar.
Porque não foi um acto de alegria, foi
um acto de necessidade. Para os melhores,
dolorosa, para os piores, maligna.
Proponho a esta assembleia de povos um
dia de silêncio em honra da fala
portuguesa sem ódio. Que não viva a morte.»

OLHAR AS CAPAS


O Poeta Super-Herói

João Pedro Condesso
Capa e ilustrações: Marta Tex
Sinopse: Luísa Ducla Soares
Inclui CD: Letras, músicas e arranjos: Gerson Santos   
Edição do Autor, Lisboa, Junho de 2019

Pelo rosto do rapaz deslizaram algumas lágrimas, porque o seu plano não resultara. Fez-se um silêncio aterrador. Então, vieram-lhe à cabeça as palavras de William Shakespeare que o pai lhe dizia antes de adormecer, todos os dias:
-Antes de se render, tente de novo!
De repente, Aristides ajoelhou-se na terra vermelha e, à sua volta, rapidamente se elevou uma gigantesca nuvem de pó. Dela ecoavam várias vozes com diferentes timbres e tons envoltos no troar dos tambores africanos que replicavam:
Segue as palavras de Shakespeare! Não chores!
Tu és um poeta. Aceita este lápis e dá vida à tua poesia!

QUEM MUITO VIU, SOFREU


Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

Jorge de Sena, soneto retirado de Entrevistas

Legenda: Fotografia de Cassie Werber

terça-feira, 12 de novembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Preciso muito de noites, alimento-me delas, da solidão da casa quando já todos se deitaram, do silêncio apenas longe a longe interrompido por breves ruídos (o estalar dos móveis, uns passos ou um desentendimento entre os gatos, a respiração respirando), do tempo que parece ter parado. É a melhor altura para escrever ou para ler, ou então para não fazer absolutamente nada, apenas para estar.

Manuel António Pina em Dito em Voz Alta

NOTÍCIAS DO CIRCO


Esta gente devia estar atrás das grades, mas passeia-se por aí e sorri.
O Ministério Público acredita que Manuel Pinho terá favorecido o Grupo Espírito Santo nos investimentos projectados para a Comporta, o sonho lindo de Ricardo Salgado,
Manuel Pinho antes de ir para ministro da Economia do governo de José Sócrates foi administrador do BES. Quando deixou o governo, foi para administrador do BES África, entre 20110 e 2014 e o Ministério Público tem fortes indícios que Manuel Pinho terá continuado a receber do Grupo Espírito Santo.

Legenda: título de 1ª página do Público de 7 de Novembro

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

O HOMEM DAS CASTANHAS


Na Praça da Figueira,
ou no Jardim da Estrela,
num fogareiro aceso é que ele arde.
Ao canto do Outono, à esquina do Inverno,
o homem das castanhas é eterno.
Não tem eira nem beira, nem guarida,
e apregoa como um desafio.

É um cartucho pardo a sua vida,
e, se não mata a fome, mata o frio.
Um carro que se empurra,
um chapéu esburacado,
no peito uma castanha que não arde.
Tem a chuva nos olhos e tem o ar cansado
o homem que apregoa ao fim da tarde.
Ao pé dum candeeiro acaba o dia,
voz rouca com o travo da pobreza.
Apregoa pedaços de alegria,
e à noite vai dormir com a tristeza.

Quem quer quentes e boas, quentinhas?
A estalarem cinzentas, na brasa.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
Quem compra leva mais calor p'ra casa.

A mágoa que transporta a miséria ambulante,
passeia na cidade o dia inteiro.
É como se empurrasse o Outono diante;
é como se empurrasse o nevoeiro.
Quem sabe a desventura do seu fado?
Quem olha para o homem das castanhas?
Nunca ninguém pensou que ali ao lado
ardem no fogareiro dores tamanhas.

Quem quer quentes e boas, quentinhas?
A estalarem cinzentas, na brasa.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
Quem compra leva mais amor p'ra casa.

José Carlos Ary dos Santos