José Gomes Ferreira chama-lhe, nesse seu diário desgrenhado de um homem qualquer nascido no princípio do século XX, Calçada do Sol.
Mais não era que a Calçada do Monte Agudo que, a partir de 1909, passou a chamar-se Rua Heliodoro Salgado.
Uma
calçada que só tinha casas construídas de um lado para se ver o longo panorama
de Lisboa.
Mais tarde ali viria a ser instalado o Miradouro do
Monte Agudo, uma das muitas fabulosas vistas de Lisboa, mas que é muito pouco
frequentado quer por turistas, quer pelos lisboetas. A Câmara gastou alguns
bons milhares de euros na sua recuperação, existe por lá uma esplanada, apenas esteve
aberta escassos meses, e, de repente, tudo voltou ao abandono e à vandalização.
Conheço bem o Miradouro, nasci perto dele, na Rua
Mestre António Martins, e ali passava as noites quentes dos verões de Lisboa,
quando não havia televisão e as famílias se sentavam por ali, a respirar o
fresco das noites.
Junto ao Miradouro havia um Mercado.
Corria os finais dos anos 60, o mercado foi
transferido para Rua Forno de Tijolo, junto aos Anjos, para no seu lugar, ser
construída a Escola Dona Luísa de Gusmão.
.
Mas voltemos ao livrinho do Zé Gomes:
A
calçada do Sol parecia uma espécie de aldeia que os homens se tinham esquecido
de levar para for de Lisboa. Uma aldeia escondida numa colina onde os doentes
da Baixa de 1900 iam convalescer do cansaço das doenças difíceis.
Em 1906, com seis anos, José Gomes Ferreira vivia no
r/c esq. do nº 52.
Damos um salto para um outro seu livro, A Memória das Palavras, ou o Gosto de Falar de
Mim, para ouvi-lo contar uma história dessa Calçada do Sol.
-
Vou para a quinta, mãe! – despedia-me aos pinotes.
E,
dissipada a poeira dos poucos minutos da correria, empurrava o ranger do portão
velho, na avidez de encher o peito de ao ar cheirosos aos pinheiros dos
primeiros dias da invenção do mundo, e mergulhava na liberdade feliz de devorar
a fruta verde e de trepar às árvores com a agilidade aprendida no marinhamento
dos telhados que tanto pavor de gritos provocava à minha mãe, conforme o
testemunho presencial de Irene Lisboa, então minha vizinha no prédio ao lado da
Vila Rodrigues. Por sinal soube disso poucos meses antes do falecimento da
escritora, que um dia em minha casa interrompeu a conversa para me perguntar no
usual tom de agressividade arrependida, coado pelo sorriso, com que se dirigia,
suave, aos amigos:
E num berro gostoso:
-Então era o Zeca!
Baixei os olhos diante daquela fatalidade irreversível de ser o Zeca.
- Era. Era o Zeca.
E iluminada pela nesga de sol que irradia lá do fundo da infância de cada um:
- Ora imagine que, durante
anos e anos – eu nessa ocasião era já uma senhorinha que olhava para a sombra!
– ouvi a voz aguda da sua mãe aos chamamentos aflitos
do lado de lá dos muros e da confusão das nespereiras: «Ó Zeca! Não vás para aí, Zeca! Sai do telhado, Zeca! Não caias Zeca!»
José Gomes Ferreira, na Calçada do Sol, também
cita este episódio da Irene Lisboa ter sido sua vizinha, e deixa um lamento:
Ah
naquele caldeirão grande, a escritora Irene Lisboa sentou-se muitas vezes a
protestar contra o mundo que a rodeava. Ninguém a lia! Ninguém lhe comprava os
livros. Porquê? Porquê? Talvez porque, até tu nasceres, nunca nesta nossa
língua de palavras rudes e fidalgas, aparecera uma mulher a escrever como tu. O
teu rolará pelos séculos fora.
Vila Henriques.
Os registos da Freguesia da Penha de França não
fazem qualquer menção à Vila Henriques, mas informam que no nº 48 da Rua Heliodoro Salgado
existe a Vila Guilherme Rodrigues, situada entre os prédios onde moraram José
Gomes Ferreira e Irene Lisboa.
Será esta a vila de que fala o José Gomes Ferreira?
Será esta a vila de que fala o José Gomes Ferreira?
Legenda:
Calçada
do Sol, Moraes Editores, Lisboa Setembro 1983
A
Memória das Palavras ou o Gosto de Falar de Mim,
Portugália Editora, Lisboa Março de 1966.
Fotografias:
- Nº 52 da Rua Heliodoro Salgado. No R/C esquerdo,
entre 1904 e 1917, viveu José Gomes Ferreira.
- Miradouro do Monte Agudo
- Escola Luísa de Gusmão
- Mercado do Forno do Tijolo
- Vila Guilherme Rodrigues, nº 48 da Rua Heliodoro Salgado.
2 comentários:
Se procurar no motor de pesquisa do arquivo fotográfico de Lisboa, deve ser esta vila henriques da silva
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/x-arqweb/ContentPage.aspx?ID=9527ec7c8c4f0001e240&Pos=1&Tipo=PCD
Título: Vila Henriques da Silva
Nível de descrição : Documento simples - Fotografia
Autor(es):
Figueiredo, Vasco Gouveia de
Cota antiga: A55870
N53338
Assunto: Tanque de lavar / Barraca
Morada:
Local: Alto da Eira
Freguesia: Penha de França
Cidade: Lisboa
Concelho: Lisboa
País: Portugal
Local: Vila Henriques da Silva
Imagem:
AF\img112\A55870.jpg
Código de referência: PT/AMLSB/VGF/S00710
Muito obrigado pela sua disponibilidade.
Conheço muito bem o Alto da Eira. Parte da minha infância passou-se nessa zona, minha avó morava na Vila Gadanho, de que já falei por aqui. Também me lembro da Vila Branca mas já não tenho memória da Vila Henriques da Silva. Se bem que aquela zona tenha sofrido grandes transformações, oportunamente, passarei por lá para ver se ainda existe. De qualquer forma esta não seria a Vila Henriques de que fala o José Gomes Ferreira que, tanto quanto se possa concluir, ficava mesmo na Colina do Monte Agudo.
O que por aqui se faz são meros divertimentos mas sem que o rigor seja desprezado.
Mais uma vez muito obrigado pela sua colaboração.
Abraço
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