terça-feira, 30 de abril de 2019

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Capa do programa do filme Uma Abelha na Chuva, um trabalho cuidado: oito páginas ilustradas, um artigo de António Pedro Vasconcelos a contar das dificuldades do novo cinema português, uma selecção de declarações de Fernando Lopes sobre as filmagens, a montagem do filme., um artigo de Eduardo Prado Coelho fazendo a ligação entre o livro e o filme, uma breve biografia de Carlos de Oliveira e o poema Cinema extraído de Sobre oLado Esquerdo.

«A abelha abriu as asas, atirou-se ao voo e foi apanhada pela chuva. Sofreu de tudo. Os fios do aguaceiro a enredá-la; golpes de vento a amocharem-lhe o voo; sacolejões, vergastadas, impulsos. Deu com as asas em terra. A chuva espezinhou-a, arrastou-se no saibro, debateu-se ainda. Mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas.»

João César Monteiro não tinha qualquer dúvida quando afirmou: «devo dizer que foi com o poeta Carlos de Oliveira que mais aprendi de cinema.»


Contra capa  do programa de Uma Abelha na Chuva com a reprodução do poema Cinema de Carlos de Oliveira:


CINEMA

I

O écran petrificado,
muros, ossos,
o movimento áspero da câmara
mergulhando nos poços
das leis universais,
o rigoroso cálculo da luz
em que a matéria já cansada,
autómatos, metais,
se envolve pouco a pouco
no vagaroso amor
que é o trabalho quase imperceptível
das manchas de bolor,
a ferrugem, o espaço rarefeito,
e um relógio apressado no meu peito.

II

A lentidão da imagem
faz lembrar
o automóvel na garagem,
o suicídio com o gás do escape,
quer dizer,
o coração vertiginoso
e a lentidão do mundo
a escurecer
nas bobines veladas
dos suaves motores crepusculares
ou, por outras palavras,
flashes, combustões,
entregues ao acaso das artérias,
melhor, das pulsações.

III

Radioscopia incerta
como nós,
mas provável, exacta
na dosagem da sombra com o cálcio
da sua arquitectura
milimetricamente interior,
transforma-se o espectáculo
por fim
no próprio espectador
e habita agora
a fluidez do sangue:
cada imagem de fora,
presa ao fotograma que já foi,
de glóbulo em glóbulo se destrói.

OLHARES


Não há vez alguma que passe pela porta do Gambrinus que não me lembre do Fernando Lopes.

Porque o balcão do Gambrinus era o lugar preferido do Fernando Lopes, tinha outros mas o Gambrinus é que era.

 Ao ponto de, numa entrevista deixou dito, cito de memória,  que um do seus grandes sonhos era ter ali uma placa bem visível com o seu nome, assim ao jeito das cadeiras de lona dos realizadores..

Maravilhado, ainda estou sentado da sala Estúdio do Cinema Império a assistir ao filme que Fernando Lopes realizou, adaptando Uma Abelha na Chuva de Carlos de Oliveira.

Jamais esquecerei.

Luís de Pina escreveu que Uma Abelha na Chuva de Fernando Lopes «é talvez o momento estético mais importante do cinema novo português.»

No dia da morte de Fernando Lopes, « um visionário que não teve mais eco» Jorge Silva Melo, velho companheiro do cineasta, escreveu:

«O cinema do Fernando Lopes tinha a liberdade e a delicadeza das composições de jazz. Tinha uma forte presença musical. E era o cinema da amizade porque é indissociável dos seus amigos. O Belarmino [começou assim, nas] noites de conversa e amizade no café na Avenida da Liberdade, que foi gravando na pedra. O Baptista-Bastos, o Alexandre O’Neill, o Alberto Seixas Santos a irem depois comer as comidas da mãe do Fernando na Avenida de Roma. Ele prezava os amigos, dava-se bem com toda a gente e era impossível resistir ao Fernando. Os seus filmes são sobre isso e são também a solidão em que foi avançando ao longo da vida. Não era ra ele a compadecer-se com as suas dores, era ele a encontrar um amigo. Era um entusiasta e espalhava imensa ternura por todos. Mas ele ficava genuinamente feliz com as conquistas dos outros. Não se desanimava com seus filmes não terem êxito. Queixava-se muito que os meios de produção actuais estavam esclerosados, e dizia que era precisa uma nova nouvelle vague, com meios mais ligeiros para fazer cinema. O Fernando gostava de meter as mãos na massa que eram os filmes dos outros. Há uma famosa história em que depois da estreia de Verdes Anos, de Paulo Rocha, foram para o laboratório cortar 3 minutos no positivo, porque o Fernando achava que ainda havia coisas para acertar. Tinha 14 ou 15 anos quando vi o “Belarmino” e conheci o Fernando à mesa do Monte Carlo, um café que existia no Saldanha.»

segunda-feira, 29 de abril de 2019

O 1º DE MAIO É FERIADO NACIONAL


A importante notícia que percorre todos os jornais:

É instituído como feriado nacional obrigatório o dia um de maio, considerado o «Dia do Trabalhador.»

Por outro lado, continuam as manifestações, as reuniões políticas, a «caça ao pide.»

Na página desportiva do Diário de Lisboa, uma interessantíssima observação do jornalista Neves de Sousa e que constitui a abertura da sua crónica sobre o jogo entre o Sporting e o Belenenses para a Taça de Portugal.

Com tanto pide preso e barões e baronetes em fuga, gentes que tinham cartões de livre-trânsito para todos os jogos de futebol, não ocuparam os seus lugares…


O República chama para a 1ª página uma afirmação de Mário Soares na sua chegada a Lisboa.


Nas páginas interiores, o República noticia que essa figura sinistra, que dá pelo nome de Capitão Maltês e era o comandante da Polícia de Choque, ainda andava fugido.


Quem quisesse sair do País, só poderia levar um máximo de 50 contos.



Na última página ficava a saber-se que Henrique Tenreiro, ex-deputado e presidente da Junta Central da Legião Portuguesa, para além de outros títulos, apresentou-se, voluntariamente, à Junta de Salvação Nacional

Também no República, uma notícia insólita: a administração dos TLP tenciona descontar aos trabalhadores o facto de não terem ido trabalhar no dia 25 de Abril.


Na primeira página, A Capital dava conta da constituição do Movimento Democrático Português.

Para a Comissão Central Provisória, entre outros, foram votados Francisco Pereira de Moura, José Tengarrinha, Victor Wengorovius, Luís Moita, Henrique Neto.


UMA QUASE INCAPACIDADE DE ESCREVER


Chegamos ao fim da Leitura da correspondência trocada entre António Ramos Rosa e Jorge de Sena.
É um livro admirável, comovente, acima de tudo pelas cartas escritas por António Ramos Rosa.
Ramos Rosa tinha uma profunda consideração e amizade por Jorge de Sena.
No Natal de 1975 manda-lhe um postal:

«Meu caro Jorge de Sena:

Escrevo-lhe estas duas linhas com as quais quero testemunhar-lhe toda a minha grande amizade que não quero seja silenciada de todo pela minha inércia ou quase incapacidade de escrever. Tenho livros meus para lhe enviar, o último da poesia completa, da Plátano, e um poema Ciclo do Cavalo, muito diferente do que tenho escrito até agora. Ter-lhe-ia enviado os anteriores da Plátano? Receio que, pelo menos, o Animal Olhar não tenha seguido.
Recomende-me à Mécia e creia-me sempre o seu amigo muito grato que muito o admira e estima

António Ramos Rosa»

De Jorge de Sena, não há mais cartas.
Apenas uma de Mécia de Sena, datada de 8 de Fevereiro de 1977, em que agradece a Ramos Rosa os livros enviados e aproveita para informar que «o Jorge vai arribando devagarinho.»
A 25 de Março de 1976 Jorge de Sena sofrera um ataque cardíaco.

O livro fecha-se com o cartão que António Ramos Rosa, e sua mulher Agripina, enviam a Mécia de Sena após a morte de Jorge de Sena ocorrida a 4 de Junho de 1978:

«Mécia, querida amiga:

Sentimos dolorosamente, que as palavras são inexpressivas.
Estamos consigo, profundamente.»

domingo, 28 de abril de 2019

O CAMALEONISMO


28 de Abril de 1974

Barradas de Oliveira é demitido de director do jornal Época, que ontem não saiu para as bancas.

Depois de populares terem, anteontem, tentado destruir as instalações do jornal, que era um sustentáculo da ditadura, o Conselho de Redacção nomeou José Manuel Pintasilgo, chefe de redacção de ex-Época, como director do jornal, que passa, a partir de hoje, a publicar-se com o nome de A Época.

Esta é a capa do nº1 do ano I de A Época.

Começam a esboçar-se os primeiros sinais de camaleonismo.

Atente-se no final da sua declaração de princípios:


É  manchete em todos os jornais, a chegada a Lisboa de Mário Soares, bem como a recepção entusiástica que milhares de pessoas prestaram à sua chegada à estação de Santa Apolónia, no regresso do exílio em Paris.

Pela primeira vez os jornais dão conta da pretensão de o 1º de Maio ser decretado feriado nacional. O pedido foi formulado pelo «leader» da C.D.E., Prof. Francisco Pereira de Moura, durante a reunião de ontem com a Junta de Salvação Nacional

Diário Popular noticia que, num avião militar, partem amanhã, com destino ao Funchal a esposa e a filha do ex-presidente da República Américo Tomás.

Desde o dia 25, mais de um milhão de exemplares do Diário Popular têm sido disputados aos ardinas. Ontem, o jornal colocou três tiragens nas bancas.


Fotografia publicada na página 14 de A Capital que mostra o baptismo do novo nome da Ponte sobre o Tejo.

A acção foi levada a cabo por um movimento, espontaneamente formado, denominado 1º Comité de Acção Popular.


Destaque na 1ª página de O Século para a prisão de Silva Pais, ex-director da PIDE-DGS.

O Diário de Lisboa reproduz na 1º página o «poster» da autoria de João Abel Manta que é apresentado nas páginas centrais.

Primavera? é o nome que o artista lhe deu que, por motivos demais conhecidos, há tempo não publicava qualquer trabalho no nosso jornal.


Mário Castrim dedica a sua crítica de televisão às imagens da libertação dos presos políticos em Caxias.

Este é o começo da crónica:

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Foi numa crítica de televisão do Mário Castrim, no Diário de Lisboa, que li a frase do José Gomes Ferreira que vem em A Memória das Palavras, Ou o Gosto de Falar de Mim: «saudades, só do futuro.»

Como eu gostei do raio da frase, o próprio título do livro era apelativo.

Na biblioteca do meu pai não havia nenhum livro do José Gomes Ferreira.

Corria o ano de 1966, era Junho, um salto até à Feira do Livro para beneficiar do desconto: Na livraria 45$00, na Feira 36$00, e os preços ainda estão a lápis na primeira folha do livro.

Há livros de encantar. Este é um deles.

Não há ninguém tão feliz como o leitor que de súbito se descobre inteligente. A descoberta de José Gomes Ferreira, o comprar de A Memória das Palavras na Feira do Livro, é um destes casos, o saber certo de que vamos ficar com um autor para a vida.

No livro lia-se: «a maioria dos meus versos componho-os às topadas por essas ruas. Ai de mim, quando envelhecer!»

Se ele era poeta, havia que ir à procura dos livros.

E fui.

Uma Sessãopor Cinema é um livro publicado pela Cinemateca para assinalar o centenário do nascimento de José Gomes Ferreira que nasceu no Porto no dia 9 de Junho de 1900.

É uma antologia de textos de José Gomes Ferreira sobre cinema publicados nas revistas da época: a Kino, a Imagem, a Girasol, a Ilustração.

Para além desses textos e críticas, José Gomes Ferreira colaborou com os amigos Cottinelli Telmo e Chianca de Garcia nos filmes em A Canção de Lisboa e A Aldeia da Roupa Branca.

Mas com o pseudónimo de Álvaro Gomes fez a tradução e legendagem de filmes.

Durante cerca de cinco décadas, essa foi a sua principal actividade profissional.

De modo que, quando no cinema lia Legendas de Álvaro Gomes desconhecia que era o poeta José Gomes Ferreira que estava por detrás daquele pseudónimo.

No seu livro Revolução Necessária, Gomes Ferreira fala desse trabalho:

«De redactor de revistas cinematográficas (com inúmeras máscaras de pseudónimos e crítico do Diário de Lisboa), a tradutor de fitas assinadas pelo sr. Álavro Gomes pouco tempo levou. E, a certa altura, dei comigo na escravatura de arrastar, pela vida fora, grilões de chatice de sebo e raiva. Claro que as traduções de quilómetros de películas más fixaram para sempre o meu ódio ao cinema que eu chegara um dia a amar episodicamente na Noruega, quando assisti à exibição de um filme extraordinário com o título de A Revolta do mar Negro.
Revi-o há pouco em Lisboa com o seu nome verdadeiro: O Couraçado Potemkine.

A rotina de um trabalho penoso - seria bem pago? - levou-o a afastar-se do cinema, a quase odiá-lo.

O Sr. Álvaro Gomes era o poeta José Gomes Ferreira.

Como o poeta escreveu:

Viver sempre também cansa.

OLHAR AS CAPAS



Uma Sessão Por Página

José Gomes Ferreira
Organização literária: Teresa Barreto Borges e Nuno Sena
Direcção gráfica: Rita Azevedo Gomes
Cinemateca Portuguesa – Museu Do Cinema, Lisboa, Junho 2000

Acabei por sair do cinema, triste, sonâmbulo, a invejar Douglas Fairbanks. Oh! quem me dera poder ser El Gaúcho, generosos e dominador, rei duma cidade em outro planeta. Como ele, esse homem moreno e espadachim! Porque um actor cinematográfico vive uma vida excepcional, em outro mundo, em outra realidade… Certo, quando posa diante da objectiva e ouve a voz do megafone, a vida deve afigurar-se-lhe, algumas vezes, cruel e pesada. Mas depois? Sim, depois? Toda a canseira terminou e ei-lo projectado num pano branco, chefe de ladrões, desenrolando um chicote, em pela orgia de sonho, em pura verdade inverosímil!
Eu por mim não desejo morrer sem ter sido protagonista num filme – sem me ter visto em diferente. Isto de viver sempre em realidade também cansa!

sábado, 27 de abril de 2019

POSTAIS SEM SELO


A única desculpa de Deus é não existir.

Stendhall, citado por José Gomes Ferreira em Dias Comuns, Volume VIII

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

OFÍCIO DE EDITOR


Há editores e há editores.

Por norma, são personagens malquistos, há excepçoes, muito poucas, diga-se.

A maior parte são comerciantes sem escrúpulos, enganando os seus autores, pagando miseravelmente, principalmente as traduções

Pela entrevista que Maria Ondina Braga deu à revista Ler, ficámos a saber dos maus tratos que os seus livros, ela própria, mereceram dos editores que lhe calharam em (des)sorte.

«O meu primeiro livro Eu Vim Para Ver a Terra foi um livro que me trouxe grande desgosto: saiu cheio de cortes e gralhas, o editor não me deu para revisão, os caracteres chineses apareceram até ao contrário!
Traduzi durante mais de dezanove anos, quase vinte, e hoje, ao lembrar-me disso, espanto-me. Traduções que me pagavam um ano e dois anos depois de as ter entregado, que, às vezes, uma editora (pelo menos) não me quis pagar. Isto já sem falar do pouquíssimo que pagavam todas. E não recebia nenhuma percentagem nas edições frequentemente sucessivas, nem quando o editor vendia o livro a uma organização editorial.
A minha sorte tem sido bem fraca: editores que não pagam os direitos de autor ou pagam apenas uma mínima parte, não dão à Sociedade Portuguesa de Autores a relação dos livros existentes, houve um que fez edições piratas a há depois os que abrem falência, o autor fica separado da sua obra, como aconteceu com a editora dos meus dois últimos livros, não pagou, o caso foi para contenciosos da SPA, que, por sua vez, também nada resolve. Nunca tive um editor que se empenhasse na promoção da minha obra».

Maria do Rosário Pedreira é editora na Leya:

«Tive de me habituar a outra coisa, essa bem mais difícil, que é a de ter acima de nós pessoas que não gostam de ler, pessoas que não percebem o que é um livro. Isso é dramático.»

Manuel Alberto Valente é responsável editorial no grupo Porto Editora:

«Há 30 anos, os editores procuravam autores. Com a criação dos grandes grupos editoriais e da chamada indústria editorial, a edição começou a procurar o que o leitor quer ler. E porque o que o leitor quer ler nem sempre é o melhor, o nível da edição baixou.»

Opinião do escritor chileno Luís Sepúlveda:

«Há cada vez menos editores de verdade e cada vez mais managers que vendem livros conmo se fossem batatas ou bananas. Eles não falam de livros mas de produtos. Não falam de letras mas de números. Não falam de leitores mas de compradores. Com “yuppies à frente das grandes editoras, geram-se situações canalhas. Oferecem menos dinheiro aos escritores e chantageiam-nos, dizendo-lhes que não faltam escritores que queiram publicar.»

Numa carta, datada de Paris, 5 de Julho de 1969, António José Saraiva, em carta para Óscar Lopes, referia os problemas que tinha com o editor Francisco Lyon de Castro das Publicações Europa-América:

«Em Outubro de 1965, carta minha de 31, lembrei ao Lyon de Castro que a 8ª edição da História da Literatura (Colecção Saber), então a imprimir, devia levar a minha chancela, segundo o contrato assinado. Respondeu em 4 de Novembro que o «o livro já estava à venda» e por isso não podia ser rubricado.
Em 4 de Abril de 66 o Lyon de Castro noticiava-me que a História da Literatura tinha sido proibida pela Censura.
Em 19 de Maio de 1967, os serviços de contabilidade da Europa-América comunicavam-me, incidentalmente, que a proibição tinha sido levantada, «encontrando-se de novo a obra à venda».

Segundo saraiva houve um longo silêncio de Lyon de Castro. Só volta a escrever em 26 de Agosto de 1968 e não falava da História da Literatura.

Entre esta data e 19 de Março de 1969 Saraiva recebeu 8 cartas do editor e em nenhuma era falada o que se passava com o livro.

«Intrigado com isto perguntei-lhe em carta de 24-3-69 notícias do livro (além de outros assuntos). Em carta de 10 de Abril respondeu quanto a este ponto: «História da Literatura portuguesa; responde-se à parte». Mas na carta não vinha qualquer aparte sobre o assunto.
Em carta de 29 de Abril dizia-me o seguinte: «A libertação do livro determinou um movimento de vendas que nos forçou a uma rápida reedição de 3000 exemplares em Dezembro/68. No Brasil também se sabia que a obra estava proibida e logo que ela foi libertada fizemos uma intensa propaganda o que determinou uma grande procura, a que tivemos de responder rapidamente.»

António José Saraiva conclui que Lyon de Castro não lidou com lisura com ele.

«Só vejo uma solução para o meu problema com o Lyon de Castro: é desligar-me dele. Até hoje foi o único editor intrujão que tive e já fui editado em cinco casas.»

Ainda sobre o editor Francisco Lyon de Castro, recorro ao 9º volume dos Dias Comuns de José Gomes Ferreira, numa  entrada datada de 22 de Junho de 1970:

«O Palma-Ferreira apareceu a certa altura do serão em casa do fafe, nervosíssimo, cheio de notícias e de escândalos imaginários.
- O Namora vai-se embora da Europa-América, o Lyon de Castro é um malandro, roubou-me cinquenta e tal contos. Não me quer pagar os direitos de autor do meu livro As Eleições de Outubro de 1969 com pretexto de que o compilei durante as horas de trabalho na Europa-América… Ora, tínhamos combinado que descontaríamos essas horas no meu ordenado… É um gatuno, etc., etc. »

Num interessante livro a que chamou Olhar de Editor, Serafim Ferreira ergue uma memória em honra e glória de alguns editores: Luiz de Montalvor (Ática), Delfim Guimarães (Guimarães Editores), António Pedro (Confluência), Figueiredo Magalhães, (Ulisseia), Manuel Rodrigues de Oliveira (Cosmos), Manuel Rodrigues (Minerva). Viriato Camilo (Prelo), Luiz Pacheco (Contraponto).

Acrescento Rogério Mendes de Moura, Vitor Silva Tavares, Nelson de Matos, Zeferino Coelho e Fernando Vale e um interessante número de pequenos editores que vão fazendo o seu trabalho de amor aos livro e não  cifrões

Em O Homem dos Comboios, Eric Lomax escreve a abrir:

«Este livro tem uma incomensurável dívida de gratidão com a criatividade e o talento de Neil Belton. O seu inestimável contributo para o texto final excedeu em muito a habitual relação entre autor e editor. Reconheço que sem sua ajuda eu não teria sido capaz de forma final a tudo aquilo sobre que reflecti ao longo dos últimos cinquenta anos.»

Na morte de André Jorge, fundador da Editora Cotovia, disse o escritor Pedro Paixão:

«Se não fosse meu editor eu não publicava nada.»

 Legenda: pintura de Vieira da Silva

E REZAMOS A DEUS PELO POVO DE PORTUGAL


27 de Abril de 1974.

O terceiro dia da nossa vida em liberdade.

Todos os jornais dão conta das reuniões que vão ocorrendo, no Palácio da Cova da Moura, com a Junta de Salvação Nacional, das manifestações de apoio ao Movimento das Forças Armadas, que vão acontecendo por todo o País.
Anuncia-se que está prevista para amanhã a chegada a Lisboa de Mário Soares e que os bancos reabrirão na segunda-feira dia 29.

Após demoradas negociações são libertados os presos políticos que se encontravam no Forte de Peniche. Os presos tinham decidido que ou saiam todos ou não saia nenhum.

Esta é a 1ª página de A Capital que na sua página 4 noticia que o Presidente da Assembleia Nacional, Engº Amaral Neto cancelou a reunião marcada para este dia e aguarda, apenas, que a Junta de Salvação Nacional decrete a dissolução da Assembleia.


Diário Popular dava conta que, em Beja, foi preso pela polícia um homem que ostentava um cartaz a pedir a extinção da PIDE.


Destaque na página 14 para a reunião que a Conferência Episcopal iniciou, no dia 23, em Fátima, ainda em tempo de ditadura, e que teve o encerramento ontem ao final da tarde.

Os senhores bispos mudaram de agulha e emitem um comunicado em que formulam votos para que os acontecimentos destes dias contribuam para o bem da sociedade portuguesa, na justiça, na reconciliação e no respeito
por todas as pessoas. Apelam para a virtudes cívicas dos católicos e demais portugueses de boa vontade. E rezam a Deus pelo povo de Portugal.

A conferência aproveita para se solidarizar com o Bispo de Nampula, expulso de Moçambique, nos primeiros dias de Abril, pela ditadura.


Essa solidariedade teria sido bem-vinda aquando dos acontecimentos, que também envolveram a expulsão de diversos missionários acusados de atentados e de se oporem à guerra colonial.

Mas apenas um beato silêncio.

Profundo foi também o silêncio que os senhores bispos mantiveram, durante quarenta e oito anos, com um regime que oprimia e perseguia um povo e mantinha em África uma guerra  que matou, estropiou milhares de portugueses e africanos.

República revelava que no Forte de Caxias estavam presos 228 membros da Ex-PIDE-DGS e que ainda continuavam à solta mais de dois mil agentes.


Oportuna a entrevista que na página 13, do República, o desembargador Rocha Cunha concedeu a Fernando Assis Pacheco.

Está por fazer a história da participação dos juízes dos Tribunais Plenários.

Pior ainda o sabermos que, após o 25 de Abril, esses mesmos juízos foram integrados no sistema judicial sem nunca terem sido responsabilizados e julgados. Eles foram protagonistas do aparelho repressivo da ditadura.

Uma impunidade que há-de estender-se aos agentes da PIDE-DGS e outros servidores do Estado Novo.

Não por uma questão de vingança, apenas por uma questão de justiça.

Na sua página de espectáculos o jornal avisava que, por motivos óbvios, não era possível publicar a programação da RTP:


Como os restantes jornais, O Século noticiava o assalto que populares fizeram ao edifício do jornal Época, que não se publicou neste dia, e que obrigou à intervenção de elementos das Forças Armadas.

Face a este incidente, e outros que iam acontecendo, como a invasão das instalações da A.N.P., a Junta de Salvação Nacional emitia um comunicado:


Na página 7,  publicava-se uma fotografia de Eduardo Gageiro  que registava o momento em que um membro da PIDE-DGS era preso.

Esta fotografia correrá mundo.


Também a notícia da morte do poeta Pedro Oom, fulminado por um ataque cardíaco. O poeta que tinha 47 anos, um pouco menos que o regime deposto, e não resistiu à emoção de ver cair a ditadura.



Fotografia na última página do Diário de Lisboa.




No Largo da Misericórdia, o povo largou fogo a um automóvel da PIDE, ontem á tarde. Três agentes transportavam-se nele quando, cerca do meio-dia, foram identificados por populares arrastados para junto do pelourinho do largo e desramados pelo Exército. O povo queria linchá-los, tendo sido contido só a muito custo pelo capitão e pelos poucos soldados que os guardavam.

Como era sábado, saída para as bancas do semanário Expresso.

Curiosidade sobre a abordagem que seria feita aos acontecimentos do 25 de Abril, mas os leitores encontraram uma edição inócua e hibrida.

A parte final do editorial do Expresso:

QUEM MUITO VIU...


Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

1961


Legenda: fotografia Shorpy

sexta-feira, 26 de abril de 2019

POSTAIS SEM SELO

NOS TEMPOS EM QUE NÃO HAVIA GOOGLE...


Hoje, que temos na internet ferramentas que nos facilitam trabalhos, podemos pensar em todos aqueles que, em outros tempos, tinham imensas dificuldades para escreverem os seus artigos, as suas conferências, os seus livros.
Isso deveria levar-nos a ter ainda mais consideração por tudo o que nos deixaram.
Peguemos, por exemplo, na Correspondência trocada entre António Ramos Rosa e Jorge de Sena.
Numa carta, datada de 12 de Janeiro de 1974, Jorge de Sena pedia a António Ramos Rosa:

«E agora aproveito a oportunidade para pedir-lhe um pequeno favor, que se reporta às notas que já fiz para os novos volumes de traduções minhas de poesia, coligidas. É que não consigo de maneira nenhuma encontrar indicação de se o Pierre Jean Jouve e o Jacques Prévert ainda estão vivos, e, se morreram, quando foi; e dados biográficos (bibliográficos encontro eu) do Georges Hunet que foi membro do grupo surrealista e de cuja poesia gosto muito (onde e quando nasceu, se morreu e quando, etc.). Talvez V. me possa ajudar quanto a estas informações.»

António Ramos Rosa, fragilizado como quase sempre foi a sua vida, respondia-lhe em carta datada de 21 de Fevereiro de 1974:

Se não fosse o meu estado seria de facto indesculpável não lhe ter escrito há mais tempo para lhe fornecer as informações que me pedia sobre os poetas franceses, Não descurei o assunto, mas muito pouco consegui apurar ao certo. Nos meus livros, os únicos dados biográficos que consegui obter sobre Georges Hugner, foram os seguintes (em Le Surrealisme, de Robert Bréchon, ed. Armand Colin, pp 187 e 199 de uma Cronologia): a adesão em 1930 ao grupo surrealista, juntamente com Dali, Buñuel, Char, Sadoul; e a exclusão do mesmo em 1938, juntamente com Dali. É alguma coisa mas não encontrei o mais importante: nem a data do nascimento, nem a data da morte, se é que ele já morreu. Quanto aos outros, nada consegui saber ao certo: não me consta que tenham morrido, pelo menos o Prévert que, segundo me informaram, publicou há poucos meses um livro. Penaliza-me não ter obtido mais informações, mas não consegui, apesar de ter consultado todos os livros de que dispunha, meus e de alguns amigos. Não encontrei os de Maurice Nadeau, onde talvez se encontrassem mais dados biográficos sobre Georges Hugner.

TER COMPAIXÃO E HUMANIDADE...


26 de Abril de 1974

O segundo dia da nossa vida em liberdade.

Aos poucos, a rotina do quotidiano vai entrando na normalidade.

Caminha-se para os empregos, para as escolas, para as fábricas, são os mesmos passos, os mesmos rostos, mas têm uma outra vivacidade, um outro fulgor.

Os jornais dão todo o destaque aos acontecimentos da data histórica.

Diário de Lisboa é o único que puxa para a primeira página a grande notícia dos dias que vão correndo: a libertação dos presos políticos, a rendição da PIDE/DGS.

No miolo da reportagem uma pergunta óbvia, uma resposta com o seu quê daquilo que mais tarde irá acontecer:

- O que vão fazer aos pides, pergunta o repórter ao comandante dos páras.

- Temos que ter compaixão e humanidade para com eles, respondeu-nos o capitão.

Mário Castrim coloca em título no seu Canal da Crítica: Televisão, alegria do povo.


Mas são de louvor à rádio as suas primeiras palavras:


Na página 12, uma notícia que, de modo algum, a censura deixaria passar:


Na página 13, destaque para as primeiras posições dos movimentos de libertação, face aos acontecimentos ocorridos em Portugal:



Em Kinshasa, Holden Roberto recusou-se a fazer quaisquer comentários até que a situação em Portugal evolua.

Aguarda-se uma declaração formal do porta-voz oficial do MPLA.

Não foi possível contactar com responsáveis da Frelimo.

Desde Lusaka, os combatentes dos Movimentos de Libertação nos territórios africanos de Portugal não se sentem seguros se o golpe militar em Lisboa virá ajudar a luta que travam pela independência total das colónias:


Na página 15 do República a reprodução de uma carta em que o Presidente da Comissão Central pedia explicações ao Director do jornal, Raul Rego, por ter publicado um artigo que fora alvo de cortes da censura:

Na mesma página, uma pequena, mas lamentável, notícia dá conta de que, apesar da intervenção dos militares, não foi possível salvar muitos arquivos e documentos da Censura que o povo lançou à rua e foram destruídos.


Aqueles documentos eram parte da nossa história.

Estava lá nesse momento, assisti ao crime, mas como se poderia tê-lo evitado?

Quarenta e oito anos de ódio e repressão sobre um povo, cegam, pesam muito:



Na página 17, um curioso texto de louvor à Margem Sul:


Na primeira página do Diário Popular amplo destaque à apresentação da Junta de Salvação Nacional.


Com chamada para a página 12: O Almirante Américo Tomás e o Prof. Marcello Caetano Chegaram à Ilha da Madeira.

Na página 9 foco  para as cinco edições que o Diário Popular publicara no dia anterior.

Na última página destaque para as preocupações da imprensa de direita inglesa sobre o futuro de África:


Tanto o Diário de Notícias, como O Século dão amplo desenvolvimento a tudo o que foi acontecendo no dia em que ditadura caiu.

Em O Século realce para o relato da última sessão da Assembleia Nacional:


Em O Século, a primeira fotografia publicada na imprensa da prisão de três pides, passos iniciais do que vai ficar a ser conhecido como a «caça ao pide.»


Por fim, três curiosos destaques  retirados da 1ª página da Época, jornal oficial do ex-regime, ainda com o nome do ultra Barradas de Oliveira como director:


- Um movimento Militar depõe o Governo.

- O Prof. Marcelo Caetano rendeu-se ao General António de Spínola.

- Garantir a sobrevivência da nação como pátria soberana no seu todo  pluricontinental, é um dos compromissos da Junta de Salvação Nacional perante o país segundo a proclamação que o General António de Spínola leu à Nação.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

POSTAIS SEM SELO


Um rasgão no tempo.

Miguel Real, citado por Maria do Rosário Pedreira

O MEU AVÔ E O HOMEM DA BANDEIRA


O meu avô paterno foi uma das referências da minha vida de criança e adolescente.
Sempre que necessário, apresentava-se assim:
«Mário Santos, republicano histórico, benfiquista e anticlerical.»
Todos os anos, pelo 5 de Outubro, subia ao Cemitério do Alto São João, depois à Praça António José de Almeida para uns «Viva a República!».
Morreu em 1968, com 93 anos.
Foi um dos muitos que morreu sem saber qual a cor da liberdade.
Estava na Praça António José de Almeida, quando, no 5 de Outubro de 1958, a PIDE prendeu o General Humberto Delgado.
O meu pai dizia-lhe que ele devia deixar-se dessas romagens que não conduziam a nada.
«Dizes tu! Eu e o homem da bandeira nunca falhamos!»
Referia-se a um republicano que, no 5 de Outubro, aparecia com uma grande bandeira portuguesa. Esse chegou a ver a cor da liberdade e, depois de Abril, foi militante do Partido Socialista.
O meu pai morreu em Junho de 1990.
Num 25 de Abril, 1988 (?), o meu pai whiscava, eu gintonicava, Cecília Bartoli, em fundo, cantando Vivaldi, discorríamos sobre os tempos idos, dos que estavam para chegar e ele batia na tecla de que o 25 de Abril acabaria nas mesmas evocações-quase-solitárias do meu avô e dos companheiros republicanos históricos.
Sucedeu nascer um desesperante silêncio, agitei o gelo no copo, olhei a rodela de limão, murmurei para dentro de mim que o meu pai era capaz de ter razão, mas deixei o silêncio escorrer…
Que nada perturbe esse silêncio… ainda estou a ouvi-lo… e numa, difusa, vagamente avermelhada, imagem ,admito ver o meu avô e o homem da bandeira…

Legenda: imagens da prisão de Humberto Delgado no 5 de Outubro de 1958

DE OUTROS REZA A HISTÓRIA


De outros reza a história.
Dos que não se adaptaram.
Dos que lutaram.
Dos que sacrificaram tudo.
Dos que morreram e foram mutilados no combate.
Pela liberdade contra o fascismo.
Eles que não foram a maioria dos portugueses.

Eles não foram a maioria dos portugueses.
Fascistas fomos quase todos.
Ou ainda menos.
Como os alemães durante Hitler.
Como os italianos durante Mussolini.
Fascistas fomos quase todos.
Ou ainda menos.

António Rego Chaves

EI-LA A CIDADE...


Quarenta e cinco anos.

Tão bem que ele sabe onde estava naquele 25 de Abril.

E como se lembra de como eram os dias e as noites antes dessa madrugada.

Vale a pena lembrar esse dia quando nos esquecemos de ensinar - ou não soubemos realizar a ensinança? – as gerações mais novas?

Em 1985, José Saramago perguntava-se:

«Escrever sobre o 25 de Abril, onze anos depois? Para quê? Assinalar a efeméride, cumprir o calendário, desfilar em manifestação, gritar a palavra de ordem? E que mãos? Repetir o discurso do ano passado, e do outro, e do outro, como se repetem os gestos, sem pensar neles? Lembrar, suspirando em comum, as esperanças que demos e as promessas que recebemos? Chorar sobre as torpezas e as traições?»

Em Abril de 1993, Carmélia Âmbar telefonou-lhe para dizer: «25 de Abril, sempre!» e acabou por deixar comentário nos Cadernos de Lanzarote:

«O entusiasmo de Carmélia, um entusiasmo de sobrevivente, deixou-me lamentavelmente frio.»

Mais tarde, na conversa que manteve com João Céu e Silva:

«…. eu já não comemoro o 25 de Abril. Sentir-me-ia um irresponsável celebrando qualquer coisa de que eu não posso ver nenhum sinal, porque tudo o que o 25 de Abril me trouxe desapareceu e não me digam que é porque temos a democracia.»

Lembra, agora, o primeiro poema que lhe saltou quando foi tomando conhecimento do que ia acontecendo, estava o tempo tão cinzento como o que vai fazendo, agora, por Lisboa:

Daniel Filipe em A Invenção do Amore e Outros Poemas

 Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma

em praças ruas becos boîtes e monumentos

Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote

Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria

e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone

Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida

esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor
   
E do segundo.

José Saramago em Os Poemas Possíveis

Venham leis e homens de balanças,
Mandamentos daquém e dalém mundo,
Venham ordens, decretos e vinganças,
Desça o juiz em nós até ao fundo.
Nos cruzamentos todos da cidade,
Brilhe, vermelha, a luz inquisidora,
Risquem no chão os dentes da vaidade
E mandem que os lavemos a vassoura.
A quantas mãos existam, peçam dedos,
Para sujar nas fichas dos arquivos,
Não respeitem mistérios nem segredos,
Que é natural nos homens serem esquivos.
Ponham livros de ponto em toda a parte,
Relógios a marcar a hora exacta,
Não aceitem nem votem noutra arte
Que a prosa de registo, o verso data.
Mas quando nos julgarem bem seguros,
Cercados de bastões e fortalezas,
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.

José Saramago em Os Poemas Possíveis

O apagamento da memória?

Ir ao cemitério uma vez por ano pôr as flores onde entendermos que são justas?

Não, enquanto sentir o estrondo dos altos muros no tempo em que chegou o dia das surpresas, mesmo que adormecidos possam estar os amanhãs longe demais, como diria o outro!

Legenda:  pintura de Vieira da Silva