O meu pai dizia
que devemos ler alguns maus livros.
João Bénard da
Costa era de opinião que devemos ver maus filmes porque podem ter por lá
perdido algo que valha a pena ver.
Franz Kafka
citado um destes dias pelo Manuel S. Fonseca na sua blogueira Página Negra: «Acho
que devemos ler o tipo de livros que nos abram feridas, que nos esfaqueiem».
Quando soube da
publicação deste livro de Joaquim Vieira, sabendo de experiências anteriores
como as que fez com Francisco Pinto Balsemão e Mário Soares, questionei-me se o
iria ler.
Estava nesse mar
de dúvidas, quando o meu filho Mário pediu um livro para me colocar no saco do
Pai Natal e chutei o do Joaquim Vieira.
Corria ainda
Dezembro, uma semana para ler as suas 751 páginas.
Repetir a
leitura de algumas páginas pelos dias que se foram seguindo.
Com a chegada da
Primavera, o escrever, finalmente!, algumas palavras sobre as diversas
leituras.
Começo por
sentir excessivas as largas páginas que, ao longo do livro são dedicadas ao
facto de José Saramago gostar de mulheres. Há mesmo um capítulo, o 6º, com as
suas 30 páginas, que Vieira não resistiu à tentação de titular: «O Pinga-Amor».
Em 1977,
François Truffaut realizou L'Homme qui aimait les femmes.
É do filme que
me lembro quando leio o rol de mulheres que andaram com, por, Saramago,
mulheres por quem mostrou amor, simpatia ou quaisquer rituais de sedução.
Só ele saberia
dizer o porquê, se a tanto achasse útil ou necessário.
Largamente
referido é o relacionamento que Saramago manteve com a escritora Isabel da
Nóbrega.
Corria o ano de
1954, Isabel da Nóbrega, com 31 anos, abandona o marido e os seus três filhos
para ir viver com João Gaspar Simões, ao tempo um escândalo.
Pelo ano de 1966
acontece o grande romance entre José Saramago e Isabel da Nóbrega, «o amor
da vida dela», no dizer de Maria Velho da Costa.
Em 1977 Saramago
conhece Pilar mas a relação com Isabel da Nóbrega já, há algum tempo, esfriara.
Deixo apenas um
pormenor curioso: Isabel da Nóbrega sempre acreditou que um dia, José Saramago
ganharia o Prémio Nobel.
Numa entrevista
à Visão, Joaquim Vieira conta a seguinte história:
«Quando o pai de Isabel da Nóbrega morreu, em
1985, os irmãos fizeram as partilhas. Na casa, todos estavam à volta das pratas
na sala, mas ela só estava preocupada com a roupa no quarto, queria a casaca do
pai. A filha perguntou-lhe porquê. Ela respondeu: ‘Porque o José, qualquer dia,
vai ser Nobel e eu tenho que levar a casaca para ele receber o prémio.»
Diversos são os
depoimentos em que se procura transmitir que Isabel da Nóbrega escrevia, ou
largamente emendava, as crónicas que Saramago publicava nos jornais.
De um depoimento
de Ana Isabel, filha da escritora:
«A minha mãe escrevia em cima de uma tábua no sofá e
ele na mesa de trabalho da minha mãe. Quando ele acabava de escrever as
crónicas, levava-as à mãe e ela lia e dizia-lhe: “José, e se experimentasses
pôr assim?” E ele sentava-se e tornava a escrever.»
Carlos Leça da
Veiga:
«Ela fez dele, que era um labrego, um senhor. Se não fosse a Isabel, quem seria o Saramago, que nem sabia comer à mesa?
«Ela fez dele, que era um labrego, um senhor. Se não fosse a Isabel, quem seria o Saramago, que nem sabia comer à mesa?
Maria Velho da
Costa:
«Uma mulher que fez tudo por ele, ensinou-o a comer e beber.»
«Uma mulher que fez tudo por ele, ensinou-o a comer e beber.»
Passo ao lado
dos muitos depoimentos de gente que entendeu não dar a cara porque foram amigos
de Isabel da Nóbrega e Saramago, amigos ficaram quando Saramago se relacionou
com Pilar.
Há depoimentos
estranhos, como os de Mário Ventura Henriques, inúteis como os do Sr. Fernando
Canhão, filho de um dos patrões da Estúdios Cor onde Saramago trabalhou como
encarregado da produção literária, depoimentos de muita gente que desconheço e
que outro propósito não têm senão o dum botabaixismo que apenas visa
desacreditar a pessoa e o escritor José Saramago.
A dois
depoimentos devidamente identificados, terei que dizer que estão no livro por
pura inveja, despeito ou algo difícil de catalogar: os de Maria Teresa Horta e
o de José Jorge Letria.
Maria Teresa Horta,
algo que terá a ver com o relacionamento editorial de Luís de Barros, seu
marido, com José Saramago, enquanto ambos estiveram na direcção do Diário de
Notícias.
Mas ainda em
vida, José Saramago referiu Maria Teresa Horta.
Faz parte da
entrevista que Joaquim Vicente teve com José Manuel dos Santos que foi assessor
de Mário Soares:
«Fui almoçar com ele ao Farta Brutos, até para
combinar várias coisas, nomeadamente a condecoração. E no meio da glória
nacional, ele diz-me assim:
«A Maria Teresa Horta disse que, lendo os meus livros,
se percebia logo que eu nunca iria ser um grande escritor. Está-se a ver
agora.» O que eu achei mais extraordinário foi esta conversa, dois ou três dias
depois de o Saramago estar cá. No meio daquele coro de louvores. Fiquei muito impressionado,
porque a grande coisa de que ele se lembrava era disso, A Maria Teresa Horta
era uma pessoa que o estava a marcar profundamente, e ainda por cima tinha
afinidades políticas com ela. Ela, aliás, saltou logo no dia do Prémio, dizendo
que o Nobel não devia ter sido dado ao Saramago, devia ter ido para a Agustina
ou para Sophia».
Quanto ao que
José Jorge Letria diz ao longo do livro, remeto para a mente doentia que o tem
acompanhado toda a vida. Um ódio que, certamente, por falta de coragem nunca o
diria na cara de Saramago. Seria, simplesmente arrasado. Em 1978 pediu a José
Saramago que lhe escrevesse um prefácio para o seu livro Os Dias Contados.
Saramago sabendo das não qualidades literárias e intelectuais de Letria
disse-lhe que não. Letria não lhe perdoou e Joaquim Vieira escreve que José
Jorge Letria não o revelara antes, mas agora disse:
«Ele nunca foi para mim um escritor referencial. Eu
teria visto também com satisfação o Nobel ser dado a Agustina Bessa-Luís, por
exemplo. Não é por receber o Nobel que ele se transforma numa estátua.»
O que ressalta
em muitos dos depoimentos recolhidos por Joaquim Vieira para o livro, é que a atribuição do Prémio Nobel da
Literatura não agradou aos companheiros de escrita de Saramago. Para muitos – e
não são assim tão poucos! - custa a engolir que um pé descalço nascido na
pobreza angustiante de uma aldeia ribatejana, um aprendiz de serralheiro, um autodidacta que, em jovem,
não tinha um único livro em casa, que
passava noites nas mais diversas leituras na Biblioteca de Galveias, um
comunista confesso, sem vontade alguma de o deixar de ser, apesar de tanto
coisa que o poderia ter levado a sair do Partido, tenha conseguido subir a
pulso e construir a obra que lhe permitiu
um dia chegar aonde chegou.
Não é difícil
perceber que na intelectualidade portuguesa, seja qual for a época, campeia o
ciúme e a inveja.
Como observou
Luiz Pacheco:
«Aí a raiva de muita gente não foi contra o escritor –
que não lêem – nem foi contra o próprio Saramago - que não conhecem de parte
nenhuma -, foi contra o comunista que ganhou o Nobel. E também contra o gajo
que ganhou cento e tal mil contos! Inveja em estado puro.»
Dando-lhe os
devidos descontos, por exemplo, entradas em domínio da vida privada algo
desnecessárias, esta Rota de Vida ajudará muitos leitores a perceber o
percurso de uma das personagens, doa a quem doer, mais importantes da nossa
história recente.
José Saramago: a
persistente ideia de morrer idêntico ao que sempre foi.
Durante alguns
dias, irei Saramaguear por aqui, transcrevendo algumas passagens do livro de Joaquim Vieira que, por isto ou por aquilo, entendo terem algum interesse.
3 comentários:
É muita dor daquilo, Sammy. :)
Tanta gente no mundo das artes e letras que passa o tempo a olhar para o espelho e para o umbigo...
E não é coisa muito bonita de ver!...
Tal como diria Unamuno: há gente anã que anda sempre nas pontas dos pés, a gritar que são muito altos. É a tal inveja - muito portuguesa-.
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