segunda-feira, 22 de abril de 2019

SARAMAGUEANDO


Inevitavelmente, em Rota de Vida teria de ser abordado o facto de José Saramago, enquanto crítico da Seara Nova, ter escrito da sua admiração pela prosa de Agustina Bessa-Luís.

Aqui no Cais, sobre este assunto, podem ver a etiqueta José Saramago Crítico na Seara Nova.

Mas peguemos, a págs, 140, no que Joaquim Vieira escreve:

«Saramago ousou enaltecer a escritora na crítica que produziu ao livro, escrevendo:

«Algumas das ideias de Agustina Bessa Luís não se limitam a ser conservadoras: são retrógradas. Repugnam a um nosso deliberado amor de claridade, de abertura para o inteligível, de definição e construção de um sistema de relações em que a magia não seja utilizada como meio (entre tantos) de dominação de classe. Mas… como é possível, resistindo e opondo-nos embora no plano das ideias e da sua prática, não ser submergido pela beleza torrencial desta escrita, que não tem igual na literatura portuguesa deste tempo? Como é possível ficar indiferente a certas bruscas iluminações que vão mais longe e mais fundo, no sentido do conhecimento de si e do outro, que todo o material de análise que comumente manuseamos? Como é possível não reconhecer e declarar que se há em Portugal um escritor onde habite o génio (vá esta palavra, ainda que perigosa e equívoca) esse escritor é Agustina Bessa Luís» 

A reacção veio pela pena de José Gomes Ferreira, que, no registo diarístico Dias Comuns, escreveu indisposto, na entrada de 22 de Janeiro de 1968: «Quase todos os críticos têm chamado génio a Agustina Bessa-Luís (verdade seja que alguns depois se arrependem; Gaspar Simões, Óscar Lopes, José Régio, sei lá quantos).
Agora, chegou a vez ao Saramago.» Estava registado o aviso para a hipótese de uma precipitação, e embora os diários de Gomes Ferreira só viessem a ser publicados muito mais tarde, o recado pode ter circulado nas tertúlias da baixa lisboeta, não sendo difícil ter chegado aos ouvidos do crítico. O facto é que, meio ano depois, Saramago seria bem mais comedido, e até distante (quiçá arrependido?), ao escrever sobre a última obra de Bessa-Luís:

«Homens e Mulheres seria um grande romance (digamo-lo assim para simplificar) se não fosse uma repetição, uma glosa de livros anteriores. Bessa-Luís tem no seu universo próprio. Dentro dele, move-se como rainha. Ou deusa, para os seus fanáticos. Sendo ou não sendo o maior escritor de hoje, é certamente o que melhor domina e molda o barro da língua, aquele em cujo estilo há mais profundas ressonâncias (…) Mas Bessa-Luís tem (a frase é velha, mas cabida) os defeitos das suas virtudes. Afoga-se e afoga-nos na sua exuberância, não escolhe, não elimina. Aceita tudo quanto vem, trigo nutriente ou palha miúda. Põe o seu nome no fim, é quanto lhe basta. Perigosa atitude. Porque Agustina Bessa Luís corre o risco muito sério de adormecer ao som da sua própria música.»

E depois haveria ainda a necessidade de conciliar e encaixar tudo isto com a assunção feita no escrito anterior:

«Lemos Agustina Bessa-Luís com prazer (fatigado, às vezes r proveito (malogrado, quando calha), e em paz com a nossa consciência repetimos que «se há em Portugal um escritor onde habite o génio, esse escritor é Agustina Bessa-Luís», mas acabaremos por achar mal aproveitada tanta beleza plástica, tanta profundidade, tão aguda frecha analítica – na dispersão confusa, quando não incoerente e desmanchada, das suas crónicas de família. (…) Agustina Bessa-Luís devia ser menos que os seus livros – ou eles mais do que ela. Não há outra maneira de sair da província. E o génio (se não é confiado dizê-lo), é um meio, não um fim.»

Joaquim Vieira regista que Saramago talvez se tenha arrependido do que, inicialmente, escrevera sobre Agustina.

Em Julho de 1994, José Saramago reconhece que, enquanto crítico na Seara Nova, não cometeu erros, nem injustiças, de grande tomo. A excepção é a crítica que fez a O Delfim de José Cardoso Pires: «onde teria eu a cabeça?»

«Agora eis-me perante os fantasmas de opiniões que expandi há quase trinta anos, algumas bastante ousadas para a época, como dizer que Agustina Bessa Luís “corre
o risco muito sério de adormecer ao som da sua própria música”. Apesar da minha inexperiência, e quanto sou capaz de recordar, creio não haver cometido grossos erros de apreciação nem injustiças de maior tomo. Salvo o que escrevi sobre “O Delfim” do José Cardoso Pires: muitas vezes me tenho perguntado onde teria eu nesse momento a cabeça, e não encontro resposta…»

Em Cadernos de Lanzarote, Volume II

Legenda: páginas 244 e 245 da Seara Nova nº  1473, Julho de 1968 onde consta a crítica de José Saramago a Homens e Mulheres de Agustina Bessa-Luís.

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