sexta-feira, 31 de março de 2017

OLHAR AS CAPAS


O Barbeiro Cego

John Dickson Carr
Tradução: Correia Ribeiro
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 67
Livros do Brasil, Lisboa, s/d

Quando o paquete «Queen Victoria» partiu de Nova Iorque, com destino a Southampton e Cherburgo dizia-se que estavam a bordo duas personalidades muito conhecidas e constava que uma terceira pessoa, altamente cotada, viajava no mesmo navio. Além destas, havia uma quarta personagem, aliás imperceptível, que irá ocupar papel bastante importante nesta turbulenta e complexa crónica.  Embora não o soubesse, este indivíduo tinha na sua bagagem algo de mais valiosos do que as marionetes de M. Fortinbras ou o elefante de esmeralda de Lord Sturton, o que explica parcialmente a razão por que havia no seráfico interior do «Queen Victoria» enigmas, distracções e negócios estranhos, totalmente em desacordo com o padrão habitual.
Não há na marinha mercante britânica navio que ostente maior dignidade do que o «Queen Victoria» a flâmula da sua companhia de navegação. É o que geralmente se chama um barco «familiar», o que quer dizer que não são permitidas manifestações de hilaridade nos seus salões, depois das onze horas da noite e todas as alterações de tempo motivadas pela travessia dos oceanos, são escrupolosamente observadas, de modo que o bar fecha sempre três quartos de hora antes dos nossos cálculos, o que normalmente nos obriga a praguejar. Passageiros melancólicos, sentados na sala de leitura, de luz semivelada, parecem redigir cartas para parentes já falecidos. No grande salão de ornamentação pesada, conversa-se em voz baixa a faz-se malha diante de luzes eléctricas arranjadas de modo a imitar uma lareira. Há certo arremedo de alegria quando uma orquestra, composta por músicos graves e taciturnos, toca na galeria da sala das refeições, à hora do almoço e do jantar.

NESSA NOITE, FUI DESPEDIDO


Naquele tempo, costumava levar gelo à Nina Simone. Era sempre simpática comigo. Tratava-me sempre por “Queriiido”. Levava-lhe uma bandeja cinzenta de plástico cheia de gelo, para ela pôr no “Whisky”.
Ela descascava a cabeleira loura e atirava-a para o chão. Por debaixo da cabeleira, o seu cabelo verdadeiro era miudinho, como o pelo de um cordeiro negro tosquiado. Descascava as pestanas postiças e colocava-as ao espelho. As pálpebras eram salientes. Pintava-as de azul. Faziam-me sempre pensar numa dessas rainhas egípcias como as que eu tinha visto no “National Geographic.
A sua pele brilhava de molhada. Enrolava uma toalha azul à volta do pescoço e depois inclinava-se para a frente, descansando os cotovelos sobre os joelhos. O suor rolava-lhe pela cara abaixo, salpicando o chão vermelho de cimento entre os seus pés. Habitualmente acabava o espectáculo com a canção “Jenny The Pirate” de Bertold Brecht.
Cantava sempre esta canção como se se tratasse de uma vingança sua, muito profunda, como se tivesse sido ela própria a autora do poema. A sua actuação era como um tiro, que alvejava, primeiro, a garganta de uma audiência branca. Depois o coração. Finalmente a cabeça.
Nesses tempos, ela disparava a matar. A canção do seu espectáculo que realmente me punha fora de mim era “Que bom era ter-te à minha espera.” Sempre que a cantava, eu ficava assombrado, hipnotizado. Andava a recolher copos de Whiskey Sour quando ela atacava aquele piano, que desabava sobre nós, retumbante, com a sua voz fantasmagórica, serpenteando através do amontoado das cordas.
Os meus olhos subiam para o palco e por lá ficavam, enquanto as minhas mãos continuavam a trabalhar. Uma vez, estava ela a cantar essa canção, derrubei uma vela. A cera quente espirrou para cima do fato de um homem de negócios, sujando-o todo.
Fui chamado ao escritório do gerente. O homem já lá estava, com os salpicos de cera quente espalhados pelas calças abaixo. Parecia que se tinha vindo para cima do fato. Nessa noite, fui despedido. Lá fora, na rua, ainda podia ouvir a sua voz atravessando as paredes: “Seria o paraíso ter-te à minha espera”.


Sam Shepard, em Crónicas Americanas

O QUE UM HOMEM LEVA DESTA VIDA!


Quarto, e último, passo de uma das andanças de António Gedeão, com a sua filha Cristina Carvalho, para as Termas da Curia e em que são referidas algumas das suas preferências, verdadeiramente de bom gosto, gastronómicas:

Mas o que eu queria referir, neste momento, é o quanto aprecio o Bacalhau à margarida da Praça, ou um tenro bife com batatas fritas, uma travessa bem organizada apesar da perna de cabrito e das suas batatatinhas coradas me fazerem lembrar que sou um pobre omnívoro. Um consciente e atávico omnívoro. Um condenado! Quero lá saber das Quaresmas e suas restrições gastronómicas! Prefiro, a bem dizer e sem ligar quase nada, mesmo quase nada as Páscoas e os Natais e todos os desvarios doces e salgados que um homem leva desta vida. E na Pensão Lourenço, como já disse, há leitão da Bairrada aos domingos e um espumante Rosé que não é nada mau, mas ainda a terminar aquele, o verdadeiro pudim flan. Gosto muito! Isto para não falar de uma ampla fatia de melão.


Legenda: a imagem do Bacalhau à Margarida da Praça foi tirada de Cozinha Tradicional.

quinta-feira, 30 de março de 2017

POSTAIS SEM SELO


Às vezes é preciso um bocado de inteligência para parecer estúpido.

Alexandre Pinheiro Torres em Vai Alta a Noite

A MINHA NORMA


Pela minha parte, escolhi proteger-me o mais possível. Nem tenho de me forçar a isso, detesto tudo o que abole a fronteira entre o público e o privado. É assim mesmo, está na minha natureza, direi mesmo: é a minha norma. Sinto-me aterrorizada pelas redes sociais e os rumores que propagam. Detesto a exposição íntima. Nunca abri a minha porta, para uma reportagem, às câmaras de televisão. Não faço tweets, mostro tanto menos as minhas fotografias de família ou de férias no Facebook quanto não tenho conta no Facebook, e limito ao estrito mínimo as minhas trocas informáticas. O que há de odioso no mail, é que é intrusivo e exige uma resposta imediata. Como se eu passasse os meus dias em frente de um ecrã! O meu trabalho consiste em estar num ecrã, não em frente.

Carherine Deneuve, citada por João Lopes em Sound+Vision

QUASE NINGUÉM ME ESCREVE



As amarguras do exilado José Rodrigues Miguéis, percorrem as diversas cartas que escreveu a José Saramago, enquanto editor da Estúdios Cor.

Findar de carta datada de 26 de Abril de 1961:

Só me arrelia saber que vou esperar agora mais UM MÊS pela sua próxima carta! É que quase ninguém me escreve: sinal dos tempos ou temporais.

Esperou mais de um mês.

Saramago escreve-lhe no dia 12 de Maio, outra carta a 26 do mesmo mês, mais uma a 30 de Junho. Miguéis responde a 3 de Julho, curta carta de Saramago a 31 de Julho, dando conta da venda dos livros de Miguéis e o envio de um cheque de 4 contos referente a direitos.

A 15 de Agosto escreve Miguéis:

Enquanto o avião vai e vem, folga o ocioso (EU) – Não lhe escrevo (raio de penas!!) para lhe forçar a mão a escrever-me pois bem imagino o que é a sua vida de trabalho. No entanto, neste violentamento cada vez maior e (pior), e no desgosto dos acontecimentos que me fazem sentir tão profundamente inútil como escritor – quanto como (ex-) homem de acção – sempre que me ocorrem ideias gosto de as lançar ao papel, amigo passivo e silencioso.

Mais um desabafo, no findar da carta:

Ainda haverá esperança para este desgraçado país? Quantos cadáveres passando por vivos! Espectros – nem sequer ibsenianos! – Quase ninguém me escreve, nem eu escrevo: isolado no corpo e no espírito. Mas inda resta em mim um pouco da vocação de Mártir…

Um mês depois desta carta, Miguéis entra sem paninhos quentes:

Como imagino de longe a COR muito corada de vergonha pelo abandono a que me tem votado, resolvi interromper o meu silêncio para os tirar do embaraço! Que se passa? Continuam a reorganizar o escritório? Viajam? Gozam férias? Arrepelam-se de crise? O calor dissolveu-os? – Os últimos cheques, com carta chegaram a 4 de Agosto. Todos os dias abro a caixa do Correio na esperança de notícias, uma palavra animadora, talvez um cheque – embora este último me chegue a parecer menos importante, apesar da situação em que vivo. (Tive de aceitar um trabalho técnico para obviar as despesas correntes, e cobrir o prejuízo do roubo de que fomos vítimas no domingo 30 de Julho: assaltaram a na/ casa, durante a n/ ausência, e roubaram-nos roupas (4 fatos meus), relógios, rádios, as poucas joias de minha mulher, etc. – ao todo algumas centenas de dólares; além dos estragos e despesas que fizemos a pôr fechaduras e trancas – depois da casa roubada…)

A 22 de Setembro, Saramago dá notícias, sinceras:

Oh, quão corado estou, realmente! De todo este mau proceder, bem me parece que sou eu o maior responsável. Da falta do envio das «massas» e do resto. Das «massas» porque tendo o Canhão e o Correia ido para férias, eu não tomei as devidas providências necessárias para que a conseguida regularidade de pagamentos não sofresse interrupção. Do resto, da falta de notícias tout court, devidas por todas as razões, que mais não fosse para o acompanhar nesse tremendo aborrecimento do roubo, ainda mais responsável sou. Mas caí naquela atitude cobarde de quem para não ter que dar uma explicação (aliás inevitável) acaba por agravar a situação. De tudo peço que me desculpe, ainda que reconheça que tem boas razões para estar magoado comigo.


Legenda: José Rodrigues Miguéis, desenho de André Carrilho

quarta-feira, 29 de março de 2017

NOTÍCIAS DO CIRCO


Podemos não concordar com o que pensa José Pacheco Pereira, mas uma coisa não podemos escamotear: a sua frontalidade

Referente a José Sócrates já escreveu:

 De há muito me apercebi que havia algo de muito errado na sua actuação pública, mesmo naquela que não era susceptível de constituir crime. Desde a história das marquises, passando pelas histórias das ETAR, do Freeport, do currículo académico, das rasuras na ficha biográfica de deputado, do contrato com Figo e muito mais, era-me factualmente evidente que este homem era capaz de tudo, embora eu não soubesse da dimensão do tudo. Como já referi, a ficha biográfica de deputado rasurada em fotocópia foi para mim a epifania, porque eu sabia bem como as coisas funcionavam na Assembleia e tudo aquilo era tão completamente implausível que tinha de haver, numa expressão plebeia, marosca.

Hoje, soube-se pelo Diário de Notícias que o processo da «Operação Marquês» vai ter mais «pessoas distintas»:

É a primeira certidão extraída do processo Operação Marquês: os últimos dados bancários enviados pela Suíça para o Ministério Público revelaram novas suspeitas sobre banqueiros e recebimentos de comissões ilegais. No despacho que ordenou a retirada dos elementos do processo para uma investigação autónoma, o procurador Rosário Teixeira não identifica os suspeitos, dizendo apenas serem "pessoas distintas" das já constituídas arguidas no processo e tratar-se de "cidadãos portugueses" que "tinham responsabilidades em instituições financeiras e na concessão de crédito".

Durante anos e anos a fio fomos metralhados pelo brilhantismo dos nossos empresários e banqueiros,  o dizer que o sucesso das empresas e bancos onde actuavam se devia às suas estrelares qualidades de gestores.

Apenas eles.

Vamos agora sabendo que, a maior parte, não passava de um gang de trapaceiros e corruptos.

Com o chegar de mais gentalha, vai tomando vulto o mega processo «Operação Marquês».

Para além do imenso peixe miúdo que por lá se passeia, já lá estão Ricardo Salgado, José Sócrates, o Zava, o Granadeiro, o Vara.

Continuarão os sucessivos adiamentos dos prazos que têm vindo a ser concedidos, até tudo acabar na maior das impunidades.

MARCHAS, DANÇAS E CANÇÕES


Em Setembro de 1945, a casa de João José Cochofel no Senhor da Serra, em Semide, juntou Fernando Lopes-Graça, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira e João José Cochofel.

Na Sala Ping-Pong, nasceu o projecto musical Marchas, Danças e Canções.

O Acordai nasceu durante o reino do medo, quando os frutos amargavam e o luar sabia a azedo e é uma das muitas canções a que alguns dos nossos melhores poetas emprestaram palavras e que foram musicadas por Fernando Lopes Graça.

Na contra capa do disco, explica ao que vinham essas canções:

O que são as “Canções Heróicas” que, pela primeira vez, se oferecem ao público editadas em disco? Resumidamente, podemos dizer que são obrinhas de circunstância ou, se quisermos ser mais explícitos e sem temer o uso rigoroso das palavras, defini-las-emos como canções politicamente empenhadas. Politicamente empenhadas no sentido, ou na medida, em que pretenderam contribuir – e cremos que de facto contribuíram – para a luta do povo português, a que primordialmente foram destinadas, contra o regime despótico, anti-democrático e violentador de corpos e almas que durante cerca de cinquenta anos lhe foi imposto.

Um ministro de Salazar disse:

É mais perigoso um mi bemol de Lopes Graça do que mil panfletos subversivos.

Por sua vez, José Gomes Ferreira, em A Memória das Palavras ou o Gosto de Falar de Mim, conta como, naquele ano de 1945, tudo começou:

Nesse Verão, como lhe contasse que eu ainda não tinha encontrado poiso no campo para convalescer, Fernando Lopes Graça, propôs-me:

-Venha comigo para o Senhor da Serra, perto de Semide…

- Há por lá alguma pensão?

- Pensão propriamente dita não há. Mas a srª Rosinha costuma receber hóspedes num quartito muito limpo e com uma vista extraordinária para o Vale da Lousã… E fica a dois passos da casa do João José Cochofel, onde vou instalar-me.

Na casa de João José Cochofel juntaram-se, então, Fernando Lopes Graça, José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira.

Novamente José Gomes Ferreira:

Por esses dias, com tantos poetas às ordens, ensejou-se a Fernando Lopes Graça realizar um velho sonho que expôs em meia dúzia de frases sóbrias aos circunstantes. Queria letras para canções. Marchas, danças, rondas infantis, hinos… O que nos apetecesse. Contanto que não nos demorássemos muito, pois a inspiração já ardia.

Esgotada a inspiração dos poetas circundantes, Fernando Lopes Graça implorou o auxílio a Coimbra (Joaquim Namorado, Arquimedes, Ferreira Monte) e a Lisboa, donde acudiram ao chamamento Mário Dionísio, Armindo Rodrigues e Edmundo Bettencourt.

SIM, É VERDADE, NÃO TENHO MOTIVO


Sim, é verdade, não tenho motivo
para esta tristeza, o desalento
que logo de manhã em mim acorda
com o abrir da janela e a certeza

de que outro dia igual em vão começa.
O sol, a chuva, a névoa, sempre o tédio
dos passos repetidos tudo aplaina.
O trabalho repugna, a arte enjoa

mastigada sem fome. Que fastio
por tudo! Mas não sei porquê, se o amor,
a esperança, resistiram ao pó do tempo,

secretos e intactos ao desgaste.
Que anemia soluça no meu sangue?
Dou-lhe o nome de exílio. Há quantos anos!...

João José Cochofel em 46º Aniversário

Legenda: José Gomes Ferreira e João José Cochofel no Senhor da Serra

O MEU MAIOR SONHO DE ROCK AND ROLL


 As coisas começavam a aquecer. Enviaram um vídeo para todas as delegações da Columbia Records nas cidades principais, no qual o Clive Davis lia a solo as letras de «Blinded by the Light» como se fosse Shakespeare. Contudo, venderam-se a penas cerca de 23 mil cópias do Greetings; para os padrões da editora, foi um fracasso, mas um êxito para os meus. Quem eram todos aqueles desconhecidos que compravam a minha música?
Estava eu parado numa esquina antes de um espectáculo numa escola em Connecticut quando um carro parou nos semáforos e ouvi a «Spirit in the Night a tocar no rádio: o meu maior sonho de rock’n’roll tornado realidade! A primeira vez que se ouve uma canção nossa na rádio é inesquecível. De súbito, eu fazia parte da misteriosa procissão da música popular que me enfeitiçara desde que, de olhos sonolentos, fora embalado ao «som fumarento dos botões» do autorádio do meu avô. A rádio mantivera-me vivo durante a adolescência. Para a minha geração a música soava melhor saída de um minúsculo altifalante de rádio. Mais tarde, ao gravarmos música, pousávamos um desses altifalantes em cima da consola do estúdio e não aprovávamos uma mistura até a música parecer sair do mesmo num som vibrante. A música na rádio é um sonho partilhado, uma alucinação coletiva, um segredo entre milhões e um sussurro ao ouvido de todo o país. Quando a música é boa, tem lugar uma subversão natural da mensagem controlada e diariamente emitida pelos poderosos, as agências de publicidade, os blocos de comunicação generalizada, as organizações noticiosas e os guardiões do status quo entorpecedores da mente, inibidores da alma e negadores da vida.

Bruce Springsteen em Born To Run

terça-feira, 28 de março de 2017

POSTAIS SEM SELO


É em Português que eu me entendo enquanto for vivo.

Fernando Assis Pacheco em Cinco Minutos para Contar uma História.

Legenda: imagem Vimeo

NEM DAMOS POR ISSO!



Pedro Tadeu no Diário de Notícias

TRUMPALHADAS


A América culta ficou em choque quando Donald Trump propôs, recentemente, acabar com as agências de apoio às Artes e Humanidades e não as contemplar, pura e simplesmente, no orçamento. É o primeiro presidente a fazê-lo desde que estes apoios foram legislados por Lyndon Johnson, em 1965, que declarou que qualquer civilização desenvolvida deveria valorizar as artes e a cultura em geral. Era com uma «pequena» fatia (300 milhões de dólares) do orçamento que, há décadas, os museus compravam obras de arte e muitas instituições concediam bolsas a músicos, escritores, pintores e estudiosos. Mas, embora o Congresso tenha ainda uma palavra a dizer e nada esteja decidido, há gente boquiaberta em todos os quadrantes, até porque a filha de Trump é mecenas de artistas há muito tempo e a mulher do vice-presidente uma pintora. Os grupos que serão lesados fazem agora lobby junto dos Republicanos para que estes não votem na supressão destes agentes culturais; além do mais, alguns alegam que está em causa a preservação da própria história americana (há muitos museus que precisam de verbas para digitalizar cartas, fotografar uniformes, registar textos escritos relativos às guerras, etc.). Enfim, só o PEN Club já conseguiu 200 000 assinaturas numa petição para a conservação das agências, com a assinatura de muitos escritores de todo o mundo. Mas será que vai ajudar?

Maria do Rosário Pedreira no blogue Horas Extraordinárias

DEGENERESCÊNCIAS


13-10-63
Digno de anotação como índice da degenerescência da «razão» a que chegou o «salazarismo»: o papel higiénico distribuído às forças armadas portuguesas e às forças de segurança interna tem a marca Nehru! e o seguinte slogan: «O melhor para limpar o c…»!

José Luandino Vieira em Os Papéis da Prisão.

OLHAR AS CAPAS


Tenho Cinco Minutos para Contar uma História

Fernando Assis Pacheco
Prefácio: João Pacheco
Capa: V. Tavares
Tinta-da-China, Lisboa, Janeiro de 2017

Nem sempre calha eu ler estas crónicas como deve ser: com voz pousada, os fonemas bem soletrados. Sou um trapalhão. Mas não é da língua, é de mim, que chego ao microfone estafado da vida que levo.
O Português parece-me muito belo. Estarei a exagerar? Porque a verdade é que me ponho a reler Camões e fico deslumbrado. Releio um poeta vivo como Eugénio de Andrade e apercebo-me de que a língua que mamei possui virtualidades invulgares, voltas que são de uma viola sábia. Ou então os versos de Herberto Helder – a maravilha esplêndida, penso às vezes, o Português do dia a dia transfigurado. Quero lá saber dos franceses e dos ingleses e dos italianos e dos espanhóis castelhanos e dos alemães e dos russos e dos persas – bolas, a minha língua não tem parecença com outra nenhuma!
É em Português que eu me entendo enquanto for vivo. Tristes dos emigrantes forçados a usar a alheia linguagem! Deve subir-lhe à boca um travo bem amargo, bem azedo. Não é pelo pastel de bacalhau que eles regressam todos os anos, como as andorinhas. Não é pela bôla de carne. É por saudades do Português. Estou a dizer uma verdade maior do que um punho.
Já vivi longe de casa e doía-me. O meu interlocutor na cidade universitária de Heidelberg ninguém acredita mas era um surdo-mudo, o Heinz. Eu morava em casa da mãe dele, a Frau Schwarzbeck, numa rua esconsa chamada Vangerowstrasse. Chegou-se quase ao natal e o Heinz, por gestos, quis saber coisas de mim. Fui-lhe explicando o que me vinha à cabeça.
Os surdos-mudos são insaciáveis quando o parceiro mostra simpatia. Às tantas já discutíamos futebol, ele muito orgulhoso do FC Koln, eu muito ancho do Benfica, que por acaso nesse ano foi campeão europeu.
Entenda-se: falávamos por gestos, gestos alemães.
Se há um Prémio Nobel do Companheirismo acho que o mereci no Inverno de 1960.
O Heinz lá ficou em Heidelberg, pelas minhas contas deve ser agora um senhor surdo-mudo de quase 60 anos. A mãe, a Frau Schwarzbeck, morreu entretanto. Vivíamos perfeitamente «entrosados», conforme de diz no futebol. Ao almoço eu comia no restaurante universitário, ao jantar abancávamos os três diante da televisão. Despesas a meias, os Schwarzbeck e o Herr Pacheco de Portugal. Certo dia a minha mãe mandou um cachecol pelo correio para o Heinz. Havia de ver-se a extenuante alegria do surdo-mudo! Tive de ir passear com ele, que não me largava enquanto o não exibisse na Hauptstrasse de lã ao pescoço.
Uma noite agarrei nuns brasileiros e prantei-os em casa dos Schwarzbeck. Um paulista tocava sambas em caixas de fósforos, o de Gôânia assobiava. Eu limitava-me a bater com o pé, e já era forte invenção do coimbrinha. Tanto bastou para a mãe alemã e o filho surdo-mudo alemão se renderem aos nossos talentos. Mas como diabo o Heinz tereia gostado? Se calhar gostou pela cena: a casa invadida, os copos sujos, a deambulação eléctrica dos meus amigos brasileiros da copa para a cozinha, da cozinha para a marquise, da marquise para a casa de banho e vice-versa. Garanto que o Heinz estava atordoado – e feliz. Disse-mo depois, por gestos.
Mas é pensando nesta gente toda, uma destas manhãs em que o bico do poema começa a morder, eu sozinho diante da folha branca, imagem clássica da criação literária, que escrevo umas linhas em louvor da língua portuguesa.
Não maço o ouvinte com mais nada. Aceite-me como sou:

A língua que mamei
é esta doce portuguesa
que me dizem fechada na boca mastigada
pela cárie dos pobres
e vai-se a ver cantante no meu beiço
como flauta de cana

vós chamareis-me o bronco da Europa
porém o jeito leve
na garganta o trilo modulado
quem há por essas raias eu pergunto
que melhor o conheça?

eu sou nesta canção igual que um pássaro
nem a crítica aceito
do latim vulgar estropeado
por um fundo ibérico malsão

cá vou dizendo tudo sobretudo
a alegria estes espantos

com o que tenho à mão, o coração  

segunda-feira, 27 de março de 2017

ELVIS & FRIENDS


Realizou-se, ontem, o habitual almoço «Elvis & Friends» e, como, habitualmente foi um sucesso.
O repasto foi no Restaurante «Os Severianos» em Torres Vedras.

Pena não ter havido tempo nem espaço para um passinho de rock.

MIKE SEEGER, ARES DE DUQUE E DE CAVALEIRO ERRANTE


Alain Olmax, no sótão da sua casa na 3rd Street, costumava fazer festas duas vezes por mês e convidava cantores folk para tocar. Bob Dylan foi a uma dessas festas, uma ou duas vezes, e foi aí que viu o Mike Seeger tocar sem the Ramblers.

Ele tocou «The Five Mile Chase», Mighty Mississipi», «Clude Allen Blues» e mais algumas canções. Ele tocava todos os instrumentos, o que a canção pedisse – banjo, violino, bandolim, auto-harpa, viola e até harmónicacom suporte. Mike arrepiava qualquer um. Era intenso, um cara de pau, irradiava telepatia, usava uma camisa branca como a neve e faixas prateadas nas mangas. Tocava todos os planos, o catálogo completo dos estilos dos velhos tempos, todos os géneros e dominava todos os idiomas – Blues do Delta, ragtime, canções trovadorescas, buck-and-wing, danças em linha, danças de festa, hinos e gospel – estar ali e vê-lo de perto inspirou-me. Não se limitava a tocar bem, tocava estas canções tão bem quanto era possível tocá-las. Eu estava tão absorvido a ouvi-lo que nem estava ciente de mim. Mike já possuía nos genes, na sua estrutura interna, aquilo que eu precisava ainda de trabalhar. A música estava-lhe no sangue antes de ter nascido. Não era possível que alguém pudesse, pura e simplesmente, aprender aquilo, e tornou-se claro para mim que teria de modificar os meus padrões de pensamento profundo… que tinha de começar a acreditar em possibilidades que nunca me tinha permitido antes, que encertara a minha criatividade num universo muito estreito e controlado… que as coisas se tinham tornado demasiado familiares e que provavelmente teria que me desorientar a mim mesmo.


Antes do sótão da casa de Alain Olmax, Bob Dylan vira tocar Mike Seeger, com os The New Lost City Ramblers, no pavilhão de uma escola na East 1oth Street:

Ele era extraordinário, até me deu arrepios. Não tinha precedentes. Dava-se ares de duque e de cavaleiro errante ao mesmo tempo. O arquétipo perfeito dos músicos folk. Seria capaz de enfiar uma estaca no coração negro do Drácula. Era ao mesmo tempo romântico, igualitário e revolucionário – tinha cavalheirismo no sangue. À semelhança de uma figura de uma monarquia restaurada, ele vinha purificar a igreja.

Bob Dylan em Crónicas

OLHAR AS CAPAS


Não Se Pode Morar Nos Olhos De Um Gato

Ana Margarida Carvalho
Capa: Rui Garrido
Teorema, Lisboa, Abril de 2016

Nunzio queria ir consolar Emina, aconchegar-lhe os pensamentos, ensaiou mil maneiras de a abordar, todas lhe pareceram forçadas e profundamente ridículas. Não vinha nos livros, não constava dos manuais, quais as primeiras palavras que um náufrago apaixonado deve dirigir à sua amada numa praia exígua, rodeada de penhascos inescaláveis, sem víveres, ânimo ou escapatória. E tantas foram as oportunidades a bordo, sempre goradas, sempre boicotadas pelas inconveniências e mal propícios, sempre atravancadas de timidez, de desajeito e do mais acutilante sentido do ridículo. Gestos contidos, olhares dissimulados, um brilho que sempre se obscurecia no último pestanejar, as palavras morriam-lhe debaixo da língua. 

domingo, 26 de março de 2017

POSTAIS SEM SELO


Não acredito que a maquilhagem e o melhor corte de cabelo só por si façam uma mulher bonita. A mulher mais radiante da sala é aquela que está cheia de vida e de experiência.

Sharon Stone

MISTICA


O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Instinto Fatal é um filme que vive da extrema e feroz sexualidade de Sharon Stone, aquele lento e perverso cruzar/descruzar de pernas de Catherine Tramell, sem roupa interior, cigarro na mão perante um grupo de polícias de boca aberta e baba a escorrer, que a queriam interrogar.

É tudo muito rápido, são breves segundos.

Não se vê nada, apenas a sugestão e isso é o encanto do cinema: na memória de quem vê cinema, os momentos mais eróticos nunca são os mais explícitos, dizia o Sr. Freitas Santos que das duas coisas sabia alguma coisa, mais duma do que de outra.

Com o cabelo louro apanhado, vestido branco curto, senta-se numa cadeira em frente a uns polícias que estão naquela sala para a interrogar.

Prepara-se para acender um cigarro.

Um dos chuis, diz-lhe:

- Não pode fumar aqui!

Com uma calma olímpica, pergunta:

- O que vão fazer? Prender-me por fumar?

Acende o cigarro e fazem-lhe a pergunta:

- Dedica-se a actividades sadomasoquistas?

Com um sorriso, ela devolve a pergunta:

- Em que é está a pensar exactamente?

Por alguma razão, há quem seja de opinião que o cinema foi inventado para filmar as mulheres.

Que seja!

O olhar de Eduardo Prado Coelho no 2º volume de Tudo o que Não Escrevi:

No cinema, Basic Instinct, com Sharon Stone em grandeza e plenitude. Curiosamente, é um filme de que quase toda a gente se sente obrigada a dizer mal, com a preocupação de se demarcar de qualquer suspeita de poder ter gostado por motivos menos puros. Contudo, trata-se de um policial interessante e bem executado, e é difícil ficarmos indiferentes à presença de Sharon Stone. Mas porquê? Por ele ser belíssima e elegantíssima? Seria insuficiente. Há no filme um suplemento de fascínio, que resulta do confronto entre a mera inteligência masculina e uma inteligência sexual que combina o mais feminino dos corpos com a mais masculina capacidade de raciocínio. A famosa cena do interrogatório não é apenas interessante pelo facto de Sharon Stone, ao descruzar as pernas num relance o sexo nu. O que se passas é mais do que isso: é uma debandada (em todos os sentidos do termo) da inteligência masculino policial face a uma inteligência que se reforça na afirmação fálica através do modo como desafia os homens quanto à sua vontade de continuar a fumar. O riso nervoso e perturbado que se difunde entre polícias e espectadores do filme é apenas o reconhecimento constrangido de que uma inteligência sexual é sempre mais inteligente do que uma simples inteligência sem mais nada. O que o filme de Paul Verhoeven tem de provocatório é o curto-circuito que estabelece entre o primitivo da instância sexual e o mito computorizado de uma inteligência sem falhas.

EXÍLIOS DE ALMA


A 2 de Novembro de 1962, Eugénio de Andrade escreve a Jorge de Sena:

Há já tanto tempo que não lhe escrevo! Você não faz ideia deste exílio de alma que são os dias aqui. Nada sabe a vida. E contudo não esqueço – lembro-me que você faz anos hoje, e isso leva-me a quebrar este silêncio para lhe enviar um abraço longo, cheio de saudade, à portuguesa.

Jorge de Sena, desde São Paulo, é pronto na resposta e escreve no dia 9 de Novembro:

Eu faço ideia, sim, Eugénio, do que seja esse «exílio de alma», onde «nada sabe a vida». E por várias razões: se bem que saiba – e como sei! – isso hoje mais triste do que nunca (embora me pareça que, para nossa maior solidão, nunca os medíocres de todas as cores e feitios terão sido tão felizes e bafejados de boa sorte editorial e jornalística…), havia muito que a vida aí me não sabia; e, tendo jogado tudo e acabado aqui, não posso dizer que, na verdade, ela tenha mudado de gosto… pelo menos o gosto de hoje, vai-se parecendo muito com o antigo. E porque vou ficando mais velho e mais desiludido de tudo (vida política, literária, vida tout court), provavelmente que até me sabe pio. As saudades que tenho dos amigos são imensas; e tê-las-ia sempre. Mas são tornadas mais densas pela total ausência de convívio, que é, num misto de provincianismo e de americanismo, a vida brasileira. Ninguém procura ninguém, se ele, no momento lhe não é necessário para qualquer coisa; e as pessoas têm vergonha de, em convívio, serem os intelectuais que passam por ser. De resto, eu evitei, desde sempre, mergulhar num pretenso convívio que existe em São Paulo ou no Rio, e que é feito de comunidade de negócios literários, de uísques caros, e da tolerância para com todos os medíocres que a política literária, mais do que aí, não elimina e antes tolera e cultiva, sem distingui-los da gente decente, E, como você sabe, nos meios universitários em que vivo, aqui como aí não abundam os intelectuais ou sequer as pessoas de gosto e de cultura. Dá-se até, nestes meios, um curioso fenómeno com pessoas como eu ou o Casais as pessoas evitam conversar, de medo de dizerem tolices que não nos escapariam..,.

Jorge de Sena/Eugénio de Andrade em Correspondência

Legenda: Jorge de Sena e Eugénio de Andrade

sábado, 25 de março de 2017

QUOTIDIANOS


O sorriso de Ann Miller serve para lembrar que, às duas da madrugada de domingo, os relógios terão de ser adiantados uma hora.

DA MINHA GALERIA


Aretha Franklin, a fantástica Aretha Franklin, faz hoje 75 anos, número redondo.

Claro que posso dizer: é uma rapariga do meu tempo.

Como nasci em 45, temos três anos de diferença.

João Gobern assina, hoje, no Diário de Notícias, um excelente texto sobre a Diva.

Se a tradição de muitos dos anos mais chegados se mantiver, Aretha Louise Franklin terá alugado para hoje umas quaisquer instalações luxuosas, num hotel ou num clube, na cidade de Detroit. Terá tratado de encomendar um "farnel" farto em gorduras e açúcares, para manter o hábito de se dedicar à soul food. Terá cantores e/ou músicos contratados para abrilhantar mais uma festa de aniversário, daquelas que costuma oferecer a si própria, sem se esquecer de as publicitar para manter aceso o lume de boas (e só boas) notícias a respeito da Rainha do soul. 

E ouçam a pequena, principalmente nas gravações que fez para a «Atlantic».

Tal como a recordo, na tomada de posse de Barak Obama em 2009.






DÉCIMO QUINTO POEMA SOBRE A MORTE DE DEUS


Percorria o cemitério
onde milhões de mortos
lhe suplicavam outra vida.

Dizia: tudo está bem assim
tudo começa e tem um fim.
Como se fosse Deus.

António Rego Chaves em Três Vezes Deus

Nota do editor: o primeiro poema está publicado em Dizendo-me Aqui Estou

COMEÇOS DE LIVROS


Há livros, lidos há muito tempo, caídos no esquecimento e que voltamos a pegar, por vezes olhar, só quando, por uma qualquer assombração, uma campainha toca, e dizemos:

- Eh pá! Eu já li isto!

A campainha que tocou, encontrei-a no livro do Mário de Carvalho Quem Disser o Contrário éPorque Tem Razão.

Escreve Mário de Carvalho:

Muito curiosas as primeiras linhas de Nossa Senhora de Paris, de Victor Hugo, com a obsessão enumerativa que prepondera em todo o romance: «Faz hoje trezentos e quarenta e oito anos seis meses e dezanove dias que os parisienses despertaram com a barulheira de todos os sinos a badalar…


O livro, dois volumes, o primeiro com 294 páginas, o segundo com 352 páginas, cheias de uma letra minúscula e que pertencem à Colecção Lusitânia da Livraria Lello & Irmão, sem data de edição, sem indicação do tradutor, apenas a nota «Tradução Cuidado», foi-me oferecido, em 1958, por ocasião dos meus 13 anos, pelo António Colaço, um amigo do meu pai.

Que leva alguém a oferecer, a um puto, um livro destes?

Que o leia, naturalmente.

Senão aos 13, aos 50, aos 75 anos, mas que o leia.

Ficou de lado à espera de uma qualquer vontade.

Lembro-me de o ler, não recordo com que idade, mas de certeza antes dos 22 anos.

Naquele tempo era a leitura o que restava, mas poucos eram os privilegiados.

Não havia televisão, apenas cinema ao sábado à noite ou domingo à tarde, futebol de 15 em 15 dias e como não era possível andar sempre a jogar à bola nas ruas, lia-se tudo, passavam-se livros de mão em mão, assim um pouco, como, maravilhosamente, contou Dinis Machado no capítulo Os rapazes dos livros, das fitas e da bola, de Reduto Quase Final

Recordo a leitura encantantória de Nossa Senhor de Paris, principalmente a partir do livro Sétimo, quando o autor decreta dos perigos de confiar um segredo a uma cabra.

Quasímodo, o Corcunda enclausurado de Notre Dame, Esmeralda, a bela cigana, a história do louco amor dele por ela, e apenas a  amizade dela por ele. Também o arcediago de Notre Dame, D. Claudio Frollo , também ele , esquecendo Deus, perdido de amores pela bela cigana.

O entusiasmo pelo livro teve um acalentamento suplementar, transformado em grata memória, quando, no Cine-Oriente, princípios dos anos sessenta (1962?) vi o filme que Jean Delannoy adaptou ao cinema, com a participação de Jacques Prévert, espaço assombroso para uma deslumbrante Gina Lolobrigida e um excelente Anthony Queen.



Com os dois volumes nas mãos, uma leve tentação para voltar a ler, mas aquela letra miudinha fez desfalecer o pitosga que já sou.
Assim, en passant, como dizem os franceses, perdi umas horas a (re)ler algumas páginas, e deu-me para respigar da pág. 175 do 2º volume:

No dia seguinte pela manhã descobriu, ao despertar, que tinha dormido. Já havia tanto tempo que se desabituara de dormir! Um alegre raio de sol nascente entrava pelo postigo e vinha beijar-lhe o rosto. Ao mesmo tempo que o Sol, viu nesse postigo um objecto que a encheu de medo; era o desventurado rosto de Quasímodo. Involuntàriamente fechou os olhos, mas debalde; parecia estar sempre a ver através das suas pálpebras cor-de-rosa aquela máscara de gnomo, cego dum olho, com os dentes de fora. Então, conservando sempre os olhos fechados, ouviu uma voz rude que dizia com muita meiguice:
- Não tenhais medo. Sou vosso amigo. Que eu venha ver-vos dormir não vos faz mal, não é verdade? Que vos faz que eu esteja aqui quando tendes os olhos fechados? Agora vou-me embora. Vede, pus-me por detrás do muro. Podeis abrir os olhos.

Mais um pormenor sobre a Nossa Senhora de Paris.

Durante anos, o Paulo Rodrigues, que foi actor saído da Guilherme Cossoul, foi meu colega de trabalho e, volta e meia, entre as diversas secretárias, percorria o espaço da grande sala, fazendo de corcunda e coxo e a dizer:

«Mon seigneur.»
   
Um pormenor que não diz nada a ninguém, mas que, agora que o lembro, me faz sorrir de ternura.

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS


sexta-feira, 24 de março de 2017

O MUNDO DESPROVIDO DE ENCANTO


Quando o Fred morreu, celebrou-se missa em sua honra na Mariner’s Church, em Detroit, a mesma igreja onde nos tínhamos casado.
Na noite da missa, o meu irmão Todd veio ter comigo a minha casa mas eu ainda estava deitada.
- Não condigo – disse-lhe
- Tens de ir – disse ele com firmeza, e abanou-me até eu sair daquele torpor, ajudou-me a vestir e levou-me à igreja. Pensava no que havia de dizer quando se começou a ouvir no rádio a canção «What a Wonderful World». Sempre que a ouvia o Fred dizia: Trisha, é a tua canção. Porque é que tem de ser a minha canção?, dizia eu a protestar. Nem sequer gosto do Louis Armstrong. Mas ele insistia que aquela era mesmo a minha canção. Parecia ser um sinal do Fred, por isso decidi cantar «What a Wonderful World» a capella na missa. À medida que cantava ia sentindo a beleza simples da canção, mas continuava sem perceber a razão por que ele a ligava a mim, uma pergunta que demorei tempo de mais a fazer-lhe. Agora a canção é tua, disse eu, dirigindo-me ao lento infinito da morte. Parecia que o mundo tinha ficado desprovido de encanto. Não consegui escrever poemas de emoção. Não vi o espírito do Fred perante mim nem senti a trajetória rodopiante da sua viagem.

Patti Smith em  M Train

Legenda: Fred no Dia do pai, Lake Ann, Michigan

OLHAR AS CAPAS


Pietr O Letão

Georges Simenon
Tradução Mascarenhas Barreto
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 145

Seria talvez exagerado pretender que, em muitos inquéritos, nascem relações cordiais entre a polícia e aqueles que, por dever, terá de entregar à justiça.
Quase sempre, a não ser que se trate de um antagonismo especial, estabelece-se uma espécie de intimidade. Isso deve-se, sem dúvida, a que, durante semanas, por vezes durante meses, polícia e malfeitor não pensam senão um no outro.
O inquiridor encarniça-se em penetrar cada vez mais na vida passada do culpado, tenta reconstituir os seus pensamentos, prever-lhe os mínimos reflexos.
Ambos arriscam a pele nesta partida. E, quando se encontram, é em circunstâncias suficientemente dramáticas para fazer fundir a indiferença polida que, na vida quotidiana, preside às relações entre os homens.
Muitos inspectores, depois de terem passado os maiores trabalhos para prenderem um malfeitor, ganham-lhe afeição, vão visitá-lo à cadeia e amparam-no moralmente até ao cadafalso.
Isto explica, em parte, a atitude dos dois homens, mal se acharam a sós, no quarto. O hoteleiro trouxera um fogão a carvão de madeira e ouvia-se a água cantar numa chaleira. Ao lado, entre dois copos e um açucareiro, erguia-se uma alta garrafa de rhum.

APENAS ROCK AND ROLL


Elvis Presley com Priscilla.

quinta-feira, 23 de março de 2017

POSTAIS SEM SELO


Um bom amigo é como um trevo de quatro folhas, difícil de encontrar e sorte de ter.


Provérbio irlandês

MARCADORES DE LIVROS

MARIA CAMPANIÇA


Debaixo do lenço azul com sua barra amarela
os lindos olhos que tem!
Mas o rosto macerado
de andar na ceifa e na monda
desde manhã ao sol-posto,
Mas o jeito
das mãos torcendo o xaile nos dedos
é de mágoa e abandono...
Ai Maria Campaniça,
levanta os olhos do chão
que quero ver nascer o sol!

Manuel da Fonseca em Poemas Completos

Legenda: serigrafia de Cipriano Dourado

GOSTO MUITO DE ANDAR DE COMBOIO


Terceira descrição de António Gedeão a caminho das Termas da Curia e onde ressalta o seu estimado gosto por comboios.

Mas isto sou eu a pensar, sentado aqui na carruagem pouco arejada deste comboio que nos irá levar à estação da Curia. Saímos há pouco de Lisboa, será uma viagem de, aproximadamente, três horas. Gosto muito de andar de comboio. Muito mais do que andar de avião, embora já tenha feito muitas viagens  nessas aves mecânicas, gigantescas e velozes, Gosto deste ramerrão continuado, do deslizar das rodas de aço nos carris, gosto desse guincho metálico, pesaroso, gosto de ver as pessoas coabitar tão pacificamente na estreita atmosfera da carruagem, gosto de ver as pessoas comer e oferecer e trocar peças de fruta e pastéis de bacalhau, uns goles de vinho tinto, gosto das trocas dos olhares oblíquos e dos agradecimentos de banco para banco, trocam tudo, aqui de repente, unidas as pessoas pelo sentimento comum de se verem obrigadas a repartir algumas conversas, algumas lembranças, alguns gostos e desgostos.

NOTÍCIAS DO CIRCO


Segundo informa o site do Vaticano, o Papa Francisco aprova canonização dos pastorinhos Francisco e Jacinta Marto.
É enorme a força das ratas de sacristia!...

quarta-feira, 22 de março de 2017

POSTAIS SEM SELO



Ferreira Fernandes no Diário de Notícias

PAISAGEM A DOIS ESPAÇOS


O som de uma máquina de escrever matraqueando Marx, traduzido, em Santo António à Estrela. O assobio. A janela iluminada que se abre. A loucura invadindo os gestos. As ruas desertas. Parados, à espera, debaixo das letras H.M.P. Um sob cada uma. O café. O pocho agradável com um odor recente aos States (se calhar Algés). Mas, o importante: sem ruídos outros na rua. Apenas Marx: a dois espaços.

Eduardo Guerra Carneiro em Assim se Faz a História

UMA PERDA IRREPARÁVEL


Em carta, datada de 3 de Julho de 1961, Miguéis diz a Saramago que ainda vive debaixo da impressão – do choque – que nos causou o suicídio do Hemingway (e por muito bestial que o homem fosse, o artista era único, e a sua perda irreparável.

E já em findar de carta escreve:

A quase todos nos falta a longa paciência (a consciência, o métier) que faz os Hemingways… O homem estava a sofrer duma velha cirrose, de hipertensão, talvez de diabetes, e (suspeito) de cancro: é mais fácil enfrentar um toiro Miúra (em imaginação?) do que a morte lenta da desintegração… Ah, se ele tivesse lido Um Homem Sorri à Morte! Trop tard… O Hemingway viveu a afrontar perigos: fractura da espinha, ferimentos graves, alcoolismo, trabalho duro… Respeito-lhe a decisão. Também o Essenin, o Block, o Mayakóvasky se mataram…

terça-feira, 21 de março de 2017

POSTAIS SEM SELO


A vida é só uma, e se se perde o autocarro fica-se sozinho no passeio com a carga de todos os fracassos.

D.H. Lawrence em O Amante de Lady Chatterley

DO BAÚ DOS POSTAIS

SEGUNDA VEZ


                                                Infelizes, que em vida descem à casa
                                                de Hades, morrendo assim duas vezes,
                                                quando os outros homens morrem só uma!
                                            
                                                                                             Odisseia, C. XII

Por muito menos se morre
chama-se a polícia os bombeiros
Verdadeiramente começo a ficar velho
Numa hora destas quem me chamarei?

Chamei-te. Morte verdadeiramente morta,
como só sucede uma vez na vida e na morte
Oh não me venham dizer que não chamei uma vez
de mais pela tua comida irremediável!

Os antigos chamavam as musas
ou a si próprios, eu estou velho pata tudo
Aproximo-me a grande velocidade de tudo
E nem nunca mais serei o mesmo nem serei diferente


Manuel António Pina em Poesia Reunida 

PRIMAVERA


No segundo dia de Primavera, o sol anda por aí um tanto ou quanto envergonhado.
Primavera, a primeira das estações de Vivaldi.
Existem quatro sonetos para as quatro estações. Desconhece-se se esses sonetos são da autoria do próprio Vivaldi.

Concerto No. 1 em Mi maior, op. 8, RV 269

1.      Allegro

A primavera chegou
Os pássaros celebram a sua chegada com canções festivas
e riachos murmurantes são docemente afagados pela brisa
Relâmpagos, esses que anunciam a Primavera,
rugem, projectando o seu negro manto no céu,
para depois se desfazerem em silêncio
e os pássaros mais uma vez retomam as suas encantadoras canções.

2.      Largo

No prado cheio de flores com ramos cheios de folhas
os rebanhos de cabras dormem e o fiel cão do pastor dorme a seu lado.

3.      Allegro Pastorale

Levados pelo som festivo de rústicas gaitas de foles,
ninfas e pastores dançam levemente sobre a brilhante festa da Primavera.


Leitura complementar: Música e Cultura


O PAI DO MEU PAÍS


O Bob Dylan é o pai do meu país. O Highway 61 Revisited e o Bringing It All Back Home eram não apenas grandes álbuns, mas também, tanto quanto me lembrava, as gravações que, pela primeira vez, me haviam exposto a uma visão verosímil do sítio onde morava. A escuridão e a luz estavam lá, e o véu de ilusão e engano fora posto de parte. Ele revelou a educação estupidificante e a rotina diária que encobriam a corrupção e a podridão. O mundo por ele descrito estava à vista de todos, como por exemplo, na minha cidadezinha, bem como na televisão que entrava nas nossas casas, mas prosseguia sem comentários e era tolerado em silêncio. Ele inspirou-me e deu-me esperanças. Fez as perguntas que mais ninguém fez por modo, em especial na



perspetiva de um rapaz de 15 anos How does it feel to be on your own? Abrira-se uma fenda sísmica entre gerações e sentíamo-nos, de repente, órfãos, abandonados, no fluxo da História, as nossas bússolas avariadas, sem-abrigo dos sentimentos. O Bob apontou corretamente o Norte e fez as vezes de farol para nos ajudar a descobrir o caminho por entre o novo caos em que a América se tornara. Ele hasteou uma bandeira, escreveu as canções, cantou as palavras essenciais à época e para, naquele momento, a sobrevivência emocional e espiritual de muitos jovens americanos.

Bruce Springsteen em Born to Run

segunda-feira, 20 de março de 2017

POSTAIS SEM SELO


Como Soares, à esquerda, também Cavaco não faz o pleno, à direita. Alguém que pense pela sua cabeça não pode ser nem cavaquista nem soarista o tempo todo.

Pedro Baldaia, Diário de Notícias

Legenda: fotografia de Rui Ochôa, publicada no Expresso.

NOTÍCIAS DO CIRCO


Na reunião da comissão política distrital de Lisboa do PSD, Teresa Leal Coelho teve 23 votos a favor, dois nulos, dois brancos e um voto contra.
Depois de um enorme folclore de negas e mais negas, Passos Coelho não teve outro remédio senão virar-se para a sua amiga e vice-presidente do partido na escolha para a candidatura à Câmara Municipal de Lisboa.
Perante as críticas internar e externas feitas à actual vereadora da Câmara de Lisboa por ter faltado à maioria das reuniões do executivo camarário durante os quatro anos de mandato, Miguel Pinto Luz, presidente da Distrital de lisboa do PSD, garantiu que Teresa Leal Coelho só faltou porque esteve sempre envolvida no seu trabalho como deputada da bancada social-democrata.
Não esteve de férias nas Caraíbas!
Tem tudo para correr mal, dizem à boca grande e à boca pequena diversos responsáveis sociais-democratas.
Marques Mendes, ontem, no seu comentário na SIC:

A gestão política deste processo foi mais ou menos desastrosa. Foi uma gestão política péssima.

CHUCK BERRY (1926-2017)



Chuck Berry morreu aos 90 anos.
Não faz parte das minhas preferências musicais.
Sobre a morte do cantor, João Gobern assina hoje, no Diário de Notícias, um  interessante artigo:

Basta um quadrado de canções - "Maybellene", "Roll Over Beethoven", "Rock and Roll Music" e "Johnny B. Goode" - para se entender como ele faz parte história da idade Rock.

Para mim, o rock nasceu quando o meu pai levou para casa um 78 rotações por minuto do Rock Around the Clock tocado pelo Bill Halley e os seus Cometas.
Quando viu Sementes de Violência de Richard Brooks ficou encantado com o frenesim de Bill Halley – quem não ficava?! -, terá passado pela primeira discoteca que tinha à mão, ou ao pé, e não resistiu: levou o rock para casa.
Este é um pormenor de ordem pessoal mas, curiosamente, João Gobern também refere Bill Halley:

Berry "cresceu" musicalmente na melhor companhia: entre os seus parceiros de selo, contavam-se, além do próprio Waters, Howlin" Wolf, Willie Dixon, Buddy Guy, Bo Diddley (todos negros) e Carl Perkins, o criador de Blue Suede Shoes, branco, que se tornou grande amigo de Chuck.

De todos estes afro-americanos, foi Berry que conseguiu os maiores êxitos, capazes de ultrapassar as fronteiras raciais. E se a história do rock costuma consagrar Bill Haley (e Rock Around The Clock) como "primeira pedra" e Elvis Presley como a estrela que mudou o estilo para outra dimensão, não deixa de ser curioso que muitos dos futuros deuses deste Olimpo elétrico - os Beatles, os Rolling Stones, Eric Clapton e os Beach Boys, responsáveis por "descolorir" a canção Sweet Little Sixteen, de Berry, adocicando-a, escrevendo uma nova letra e rebatizando-a como Surfin" USA - escolham Chuck como o homem que efetivamente moldou e batizou o rock.