Naquele tempo, costumava levar gelo à Nina Simone. Era sempre simpática
comigo. Tratava-me sempre por “Queriiido”. Levava-lhe uma bandeja cinzenta de
plástico cheia de gelo, para ela pôr no “Whisky”.
Ela descascava a cabeleira loura e atirava-a para o chão. Por debaixo da cabeleira, o seu cabelo verdadeiro era miudinho, como o pelo de um cordeiro negro tosquiado. Descascava as pestanas postiças e colocava-as ao espelho. As pálpebras eram salientes. Pintava-as de azul. Faziam-me sempre pensar numa dessas rainhas egípcias como as que eu tinha visto no “National Geographic.
A sua pele brilhava de molhada. Enrolava uma toalha azul à volta do pescoço e depois inclinava-se para a frente, descansando os cotovelos sobre os joelhos. O suor rolava-lhe pela cara abaixo, salpicando o chão vermelho de cimento entre os seus pés. Habitualmente acabava o espectáculo com a canção “Jenny The Pirate” de Bertold Brecht.
Cantava sempre esta canção como se se tratasse de uma vingança sua, muito profunda, como se tivesse sido ela própria a autora do poema. A sua actuação era como um tiro, que alvejava, primeiro, a garganta de uma audiência branca. Depois o coração. Finalmente a cabeça.
Nesses tempos, ela disparava a matar. A canção do seu espectáculo que realmente me punha fora de mim era “Que bom era ter-te à minha espera.” Sempre que a cantava, eu ficava assombrado, hipnotizado. Andava a recolher copos de Whiskey Sour quando ela atacava aquele piano, que desabava sobre nós, retumbante, com a sua voz fantasmagórica, serpenteando através do amontoado das cordas.
Os meus olhos subiam para o palco e por lá ficavam, enquanto as minhas mãos continuavam a trabalhar. Uma vez, estava ela a cantar essa canção, derrubei uma vela. A cera quente espirrou para cima do fato de um homem de negócios, sujando-o todo.
Fui chamado ao escritório do gerente. O homem já lá estava, com os salpicos de cera quente espalhados pelas calças abaixo. Parecia que se tinha vindo para cima do fato. Nessa noite, fui despedido. Lá fora, na rua, ainda podia ouvir a sua voz atravessando as paredes: “Seria o paraíso ter-te à minha espera”.
Sam Shepard, em Crónicas Americanas
Ela descascava a cabeleira loura e atirava-a para o chão. Por debaixo da cabeleira, o seu cabelo verdadeiro era miudinho, como o pelo de um cordeiro negro tosquiado. Descascava as pestanas postiças e colocava-as ao espelho. As pálpebras eram salientes. Pintava-as de azul. Faziam-me sempre pensar numa dessas rainhas egípcias como as que eu tinha visto no “National Geographic.
A sua pele brilhava de molhada. Enrolava uma toalha azul à volta do pescoço e depois inclinava-se para a frente, descansando os cotovelos sobre os joelhos. O suor rolava-lhe pela cara abaixo, salpicando o chão vermelho de cimento entre os seus pés. Habitualmente acabava o espectáculo com a canção “Jenny The Pirate” de Bertold Brecht.
Cantava sempre esta canção como se se tratasse de uma vingança sua, muito profunda, como se tivesse sido ela própria a autora do poema. A sua actuação era como um tiro, que alvejava, primeiro, a garganta de uma audiência branca. Depois o coração. Finalmente a cabeça.
Nesses tempos, ela disparava a matar. A canção do seu espectáculo que realmente me punha fora de mim era “Que bom era ter-te à minha espera.” Sempre que a cantava, eu ficava assombrado, hipnotizado. Andava a recolher copos de Whiskey Sour quando ela atacava aquele piano, que desabava sobre nós, retumbante, com a sua voz fantasmagórica, serpenteando através do amontoado das cordas.
Os meus olhos subiam para o palco e por lá ficavam, enquanto as minhas mãos continuavam a trabalhar. Uma vez, estava ela a cantar essa canção, derrubei uma vela. A cera quente espirrou para cima do fato de um homem de negócios, sujando-o todo.
Fui chamado ao escritório do gerente. O homem já lá estava, com os salpicos de cera quente espalhados pelas calças abaixo. Parecia que se tinha vindo para cima do fato. Nessa noite, fui despedido. Lá fora, na rua, ainda podia ouvir a sua voz atravessando as paredes: “Seria o paraíso ter-te à minha espera”.
Sam Shepard, em Crónicas Americanas
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