segunda-feira, 31 de agosto de 2020

ETECETERA



A estupidez arrasta-se por todo o ano. Nunca compreendeu muito bem porque a um mês, este que agora vai bterminando, chamam a estação estúpida.
Amanhã, como diria o senhor meu pai, voltamos a ser gente.

1.

Fernanda Lapa numa entrevista ao Expresso: «Este país não é para artistas, nem para velhos, nem para novos.»
Sabia do que falava, algumas vezes posta para trás, mas sempre lutou. Após o Novembro de 1975, tal como o poeta José Gomes Ferreira, tornou-se militante do Partido Comunista.

2.

Escreveu Francisco Louçã em crónica no Expresso:

«Se há algo em Portugal que seja tão regular e previsível como o relógio de cuco são os escândalos do Novo Banco.»

Manuel Carvalho da Silva:

«A 3 de fevereiro de 2017 a Assembleia da República rejeitou, com votos contra do CDS, do PSD e do PS, projetos de resolução do BE e do PCP que se opunham à venda do banco à Lone Star e propunham a sua nacionalização. Muitos dos agora surpreendidos e indignados estão apenas a colher o que semearam. E o presidente da República, ou o primeiro-ministro não podem falar do assunto como se dispusessem apenas da informação do comum dos cidadãos. Não lhes podemos admitir hipocrisia política ou desresponsabilização.»


3.

A cidade de Lisboa tem quase 3 mil prédio devolutos.

4.

As obras no Hospital Militar de Belém, em Lisboa, custaram mais do valor inicialmente estimado, avançou o Diário de Notícias.
De acordo com o jornal estava inicialmente previsto que a reabilitação de três dos cinco pisos do antigo Hospital Militar de Belém custasse 750 mil euros mas a factura já vai 2.598.964,46 euros.

5.

Em Portugal, segundo um estudo da Marktest, 3,2 milhões de pessoas têm cães em casa e 2,7 milhões têm gatos.

6.

Cerca de 40% das mortes por covid em Portugal aconteceram nos lares.
Continuam a acontecer.
As diversas entidades vão discutindo o sexo dos anjos.

7.

Na Figueira da Foz uma mulher tentou pegar fogo ao marido, depois de o regar com um líquido combustível, no seguimento de uma discussão conjugal.

8.

Dizem: perderam-se em Portugal mais de 225 mil empregos durante a pandemia. O número deverá ser superior.

9.

Bruno Candé, actor, negro, 39 anos, foi morto com quatro tiros disparados à queima-roupa numa rua de Moscavide. O autor dos disparos, um homem branco, foi a casa buscar uma arma que trouxera dos tempos em que esteve como militar nas colónias, ele disse «ultramar».
Bruno Candé deixou mulher e três filhos menores.

10.

O que leva um político experiente como António Costa falar em off a jornalistas?

11.

Terei que falar apenas por mim: não tenho nenhuma segurança no que ao meu quotididnao diz respeito. O mundo que acompanhou todo o meu viver, acabou. Que me interessa o dia de amanhã se não tenho segurança, confiança. no exacto  segundo em que escrevo. A minha sobrevivência está em risco e, apesar disso, não há dia que não esqueça levar a máscara para ir fazer compras, mesmo sabendo que basta um mínimo descuido para que aconteça a morte do artista.
De certezas apenas a ideia que Agosto terminou.
Talvez nem tudo esteja perdido.

12.

Pergunta a Hélia Correia: «para que servem os poetas em tempo de indigência?»

domingo, 30 de agosto de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

ÓCULOS DE SOL

os meus verões são tão diversos como diversa tem sido toda a minha vida arroz de pimentos e pasteis de bacalhau aos domingos até algés ou cruz quebrada, o mar da infância ficava longe castelos na areia anos mais tarde dois meses na trafaria em casa alugada a pescadores, quando as férias eram grandes uma juke box na esplanada do marques o lucho gatica a cantar o moliendo café o marino marini a cantar honeymoon também um barrote espetado no meio do areal, um alti-falante no topo a ouvir-se o armando marques ferreira a apresentar o programa da manhã do rádio clube português as canções das praias de todos os anos  kanimambo pelo joão maria tudela a lenda da conchinha da celly campelo o ouro negro setembro chegou vamo-nos separar os golfinhos a percorrer o tejo a caminho da barra os bailes de despedida dos banhistas no salão de festas dos bombeiros e agora senhoras minhas meus senhores o conjunto faz um pequeno intervalo damas ao bufete um enorme alguidar de zinco cheio de gelo e garrafas de vinho branco camilo alves, cada taça vinte e cinco tostões dois para a esquerda um para a direita directrizes para o pezudo que sempre fui as férias da infância não se repetem o ruy belo que esperava pelo verão como por outra vida depois passei a odiar, o verão dou-me muito mal com o calor longe muito longe da sophia que dizia que metade da vida dela era maresia e eu a acreditar baixinho que o verão é um território do pecado, todos os pecados se confundem e de pecados fujo a sete pés e gozar que nem um perdido com a marilyn monroe num filme do billy wilder a dizer ao vizinho de baixo que se vai vestir à cozinha, o vizinho na cozinha porquê e ela a dizer que no verão anda nua pela casa e põe as cuecas no congelador o verão prestes a chegar o meu pai a dizer-me que em setembro voltamos a ser gente e sempre sempre os gatos selvagens e o verão a chegar sur la plage por fim mas não como último sinal há longos anos que deixei de passar férias e apenas sinto que as férias é que passam por mim a uma velocidade tão louca e muito longe da calma e serenidade das férias do sr. hulot ou brigitte bardot em 1955 de biquíni em saint-tropez, aquele grande sorriso e o resto que poderá ser um refresco de limão, muito gelo um dedal de gin e lembrar-me ainda que nunca usei óculos de sol

Texto publicado em 1 de Agosto de 2016










sábado, 29 de agosto de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE…

Numa recente entrevista que o escultor Alberto Carneiro deu ao Público, Anabela Mota Ribeiro perguntou-lhe:

Lia livros?

Alberto Carneiro respondeu-lhe:

Li imenso. A Gulbenkian tinha bibliotecas itinerantes. A carrinha passava todos os meses por São Mamede e eu requisitava livros. Li sempre muito, desde criança. Foi isso que me abriu os horizontes. O que é que requisitava? Aquilino Ribeiro, Miguel Torga. Camões. Do Pessoa, não me lembro.

Inestimável papel aquele que as Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian deram a este país que Salazar quis inculto, submisso, assustado. O suficiente era saber ler, escrever, contar, mas não valia a pena mais esforço. Havia campos para trabalhar, mares para pescar, gado para tratar, ruas para calcetar.

Mesmo os que sabiam ler, grande parte eram incapazes de compreender aquilo que liam.

Para Salazar, ser culto era um pecado mortal.

Camilo Castelo Branco em Os Vulcões de Lama:

A poderosa razão que o lavrador Roberto Rodrigues opunha para não mandar ensinar a ler o filho, era - que ele pai também não sabia ler, e mais arranjava lindamente a sua vida. Esta vinha a ser a razão capital, reforçada por outras subalternas e praticamente bastante persuasivas.
 - Se o rapaz souber ler – argumentava triunfantemente o idiota – assim que chegar a idade, às duas por três, fazem-no jurado, regedor, camarista, juiz ordinário, juiz de paz, juiz eleito. São favas contadas. Depois, enquanto ele vai à audiência ou à Camara, a Cabeçais daqui uma légua, os criados e os jornaleiros ferram-se a dormir a sesta de cangalhas à sombra dos carvalhos, e o arado fica também a dormir no rego. E ademais, isto de saber ler é meio caminho andado para  asno e vadio. E citava exemplos, personalizando meia dúzia de brejeiros que sabiam ler e eram mais asnos e vadios que os analfabetos.

Alberto Carneiro vivia numa aldeia perto do Porto, isolada, triste e a chegada das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian funcionou como um pauzinho na engrenagem, uma possibilidade de os imperativos de Salazar não terem resultados mais funestos.

É assim que a Gulbenkian faz o resumo das suas Bibliotecas Itinerantes:


«Ainda em 1958, baseado na experiência pioneira de Branquinho da Fonseca e sob a sua direcção, foi criado pela Fundação Calouste Gulbenkian, instituição privada, o Serviço de Bibliotecas Itinerantes, com o intuito de tentar resolver um problema: o da educação pós-escolar dos cidadãos.
As bibliotecas itinerantes ou carros-biblioteca levavam a bordo cerca de dois mil volumes arrumados nas estantes. Nas prateleiras de baixo, encontravam-se os livros para crianças, nas prateleiras do meio a literatura de ficção, de viagens e biografias e, por fim, nas de cima os livros menos procurados, de filosofia, poesia, ciência e técnica.
Em 1962 existiam 47 bibliotecas itinerantes, o número de leitores rondava os trezentos mil e os livros emprestados atingiam os 3 milhões.
Durante a ditadura salazarista, que assentava a sua acção na manutenção da censura e do obscurantismo da sociedade portuguesa, o livro e a leitura eram um luxo e também, uma actividade arriscada. Foi, no entanto, a acção levada a cabo pela Fundação Calouste Gulbenkian que dotou o país de uma rede de bibliotecas coerente, com o objectivo principal de alcançar e promover o gosto pela leitura.»

Uma explosão de memórias leva-me até aos jardins da infância.

Em alguns jardins de Lisboa, existia um pequeno armário cinzento com alguns livros, mas as leituras mais disputadas eram o Condor Popular e afins.

Um funcionário da Câmara zelava pelo serviço.

Deslocava-me, então, da Penha de França até ao Jardim Constantino para, nessas pequenas, mas úteis, bibliotecas ler o Condor Popular, o velho Mandrake e os seus passe de mágica

O Carlos Alberto, cujo pai tinha mais posses do que os pais dos outros putos da rua, fazia com que o Cavaleiro Andante e o Mundo de Aventuras, passassem de mão em mão. Nenhum exemplar podia ficar mais de um dia nas mãos de cada puto. Se isso acontecesse, o Carlos Alberto determinava que para o prevaricador não havia leitura na semana seguinte.


Ainda hoje, quando passo pelo jardim Constantino, olho o espaço onde se encontrava o armário dos livros e revistas, que foi o meu pontapé de saída para outras aventuras romanescas que tiveram como referências Emílio Salgari, Júlio Verne, Walter Scott, misturados com as aventuras dos Cinco.

Mais tarde vim a saber pelo José Gomes Ferreira, que foi o seu pai, Alexandre Ferreira, também fundador da Universidade Livre e da Associação dos  Inválidos do Comércio que, como vereador da Câmara Municipal, lançou a ideia de instalar bibliotecas nos jardins públicos:

«Bibliotecas onde os leitores poderiam não só requisitar os livros para ler ali mesmo, na dureza dos bancos, mas, quando o desejassem, levá-los para casa com a condição de devolvê-los no dia seguinte.»
 (1)

Em 1961 a Câmara Municipal de Lisboa lançou as Bibliotecas Itinerantes que percorriam os bairros de Lisboa.

Já depois do 25 de Abril, lembro-me de ver uma carrinha estacionada na Praça Paiva Couceiro, também encontrei uma outra no jardim junto à Igreja da Encarnação.

Em Fevereiro de 2011, o Partido Ecologista Os Verdes entregou na Assembleia Municipal de Lisboa um requerimento questionando a Câmara sobre as razões da suspensão do serviço de Bibliotecas Itinerantes.

Ao que parece a interrupção teve a ver com custos de reparação das viaturas.

Nos tempos de internetes e coisas-que-tais, as bibliotecas itinerantes viraram dinossauros.

Das Bibliotecas Itinerantes da Câmara Municipal de Lisboa nunca mais houve notícia.

Alguém na Câmara terá concluído que já ninguém se desloca a um jardim para ir buscar um livro para ler.

Altura ideal para cortar nas despesas e aplicar o dinheiro em folclore.

Sempre dá mais nas vistas!...

Na Feira do Livro do ano passado puseram lá uma dessas Bibliotecas Itinerantes.

Se já não foram extintas, estão em vias de…

Mas as Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian e da Câmara fazem parte do imaginário de gerações.

E não é sem emoção que esses tempos renascem como gratas memórias.

Final de O Raio Verde de Júlio Verne:

«- Mas com efeito, minha querida Helena – argumentou Olivier Sinclair -, não o vimos, esse raio que quisemos tanto ver!
- Vimo-lo melhor – disse baixinho a jovem senhora. – Vimos a felicidade, aquela que a lenda ligava à observação deste fenómeno!... Visto que o encontrámos, meu querido Olivier, que ele nos baste, e abandonemos aos que não o conhecem, e quiserem conhecê-lo, a busca do raio verde!»

(1) José Gomes Ferreira em Relatório de Sombras, Moraes Editores, Lisboa Setembro de 1980.


Texto publicado em 26 de Agosto de 2013

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

OLHAR AS CAPAS



21 Retratos do Porto Para o Século XXI

Diversos autores
Coordemação de José da Cruz Santos
Apresentação de Eduardo Lourenço
Capa e Direcção Gráfica de Armando Alves
Edições ASA, Porto, Novembro de 2004

Um dia a Ti Mariana do Ambrósio desceu a rua com o cesto à cabeça e chamou à minha porta:
- Ó Maria?
A minha mãe foi à janela:
- Diz Mariana.
- O teu rapaz está aí?
- Está. Entra.
A Ti Mariana subiu as escadas e, no átimo de transpor a soleira da porta, saudou:
- Deus seja aqui.
- E o diabo em casa do padre – respondeu a minha mãe.
A Ti Mariana depôs o cesto no chão e voltou-se para mim que permanecia sentado à mesa às voltas com um naco de presunto, pão e vinho:
- Isto – e indicou uma cestada de alfarrábios – lá em minha casa, onde ninguém sabe ler, servem apenas para entreter os ratos. Agora, como tu andas lá nos estudos, lembrei-me de que talvez lhes possas dar outro destino.
Por isso tos trouxe. Se os queres muito bem. Se não, fogueira com eles.
- Claro que quero, Ti Mariana. Onde é que a enhora foi desenterrar estes veneráveis incunábulos?
- estes quê?
- estas antiguidades?
- Eram dum meu tio-bisavô padre que, segundo dozem, tinha a sala onde dormia forrada de livros. Mas foram desaparecendo. Restam estes. Agora desocupa-me o cesto que precisos deles para ir às couves.

De um texto de Bento da Cruz.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

MOTHER ROAD


A estrada 66 é a rota principal das populações em êxodo. A estrada 66 – a longa faixa de cimento que corta as terras, ondulando para cima e para baixo, no mapa, de Mississipi a Bakersfield – atravessa as terras vermelhas e as terras pardas, galga as elevações, cruza as Montanhas Rochosas, penetra no luminoso e terrificante deserto e, cruzando este, torna a entrar nas regiões montanhosas até alcançar os férteis vales da Califórnia.

A 66 é o caminho de um povo em fuga, a estrada dos refugiados das terras da poeira e do pavor, do trovejar dos tractores, dos proprietários assustados com a invasão lenta do deserto pelas bandas do norte e com os ventos que vêm ululando aos remoinhos do lado do Texas, com as inundações que não traziam benefícios às terras e ainda acabavam com o pouco de bom que ainda possuíam. De tudo isto os homens fugiam e encontravam-se na estrada 66, vindos dos caminhos tributários e das estradas sulcadas de calhas e de marcas fundas de rodas, que cortavam todo o interior. A 66 é a estrada-mãe, a estrada do êxodo.


John Steinbeck, “As Vinhas da Ira”

Contei-vos na última “crónica” que a passagem pela Route 66 me tinha feito recordar o êxodo das populações rurais do midwest devido aos efeitos da seca e do “Dust Blow”. Numa época já de si conturbada, em que se faziam sentir fortemente os efeitos da crise de 1929, tanto a seca, por um lado, como as tempestades de areia, por outro, arrasavam as últimas esperanças de sobrevivência dos pobres camponeses do Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México, Tennessee, … Fortemente endividados à banca ou incapazes de pagar as suas rendas aos grandes proprietários rurais, estas populações foram obrigadas a abandonar as suas terras e a lançarem-se à estrada, na esperança de uma vida melhor, quase sempre nos verdejantes campos da Califórnia. Carregavam as suas velhas carripanas com os poucos bens que tinham conseguido salvar, e lançavam-se à aventura… Mas nem sempre se podiam, dar ao “luxo” de ir de carro… Às vezes não tinham mais do que um simples carrinho de mão, como poderão ver numa das fotografias que vos envio. Ao mesmo tempo, os tractores avançavam pelos campos e deitavam abaixo todas as construções que por lá encontrassem, para impedir aos anteriores ocupantes qualquer veleidade de regresso.

É uma época da História dos Estados Unidos de que sempre gostei muito. Época de extremos, em que o “Sistema” mostrou o seu lado mais negro: a impiedosa ditadura dos bancos e dos grandes “landowners”, a exploração dessa imensa mão-de-obra nos campos da Califórnia, vivendo em condições infra-humanas, a cumplicidade entre as polícias locais e os proprietários rurais para abafar, pela morte se necessário, todas as tentativas de rebelião… Mas foi também, por outro lado, uma época de grandes batalhas sociais na qual veio ao de cima a dignidade de todo um povo, a sua capacidade de união e de solidariedade para lutar com determinação contra essas mesmas adversidades…

Felizmente, foi também uma época que a Arte, com A grande, fixou para a posteridade: na Literatura, através dessa obra-prima de John Steinbeck que foi “As Vinhas da Ira” (1939); no Cinema, não só com a adaptação desse mesmo livro feita por John Ford (1940), mas também com outros filmes que, com as devidas distâncias, navegavam nas mesmas águas, como foi o caso de “Tobacco Road” (1941), do mesmo Ford, de “Our Daily Bread” (1934), de King Vidor, ou “The Southerner” (1945), de Jean Renoir, …; na Música, com as célebres “Dust Blow Ballads”, que Woody Guthrie, fortemente impressionado com o livro de Steinbeck, escreveu entre 1937 e 1941, e que constituem o melhor e mais coerente conjunto de “canções de intervenção” que conheço; finalmente, na Fotografia, através do trabalho dos fotógrafos da “Farm Security Administration” (FSA), que Roosevelt enviou para os campos com um claro intuito de propaganda política. Roosevelt tinha afirmado em 1936, num discurso que ficou célebre, “Vejo um terço da nação mal alojado, mal vestido e mal alimentado”, e contava com o apoio desses fotógrafos para documentarem, no terreno, os graves problemas sociais resultantes da Grande Depressão e justificarem, assim e aos olhos de toda a população, as políticas sociais do New Deal. Alguns desses fotógrafos, como foi o caso de Dorothea Lange, acompanharam sistematicamente essas populações em fuga, concretizando, nessa altura, a parte mais notável de toda a sua obra.




E o que vos proponho agora aqui, à guise de homenagem a esse Povo, é dar voz e imagens a esses autores. Será uma “crónica” com características especiais… De longe a mais longa, mas aquela em que menos irei escrever. As fotografias e os textos de Steinbeck e Woody Guthrie falam bem por si, pelo que me limitarei a enquadrar uma ou outra citação. Preparem-se, então, para essa longa viagem, sabendo que, quando se cansarem, sera fácil salatrem do comoboio a todod o momento…

On the 14th day of April
Of 1935, there struck
The worst of dust storms
That ever filled the sky

You could see that dust storm coming,
The cloud looked death-like black,
And through our mighty nation
It left a dreadfull track

(Woody Guthrie – “The Great Dust Storm”)

Escolhi para vos mostrar uma célebre fotografia de Arthur Rothstein “Dust storm, farmer and sons” (1936), onde vemos um pai e seus filhos a fugir a uma tempestade de areia. Essa mesmo fotografia foi escolhida para a capa do álbum “Dust Blow Ballads sung by Woody Guthrie, da Folkways Records (1964).

That old dust storm killed my family
But it can't kill me, Lord
And it can't kill me

That old dust storm killed my baby
But it can't kill me, Lord
And it can't kill me.

That old landlord got my homestead
But he can't get me, Lord
And he can't get me.

That old tractor got my home, boys
But it can't get me, Lord
And it can't get me

That old pawn shop got my furniture
But it can't get me, Lord
And it can't get me

(Woody Guthrie – “Dust Can’t Kill me”)



Os homens em êxodo rompiam na 66; às vezes um carro solitário, outras vezes, uma pequena caravana. Andavam o dia inteiro vagarosamente pela estrada e, à noite, paravam onde houvesse água. De dia, velhos radiadores expeliam colunas de vapor e frouxas varetas de ligação matraqueavam os ouvidos no seu contínuo martelar. E os homens que guiavam os camiões e os carros sobrecarregados escutavam apreensivos. Quanto falta para chegarmos à cidade mais próxima? Há um verdadeiro terror pelas distâncias entre as cidades. Se alguma coisa se quebra…

John Steinbeck, “As Vinhas da Ira”

(Fotografia de Bem Shan)


E um simples furo de pneu era motivo de angústia e pretexto para grandes vigarices… (fotografia de Dorothea Lange).

Temos de arranjar um pneu novo, mas – Deus do Céu! – eles querem tanto dinheiro por um pneu usado! Eles põem-se a olhar para nós e sabem que a gente tem de viajar de qualquer maneira, que não podemos perder tempo. Então, aumentam o preço.É pegar ou largar! Pensa que eu estou aqui no negócio para me divertir? Estou aqui para vender pneus. Não lhos posso dar de presente. Não tenho culpa nenhuma do que vos aconteceu. Eu também tenho cá as minhas arrelias.

A que distância fica a próxima cidade?

Ontem passaram por aqui quarenta e dois carros, cheios de gente como vocês. De onde vêm eles? E aonde vão?

Bem, a Califórnia é um grande estado.

Mas também não é assim tão grande. Os Estados Unidos juntos não são assim tão grandes como isso. Não há lugar para vocês e para mim, para a sua gente e para a minha, para ricos e para pobres, todos num só país, os ladrões e a gente honesta. Para os esfomeados e para os fartos. Porque não voltam para o sítio de onde vieram?Isto aqui é um país livre… A gente vai para onde quiser.

Isso é o que você pensa! Já ouviu falar das patrulhas de polícia na fronteira da Califórnia? É a polícia de Los Angeles – prende-os e manda-os voltar para trás. Eles dizem: se vocês não vêm para cá com a ideia de comprar terras, não os queremos cá. E dizem: você tem carta de motorista? Deixe ver. Então, rasgam a carta e dizem: sem carta de motorista, você não pode entrar no estado com esse camião.

Mas estamos num país livre!

- Vá atrás disso, vá! Já houve alguém que disse: a liberdade depende da massa que a gente pode pagar por ela.

Mas na Califórnia, eles pagam salários altos. Eu tenho até um impresso em que diz isso mesmo.

Ora! Isso não passa de uma cantiga! Vi gente que regressava de lá. Vocês foram intrujados. Afinal, quer levar esse pneu ou não quer?

John Steinbeck – “As Vinhas da Ira”




Algumas partes da viagem, como era o caso da subida das Montanhas Negras a caminho de Oatman, de que vos falei na última “crónica” , eram feitas de noite, para evitar o sobreaquecimento dos carros… E a chegada a esta placa identificadora da entrada no Estado da Califórnia era vista como uma festa, muito embora ainda houvesse um deserto para atravessar…

O Sol esgotava as terras rochosas, já de si áridas e, em frente, erguiam-se serras caóticas, de cristas quebradas – a muralha ocidental do Arizona. E agora a família fugia ao Sol e à seca. Viajara a noite toda e chegara também de noite às montanhas. Trepara durante a noite as muralhas denteadas e a fraca luz dos faróis errara nas paredes de pedra clara que orlava a estrada. Passou o pico ao anoitecer e desceu vagarosamente através das velhas ruínas pedregosas de Oatman e, quando a madrugada chegou, viu, lá em baixo, o rio Colorado. A viagem continuou até Topock e a família teve de estacionar na ponte, enquanto um guarda da fronteira raspava o papelzinho que havia sido pregado no pára-brisas. Depois, atravessou a ponte e penetrou no deserto selvagem e rochoso. E, embora estivesse mortalmente cansada e o calor matinal fosse aumentando, resolveu parar.

O pai avisou:
- Chegámos … estamos na Califórnia!

John Steinbeck – “As Vinhas da Ira”


Luís Miguel Mira em Crónicas da América

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

OLHAR AS CAPAS


O Caso do Cadáver Trocado

Erle Stanley Gardner
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 291
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Della Street, secretária particular de Perry Mason, fitou o advogado com olhos suplicantes.
- Por favor, chefe!
- Tenho aquele compromisso das dez e emia e antes de receber o individuo quero… - Está bem, não desejo estragar-lhe o dia. De que se trata?

terça-feira, 25 de agosto de 2020

SALAS DE CINEMA DE OUTROS TEMPOS – PARAMOUNT THEATRE, BRISTOL, TENNESSEE / VIRGINIA


De todas as salas de cinema nos Estados Unidos de que já vos falei, o Paramount Theatre, de Bristol, é a mais recente, porque ainda só vai a caminho dos 90 anos de idade.

Fica no nº 518 da State Street, a rua principal da cidade que é, simultaneamente, a fronteira entre os estados de Virgínia e Tennessee. Curiosamente, ficava muito perto dos Armazéns onde tiveram lugar as “Bristol Sessions”, de que ainda há bem pouco tempo vos falei.

Faz parte de um conjunto de “Paramount Theatres” que a “Paramount Corporation” fez construir durante os anos 30 em diversas cidades dos Estados Unidos. O custo total da sua construção foi 210.000 dólares.


Um pequeno parêntesis para vos dizer que estas salas da “Paramount” têm o seu lugar garantido na História do Cinema Americano, porque foi a sua existência que esteve na origem da “Lei Anti-Trust” de 1948, que passou a impedir que a produção e a exibição de filmes estivessem na mão do mesmo proprietário, que poderia garantir, dessa forma, a exclusividade de exibição de determinados filmes em determinadas salas. A partir dessa decisão judicial do Supremo dos Estados Unidos, a “Paramount” teve de se subdividir em duas companhias, a “Paramount Pictures Corporation” para a produção, e a “United Paramount Theatres”, para a exibição, mas sem direito a qualquer tipo de exclusividade.

Voltando ao cinema de Bristol, é um edifício em estilo “Art Deco”, de arquitetura inspirada em alguns trabalhos de Frank Lloyd Wright.

Tinha lugares sentados para 1.200 pessoas e foi inaugurado no dia 21 de Fevereiro de 1931, com uma curta comédia com Carole Lombard e Norman Foster que se chama “It Pays to Advertise”, realizada por Frank Tuttle e hoje completamente esquecida.

Diz-se que o seu interior era muito bonito, todo ele em mistura de estilo “Art Deco” e “Renascimento” e que a principal atração da sala de espetáculos era um enorme órgão “Mighty Wurlitzer”, que viria a ser fortemente danificado em 1954 por ocasião de obras de remodelação para a instalação do “Cinemascope”.


Durante o longo período em que esteve em funcionamento não exibiu apenas filmes, mas também, como era habitual nestes cinemas “de província”, peças teatrais e espetáculos musicais de diversos géneros, nomeadamente com as “big bands” de Tommy e Jimmy Dorsey e Harry James, e com cantores “Country” provenientes do Grand Ole Opry, de Nashville, tais como Tex Ritter, Ken Maynard, Ernest Tubb e Cowboy Copas.

Tal como quase todos os outros grandes cinemas na América, entrou em declínio nos anos 70 e o último filme que teve em exibição foi “Beyond the Poseidon Adventure”, um filme ação de Irwin Allen, em 1979.

Esteve encerrado durante quase 10 anos e depois foram obtidos fundos, nomeadamente junto da população, para a sua remodelação, a qual custou 2 milhões de dólares.

Reabriu em Abril de 1991, com um espetáculo de Tennessee Earnie Ford, um filho da terra, e tem-se mantido em atividade até agora sob a gestão de uma entidade não lucrativa, a “Paramount Fondation”. A sua lotação foi reduzida para 750 lugares, mas todo o restante esplendor do interior se manteve, incluindo um novo órgão “Mighty Wurlitzer”, do qual só existem cerca de 40 exemplares em todos os Estados Unidos.

Desde 1985 integra o “National Register of Historical Places.

Devido à pandemia, encerrou as suas portas no dia 15 de Março do corrente ano.


Mas como existe uma superstição nas gentes do teatro que diz que se todas as luzes de um teatro forem apagadas o mesmo será invadido por fantasmas, foi deixada acessa uma pequena luz no meio do palco, a que chamam “Ghost Light”.

Lá como cá o dinheiro para a Cultura não abunda, e foi lançada uma campanha junto da população para angariação de fundos que permitam suportar os encargos durante esta situação de crise

Entretanto, os espetáculo que foram cancelados estão a ser reprogramados já a partir do próximo mês de Setembro.

Espero, sinceramente, que os possam concretizar...

A seguir, apresento-vos um curto filme para que tenham uma ideia, principalmente na época do mudo, da importância do “Mighty Wurlitzer Organ” nas salas de cinema.


Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

SCOTT AND ZELDA


Quando organizei esta minha última viagem aos Estados Unidos decidi que iria visitar os lugares mais emblemáticos do “Civil Rights Mouvement” e, por isso, não poderia deixar de passar por Montgomery, no Alabama.

Reparei então, por mero acaso, que em Montgomery existia uma Casa-Museu Scott e Zelda Fitzgerald, onde o casal tinha vivido durante alguns meses, entre Setembro de 1931 e Fevereiro de 1932.

Estranha coisa esta - pensei para comigo - de se transformar em museu uma casa onde um casal de celebridades viveu durante tão pouco tempo… Que marca terão eles deixado nessa casa, em tão curta permanência…? Que acontecimentos importantes terão aí ocorrido para que se justifique dar a essa casa a dignidade de museu…?

Ainda por cima quando - vim a sabê-lo mais tarde - Scott Fitzgerald passou uma boa parte desse período ausente em Hollywood a trabalhar no guião cinematográfico de “Red Headed Woman”, deixando Zelda sozinha com Scottie, a filha de ambos, e a sua ama, embora ambas pudessem contar com o apoio da família de Zelda, que vivia na cidade. O casal tinha acabado de regressar aos Estados Unidos vindos da Suíça, onde Zelda tinha passado largos meses internada na sequência de depressões nervosas, e Scott pensou que lhe faria bem estar uns tempos junto da família, tanto mais que o pai dela se encontrava gravemente doente e ela poderia estar perto dele nesses últimos momentos. Veio a falecer dois meses depois, com Scott ausente em Hollywood.


Mas estes pormenores desconhecia-os eu na altura, e limitei-me a pensar que, muito provavelmente, aqueles dois nunca tinham conseguido constituir e partilhar com a sua filha um “lar” acolhedor a que pudessem chamar seu. Viveram sempre em grandes hotéis, nos Estados Unidos e no estrangeiro, em casas de luxo emprestadas por amigos e em casas alugadas, devidamente mobiladas para não dar trabalho, durante períodos relativamente curtos da sua vida.

Nada que se comparasse, por exemplo, a um Faulkner, que viveu em Rowan Oak durante mais de 30 anos.

Assim sendo, seria fatal que uma casa-museu que lhes fosse dedicada tivesse sido uma antiga casa alugada, ou então uma dessas cedidas por amigos, já que a dimensão de um hotel não se justificaria para esse efeito.

Mesmo com alguma suspeição de que tudo poderia muito bem não passar de um mero oportunismo de “turismo cultural” da cidade de Montgomery, no dia previsto lá me meti a caminho do “Scott and Zelda Fitzgerald Museum”, no nº 919 da Felder Avenue, num bairro residencial que me dava a impressão de já ter conhecido melhores dias.

No que respeita a Scott, a Casa-Museu tem aquilo que se poderia esperar: algumas primeiras edições dos seus romances, exemplares de jornais e revistas onde foram publicadas as suas “short stories”, manuscritos, uma máquina de escrever supostamente utilizada pelo casal, alguns exemplares do impecável vestuário que ele usava, um poster de “This Thing Called Love”, de Alexander Hall, filme que viu na véspera de morrer e durante o qual se sentiu mal, e por aí fora...


Mas uma enorme surpresa me iria aguardar no que respeita a Zelda.

Terei de recuar no tempo quase 50 anos para vos conseguir explicar o motivo do meu espanto.

Quando, aí por volta dos meus 20 anos, me comecei a interessar mais a sério pela Literatura Americana dita contemporânea (os Faulkners, os Hemingways, os Steinbecks, os Caldwells, os Fitzgeralds e outros), procurei começar por ler um pouco de cada autor e, para me orientar nessas leituras, recorri a um “Panorama da Literatura Americana do Século XX”, de John Brown, que tinha acabado de ser editado em Portugal pelas “Publicações Dom Quixote” e que ainda mantenho em meu poder.

Mais ou menos na mesma altura, recordo-me de ter lido, também, duas outras “Histórias da Literatura Americana” que a minha cunhada, então recém-licenciada em Letras, me emprestou: uma era a de Luís Eugénio Ferreira, editada pela Arcádia, que mais tarde vim a encontrar num alfarrabista, e a outra era uma edição brasileira cujo autor esqueci.

No que respeita ao papel de Zelda na vida de Scott Fitzgerald, todas elas, no essencial, coincidiam: Fitzgerald tinha sido um escritor extremamente talentoso que, infelizmente para si e para a Literatura, tinha sido desviado do seu mister pela mão de uma mulher leviana que o conduziu a uma vida mundana de ócio e de lazer, levando-o a deixar a escrita para segundo plano. Como se tal não bastasse, nos últimos anos da sua vida fora obrigado a “prostituir-se”, trabalhando em Hollywood como escritor de guiões para conseguir ganhar o dinheiro que lhe permitisse suportar os enorme encargos resultantes dos tratamentos de saúde de uma mulher que entretanto enlouquecera e que esteve internada em asilos de luxo anos a fio, bem como da educação da filha única do casal, internada em colégios de renome.

De certo modo, todas essas opiniões retomavam o que fora escrito por Ernest Hemingway em três venenosos escritos “de memórias” que se reportam ao Outono de 1925 e que fazem parte de “Paris é Uma Festa”, nos quais quer Scott quer Zelda são retratados quase como atrasados mentais: “Scott Fitzgerald”, “Os Falcões Não Repartem Nada” e “Questão de Medidas”.


Não vos quero maçar ainda mais com grandes citações, mas estas são importantes para perceberem a ideia que eu levava na cabeça acerca do Scott Fitzgerald daqueles tempos de Paris e do papel da mulher na vida dele.

Em “Scott Fitzgerald” Hemingway conta como conheceu Scott em Paris, e a determinada altura afirma:

Ele contara-me …. como escrevia aquilo que ele considerava bons contos e que eram naturalmente bons para o Post (Saturday Evening Post, jornal onde eram publicados…) e como depois os alterava submissamente por saber muito bem como efetuar os truques que os convertiam em contos vendáveis para as revistas. Aquilo escandalizou-me. Disse-lhe que considerava tal procedimento uma verdadeira prostituição. Ele concordou comigo, mas acrescentou que tinha de proceder assim desde que pretendesse ganhar com as revistas o dinheiro de que necessitava para escrever livros decentes.” (pág. 119)

Em “Os Falcões Não Repartem Nada” conta como foi convidado, juntamente com Hadley, a sua mulher de então, para jantar em casa dos Fitzgerald, no nº 14 da Rue Tilsitt, e depois comenta a propósito de Zelda, que ele dizia ter olhos de falcão:

Em Zelda, a ressaca da bebedeira era péssima. Na noite anterior, o casal tinha ido a Montmartre e tinham discutido porque Scott não se queria embriagar. Ele decidira - segundo me confiou – trabalhar com afinco e deixar de beber e Zelda tratava-o como se ele fosse um desmancha-prazeres ou um aborrecido” (pág. 139)


Para, mais tarde, acrescentar”:

“(Zelda) tinha ciúmes do trabalho do marido e, quando chegámos a conhecê-los bem, aquilo tornou-se o pão nosso de cada dia. Todas as noites Scott resolvia deixar aquelas festas onde se embriagava, fazer exercício todos os dias e trabalhar com regularidade. Começava de facto a trabalhar , mas, assim que ele se concentrava na sua tarefa, Zelda começava a queixar-se de aborrecimento, e tanto fazia que lá o arrastava para mais uma noite de pândega.” (pág. 140)

E a crónica termina assim, partindo de uma tirada que Zelda lhe lançou:

- Ernest, não acha que Al Jonson é maior do que Jesus?
Naquela altura, ninguém pensou em interpretar aquilo. Era apenas o segredo de Zelda que ela partilhava comigo, da forma por que um falcão pode partilhar qualquer coisa com um homem. Mas os falcões não partilham nada. Scott não tornou a escrever coisa que fosse realmente válida, a não ser depois de ter compreendido que ela estava doida” (pág. 145).

E foi com essa ideia de Zelda no meu espírito que penetrei naquela Casa-Museu: a de uma tontinha, fútil e leviana…

Depois, comecei a passear-me pela Casa e a deparar com factos que não fazia a mais pequena ideia de que tivessem acontecido…


Então a tontinha e inútil Zelda escrevera um romance, “Save Me The Waltz”, publicado em 1932, e estava a trabalhar noutro na altura em que morreu…?

Escrevera e encenara peças teatrais…?

Deixara escritas cartas de uma enorme beleza...?

Pintara quadros de boa qualidade - alguns deles pude ver no próprio no Museu - e expusera-os durante um mês em Nova Iorque, em 1934, embora sem grande sucesso da crítica…?

Fora bailarina de qualidade superior, com propostas para integrar o corpo de bailado de uma importante Companhia italiana…?

Qualquer coisa aqui não me parecia bater certo.

Nessa mesma noite, já no hotel, fui pesquisar à “net” e encontrei referências a uma biografia de Zelda, escrita em 1970 pela americana Nancy Milford, em que toda a história que eu conhecia me surgia virada do avesso…

Afinal a vítima era a pobre Zelda, e Scott o vilão…


Fora Scott quem plagiara partes do “Diário” e de cartas de Zelda e os colocara na boca de personagens do seu primeiro romance, sem qualquer agradecimento ou referência à sua origem…

Fora também Scott quem convencera Zelda a deixar assinar, com o nome de ambos, “short stories” que eram de sua exclusiva autoria...

Fora ainda Scott quem obrigara a sua mulher a reescrever uma boa parte do seu romance, porque a versão inicial abordava factos que ele pretendia reservar para si e para o seu “Tender is the Night”, que já então tinha em curso de escrita…

Fora o mesmo Scott quem, no Sul de França, recusara o divórcio a Zelda e a trancara num quarto, impedindo-a de partir à aventura com o aviador naval francês Edouard Jozan, por quem ela se perdera de amores à primeira vista, levando-a a uma “overdose” de compridos que alguns interpretaram como tentativa de suicídio…

E fora sempre Scott quem contrariara os desejos de Zelda de dar asas aos seus múltiplos talentos e de os expressar de forma artística, seja na Dança, na Pintura, no Teatro ou, como já vimos, na Literatura…

Poderia ir ainda mais longe na apresentação destes alegados exemplos da “tirania” e da “repressão” exercida por Scott sobre Zelda, mas a conclusão a que se pretendia agora chegar com tudo isto é que se a pobre Zelda passou os últimos 20 anos da sua vida mais dentro do que fora de clínicas e hospitais psiquiátricos, muita da responsabilidade se ficou a dever a Scott.

Escusado será dizer-vos que toda esta nova linha de argumentação constituiu uma enorme surpresa para mim e deitava por terra muitas das verdades que tinha por adquiridas em relação à vida daqueles dois.


Como as viagens também servem para tomarmos consciência da nossa ignorância e para procurarmos colmatar ou que ainda for colmatável, decidi de imediato que iria mergulhar mais a sério na vida e na obra de Scott e Zelda Fitzgerald e, depois tiraria as minhas próprias conclusões.

Assim que regressei a Portugal, lancei, literalmente, mãos à obra...

Com vagar e sem qualquer pressão, reli todos os romances de Fitzgerald (são apenas cinco, sendo o último, “The Last Tycoon”, incompleto…), li ou reli as suas principais “short stories” (parece que são cerca de 160 no total…!), li algumas das largas centenas de cartas que escreveu, com destinatários muito variados, li os dois principais livros biográficos que foram escritos acerca dos tempos que passou em Hollywood como escritor de guiões (“Crazy Sundays”, de Aaron Lathan, e “Some Time in the Sun”, de Tom Dardis) e li, ainda, as memórias da “socialite” inglesa Sheilah Graham, sua companheira durante esses últimos anos de vida em Los Angeles.

Isto no que diz respeito a Scott.

No que respeita a Zelda, li o seu romance, “Save Me The Waltz”, em versão francesa, a tal biografia “Zelda”, de Nancy Milford, bem como dois romances que foram escritos por outros autores mas inspirados na sua vida: “Alabama Song”, de Gilles Leroy, de que existe uma tradução portuguesa na “Esfera do Caos Editores, e o mais recente “Z: A Novel of Zelda Fitzgerald”, de Therese Anne Fowler.

No que respeita a ambos, li também o muito interessante álbum “The Romantic Egoists – A Pictural Autobiography From the Scrapbooks and Albums of F. Scott and Zelda Fitzgerald”, que a sua filha Scottie compilou, com a apoio do biógrafo Matthew Bruccoli.

E, para juntar o útil ao agradável, aproveitei também para ver ou rever todos os filmes direta ou indiretamente inspirados na vida e em obras de Fitzgerald.


De tudo quanto selecionei para ler apenas me faltam “Os Desencantados”, de Budd Schulberg, alegadamente inspirado num episódio da vida de Scott em Hollywood, “Clothes For a Summer Night”, uma peça de Tennessee Williams de 1980 baseada na vida do casal, “Beautiful Fools”, o romance de R. Clifton Spargo que aborda a última vez que o casal esteve junto, em Abril de 1939, numa viagem a Cuba que correu muito mal, e a biografia “F. Scott Fitzgerald”, de Matthew J. Bruccoli, considerada a melhor de quantas fora escritas e que, propositadamente, deixarei para o fim para a poder “saborear” com um pouco mais de conhecimento de causa.

Chegados aqui, perguntar-me-ão vocês agora, legitimamente: “Quid juris..?” Afinal, quem tramou a vida a quem…?

Como não vos consigo dar uma resposta objetiva, vou “dar a volta ao texto” com algumas explicações...

No que respeita às acusações a Scott, que acima resumi, parece haver muito de verdade mas também muito de mentira…

É verdade que Scott plagiou Zelda sem o confessar publicamente. E não só a plagiou, como nela se inspirou para muitas das heroínas dos seus romances.

Mas não é menos verdade que ele registava tudo quanto lia e ouvia que pensasse que poderia ter interesse para uma utilização futura.

A sua companheira em Los Angeles, Sheilah Graham, conta-nos que ele se fazia sempre acompanhar de um pequeno bloco onde anotava tudo quanto lhe parecesse interessante, e ela própria afirma ter encontrado em “The Last Tycoon” frases e comentários que se recorda terem sido de sua autoria e que Scott registou e aproveitou para o romance.


Mas Scott não fazia isso apenas com as suas companheiras. Se estivesse num restaurante e na mesa ao lado ouvisse uma frase ou uma expressão que chamasse a sua atenção, registava-a de imediato.

No que respeita ao facto de Scott ter insistido para co-assinar algumas “short stories” exclusivamente escritas por Zelda, ele próprio o explicou de forma clara e tinha tudo a ver com o maldito dinheiro de que tanto necessitavam. É que um texto assinado por ele valeria, no mínimo, o dobro de um assinado exclusivamente por Zelda...

Quanto à obrigatoriedade de alteração de partes do romance “Save Me The Waltz”, parece ter sido verdade… Zelda garantia que na sua versão inicial a qualidade do romance era superior, mas essa comparação é, hoje, impossível de fazer, porque se deu como perdida essa primeira versão do livro.

A história do aviador francês também parece ter sido, pelo menos parcialmente, verdadeira, mas é bem possível que Scott, cujos ciúmes em relação a Zelda eram lendários, tenha sido mais lúcido do que ela e se tenha apercebido do buraco em que a sua mulher se iria meter… Entrevistado muitos anos depois pela biógrafa Nancy Milton, Edouard Jozan teve dificuldade em se lembrar desse “flirt”, o qual, para ele, aparentemente não terá passado de uma mera aventura de Verão no Sul de França…

No que respeita às ambições artísticas de Zelda, embora se saiba que Scott nunca fora um grande entusiasta da aventura do “ballet”, não foi por isso que Zelda deixou de ter o dinheiro necessário para as suas caras lições de dança em Paris, com a professora russa Madame Luboy Egorova, e se não foi mais longe terá sido por outros motivos que não um puro e simples boicote de Scott: por, como lhe disse Madame Egorova logo no final da primeira lição, ter retomado a aprendizagem da dança já demasiado tarde, para o tipo de ambições de “Primeira Bailarina” que tinha e, também, por ter contraído, tempos depois, uma lesão óssea devido ao excesso de treino.

E quanto à Pintura, foi graças ao envolvimento pessoal de Scott junto do seu círculo de amigos em Nova Iorque que Zelda conseguiu concretizar a primeira e única exposição dos seus quadros, em 1934.


Doenças antigas que se acentuaram com a idade…? A morte do pai, a quem, embora ele fosse uma figura distante, se sentia muito ligada..? A do seu irmão preferido, Anthony, pouco tempo depois…? Uma enorme frustração por sentir que teria ficado para trás, nessa espécie de competição que, a determinada altura, parece ter desencadeado com o marido…? A persistente memória de um Amor louco sufocado à nascença…? Tudo isso, em simultâneo…?

Enfim, não sou psiquiatra para tentar perceber o que se terá passado na cabeça de Zelda que a levou à esquizofrenia de que padecia, mas atribuir essa responsabilidade a Scott parece-me manifestamente exagerado. Como também exagerado será dizer que Zelda foi a única responsável pelo alcoolismo de Scott...

Por isso, em relação à vossa pergunta, não sei que responder…

Mas se quiserem mesmo a minha opinião pessoal, hoje penso que aqueles dois se destruíram mutuamente.

Scott já sabia ao que ia, e se namorada minha me dissesse, como Zelda lhe disse a ele, que só se casaria comigo se e quando eu fosse um escritor de sucesso, estávamos conversados, por muito que gostasse dela…

Depois do sucesso do seus primeiro livro, “This Side of Paradise”, Scott deslumbrou-se com a maneira fácil como o dinheiro lhe entrava na conta bancária nesses primeiros anos e embarcou naquela vida de boémia em todos os lugares por onde passaram, nos Estados Unidos, em França, em Itália, talvez menos na Suiça, porque Zelda estava em tratamento...

Aquela vida de alta sociedade constituía, para ele, uma espécie de atração/repulsa a que não conseguiu resistir e que tão bem soube retratar no “The Great Gatsby” e em “Tender is the Night”.

E depois, o círculo vicioso: é preciso dinheiro, escrevam-se “short stories”, mesmo que sejam “lixo”, como tantas que o próprio Scott admitiu ter escrito… São bem pagas, e deixe-se o romance para depois, quando houver maior tranquilidade para o escrever…

Mas as noites loucas seguiam-se umas atrás das outras, e a tranquilidade, essa nunca chegava…

Entre a publicação de “The Great Gatsby” (1925) e a de “Tender is the Night” (1934) decorreram quase 10 anos e Scott só viria a ter alguma tranquilidade forçada no seu último ano de vida, em que a dificuldade em arranjar trabalho bem pago em Hollywood lhe proporcionou maior disponibilidade para essa escrita mais pessoal e para aquele que - estava convencido – seria o melhor dos seus livros e lhe voltaria a proporcionar um merecido sucesso público… E com ele o relançar da sua carreira de escritor. Mas já não iria a tempo...


Bem lá no fundo, Scott Fitzgerald sabia que “there’s no second acts in american lives”. Foi ele próprio quem o escreveu...

Talvez Scott tenha acabado por ser mais lúcido do que Zelda, dando-se conta, mais cedo, do buraco onde tinha caído. Foi nessa altura, por volta de 1936, que escreveu os três desesperados textos de “Crack Up”.

No primeiro entra logo a afirmar que “claro está que a vida é, toda ela, um ato de demolição”…

E no terceiro e último termina deixando cair aquela terrível frase que, segundo reza a lenda, Hemingway nunca lhe perdoou tê-lo escrito:

Já não sinto simpatia por carteiros, merceeiros, chefes de redação, maridos da prima, e a vida agora vai-me ser mais fácil de viver; cave canen*, tenho sempre escrito por cima da porta. Vou tentar ser um animal correto, o mais possível, e olhem: se me atirarem um osso com bastante carne agarrada, quem sabe lá se não sou capaz de vos lamber a mão.

Morreria em 21 de Dezembro de 1940 na sequência de um ataque cardíaco, quando trabalhava afincadamente no “The Last Tycoon” em casa de Sheilah Graham. Tinha, apenas, 44 anos de idade, mas aparentava muitos mais…

Quanto a Zelda, viveria ainda mais 10 anos, mas iria ter, a 10 de Março de 1948, um fim de vida macabro. Morreu queimada num incêndio que assolou uma das alas do Highland Hospital, em Asheville, quando se encontrada fechada à chave num quarto, juntamente com outras pacientes.

Hoje encontram-se os dois juntos no Old Saint Mary’s Catholic Church Cemetery, em Rockville, no Maryland.

Assim vamos teimando, proas contra a corrente, incessantemente cortando as águas, a caminho do passado que não volta”.

Bonito, sem dúvida, signifique isto o que significar...

No original, ainda mais bonito é:

So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past”.

É a última frase de “The Great Gatsby”, que também ele acreditava na luz verde e sonhava com um passado que já não podia recuperar…

E foi também a frase que a filha de ambos fez inscrever em lápide no túmulo dos seus pais.

Não é lá muito original, mas foi a maneira que arranjei para me despedir, por hoje, de Scott e Zelda Fitzgerald...

* Cuidado com o cão, em latim.


PS:

Tradução de “Paris é Uma Festa” por Virgínia Motta (Livros do Brasil, 2014), de “Crack Up” por Anibal Fernandes (Hiena Editora, 1986), e de “The Great Gatsby” por José Rodrigues Migueis (Portugália Editora, s/d).

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

domingo, 23 de agosto de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.


SARAMAGUEANDO


Este é um mural que, até há uma semana, podia ser visto, num edifício abandonado no Campo das Cebolas, perto da Casa dos Bicos sede da Fundação José Saramago.

A notícia lia-a no Público.

 O edifício foi agora demolido para dar lugar a um parque de estacionamento.

Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam.

Estas palavras foram ditas pelo escritor português e apareciam por baixo do desenho de Nark, que há cinco anos, com Ayer, Nomen e Pariz, transformou a fachada do edifício abandonado.

Na altura, a intervenção, cuja ideia partiu da produtora do documentário José e Pilar, contou com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, através da sua Galeria de Arte Urbana.

Tudo foi agora destruído para que no vazio que ficou, surja mais um parque de estacionamento.


Questionados os serviços camarários sobre esta destruição, foi respondido que o graffiti era um projecto efémero.

E acrescentaram: a demolição do edifício estava prevista há muito tempo, no âmbito do Plano de Valorização e Requalificação do Campo das Cebolas, que inclui a construção de um parque de estacionamento por parte da EMEL

Há um tempo largo que tirei estas fotografias.

Ideia para um pequeno texto, tentativa de enquadramento com palavras de Saramago.

Andava em busca das palavras.

Tencionava voltar para obter outros enquadramentos.

Jamais pensei que, como diz a Camara, esta obra era efémera.

O que nos consola e torna seguros, é que efémera nunca será a obra de José Saramago. 

 Pensando bem, não há um princípio para as coisas e para as pessoas, tudo o que um dia começou tinha começado antes, a história desta folha de papel, tomemos o exemplo mais próximo das mãos, para ser verdadeira e completa, teria de ir remontando até aos princípios do mundo, de propósito se usou o plural em vez do singular, e ainda assim duvidemos, que esses princípios princípios não foram, somente pontos de passagem, rampas de escorregamento, pobre cabeça a nossa, sujeita a tais puxões, admirável cabeça, apesar de tudo, que por todas as razões é capaz de enlouquecer, menos por essa.

José Saramago em A Jangada de Pedra.

Texto publicado em 11 de Agosto de 2015