quinta-feira, 27 de agosto de 2020

MOTHER ROAD


A estrada 66 é a rota principal das populações em êxodo. A estrada 66 – a longa faixa de cimento que corta as terras, ondulando para cima e para baixo, no mapa, de Mississipi a Bakersfield – atravessa as terras vermelhas e as terras pardas, galga as elevações, cruza as Montanhas Rochosas, penetra no luminoso e terrificante deserto e, cruzando este, torna a entrar nas regiões montanhosas até alcançar os férteis vales da Califórnia.

A 66 é o caminho de um povo em fuga, a estrada dos refugiados das terras da poeira e do pavor, do trovejar dos tractores, dos proprietários assustados com a invasão lenta do deserto pelas bandas do norte e com os ventos que vêm ululando aos remoinhos do lado do Texas, com as inundações que não traziam benefícios às terras e ainda acabavam com o pouco de bom que ainda possuíam. De tudo isto os homens fugiam e encontravam-se na estrada 66, vindos dos caminhos tributários e das estradas sulcadas de calhas e de marcas fundas de rodas, que cortavam todo o interior. A 66 é a estrada-mãe, a estrada do êxodo.


John Steinbeck, “As Vinhas da Ira”

Contei-vos na última “crónica” que a passagem pela Route 66 me tinha feito recordar o êxodo das populações rurais do midwest devido aos efeitos da seca e do “Dust Blow”. Numa época já de si conturbada, em que se faziam sentir fortemente os efeitos da crise de 1929, tanto a seca, por um lado, como as tempestades de areia, por outro, arrasavam as últimas esperanças de sobrevivência dos pobres camponeses do Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México, Tennessee, … Fortemente endividados à banca ou incapazes de pagar as suas rendas aos grandes proprietários rurais, estas populações foram obrigadas a abandonar as suas terras e a lançarem-se à estrada, na esperança de uma vida melhor, quase sempre nos verdejantes campos da Califórnia. Carregavam as suas velhas carripanas com os poucos bens que tinham conseguido salvar, e lançavam-se à aventura… Mas nem sempre se podiam, dar ao “luxo” de ir de carro… Às vezes não tinham mais do que um simples carrinho de mão, como poderão ver numa das fotografias que vos envio. Ao mesmo tempo, os tractores avançavam pelos campos e deitavam abaixo todas as construções que por lá encontrassem, para impedir aos anteriores ocupantes qualquer veleidade de regresso.

É uma época da História dos Estados Unidos de que sempre gostei muito. Época de extremos, em que o “Sistema” mostrou o seu lado mais negro: a impiedosa ditadura dos bancos e dos grandes “landowners”, a exploração dessa imensa mão-de-obra nos campos da Califórnia, vivendo em condições infra-humanas, a cumplicidade entre as polícias locais e os proprietários rurais para abafar, pela morte se necessário, todas as tentativas de rebelião… Mas foi também, por outro lado, uma época de grandes batalhas sociais na qual veio ao de cima a dignidade de todo um povo, a sua capacidade de união e de solidariedade para lutar com determinação contra essas mesmas adversidades…

Felizmente, foi também uma época que a Arte, com A grande, fixou para a posteridade: na Literatura, através dessa obra-prima de John Steinbeck que foi “As Vinhas da Ira” (1939); no Cinema, não só com a adaptação desse mesmo livro feita por John Ford (1940), mas também com outros filmes que, com as devidas distâncias, navegavam nas mesmas águas, como foi o caso de “Tobacco Road” (1941), do mesmo Ford, de “Our Daily Bread” (1934), de King Vidor, ou “The Southerner” (1945), de Jean Renoir, …; na Música, com as célebres “Dust Blow Ballads”, que Woody Guthrie, fortemente impressionado com o livro de Steinbeck, escreveu entre 1937 e 1941, e que constituem o melhor e mais coerente conjunto de “canções de intervenção” que conheço; finalmente, na Fotografia, através do trabalho dos fotógrafos da “Farm Security Administration” (FSA), que Roosevelt enviou para os campos com um claro intuito de propaganda política. Roosevelt tinha afirmado em 1936, num discurso que ficou célebre, “Vejo um terço da nação mal alojado, mal vestido e mal alimentado”, e contava com o apoio desses fotógrafos para documentarem, no terreno, os graves problemas sociais resultantes da Grande Depressão e justificarem, assim e aos olhos de toda a população, as políticas sociais do New Deal. Alguns desses fotógrafos, como foi o caso de Dorothea Lange, acompanharam sistematicamente essas populações em fuga, concretizando, nessa altura, a parte mais notável de toda a sua obra.




E o que vos proponho agora aqui, à guise de homenagem a esse Povo, é dar voz e imagens a esses autores. Será uma “crónica” com características especiais… De longe a mais longa, mas aquela em que menos irei escrever. As fotografias e os textos de Steinbeck e Woody Guthrie falam bem por si, pelo que me limitarei a enquadrar uma ou outra citação. Preparem-se, então, para essa longa viagem, sabendo que, quando se cansarem, sera fácil salatrem do comoboio a todod o momento…

On the 14th day of April
Of 1935, there struck
The worst of dust storms
That ever filled the sky

You could see that dust storm coming,
The cloud looked death-like black,
And through our mighty nation
It left a dreadfull track

(Woody Guthrie – “The Great Dust Storm”)

Escolhi para vos mostrar uma célebre fotografia de Arthur Rothstein “Dust storm, farmer and sons” (1936), onde vemos um pai e seus filhos a fugir a uma tempestade de areia. Essa mesmo fotografia foi escolhida para a capa do álbum “Dust Blow Ballads sung by Woody Guthrie, da Folkways Records (1964).

That old dust storm killed my family
But it can't kill me, Lord
And it can't kill me

That old dust storm killed my baby
But it can't kill me, Lord
And it can't kill me.

That old landlord got my homestead
But he can't get me, Lord
And he can't get me.

That old tractor got my home, boys
But it can't get me, Lord
And it can't get me

That old pawn shop got my furniture
But it can't get me, Lord
And it can't get me

(Woody Guthrie – “Dust Can’t Kill me”)



Os homens em êxodo rompiam na 66; às vezes um carro solitário, outras vezes, uma pequena caravana. Andavam o dia inteiro vagarosamente pela estrada e, à noite, paravam onde houvesse água. De dia, velhos radiadores expeliam colunas de vapor e frouxas varetas de ligação matraqueavam os ouvidos no seu contínuo martelar. E os homens que guiavam os camiões e os carros sobrecarregados escutavam apreensivos. Quanto falta para chegarmos à cidade mais próxima? Há um verdadeiro terror pelas distâncias entre as cidades. Se alguma coisa se quebra…

John Steinbeck, “As Vinhas da Ira”

(Fotografia de Bem Shan)


E um simples furo de pneu era motivo de angústia e pretexto para grandes vigarices… (fotografia de Dorothea Lange).

Temos de arranjar um pneu novo, mas – Deus do Céu! – eles querem tanto dinheiro por um pneu usado! Eles põem-se a olhar para nós e sabem que a gente tem de viajar de qualquer maneira, que não podemos perder tempo. Então, aumentam o preço.É pegar ou largar! Pensa que eu estou aqui no negócio para me divertir? Estou aqui para vender pneus. Não lhos posso dar de presente. Não tenho culpa nenhuma do que vos aconteceu. Eu também tenho cá as minhas arrelias.

A que distância fica a próxima cidade?

Ontem passaram por aqui quarenta e dois carros, cheios de gente como vocês. De onde vêm eles? E aonde vão?

Bem, a Califórnia é um grande estado.

Mas também não é assim tão grande. Os Estados Unidos juntos não são assim tão grandes como isso. Não há lugar para vocês e para mim, para a sua gente e para a minha, para ricos e para pobres, todos num só país, os ladrões e a gente honesta. Para os esfomeados e para os fartos. Porque não voltam para o sítio de onde vieram?Isto aqui é um país livre… A gente vai para onde quiser.

Isso é o que você pensa! Já ouviu falar das patrulhas de polícia na fronteira da Califórnia? É a polícia de Los Angeles – prende-os e manda-os voltar para trás. Eles dizem: se vocês não vêm para cá com a ideia de comprar terras, não os queremos cá. E dizem: você tem carta de motorista? Deixe ver. Então, rasgam a carta e dizem: sem carta de motorista, você não pode entrar no estado com esse camião.

Mas estamos num país livre!

- Vá atrás disso, vá! Já houve alguém que disse: a liberdade depende da massa que a gente pode pagar por ela.

Mas na Califórnia, eles pagam salários altos. Eu tenho até um impresso em que diz isso mesmo.

Ora! Isso não passa de uma cantiga! Vi gente que regressava de lá. Vocês foram intrujados. Afinal, quer levar esse pneu ou não quer?

John Steinbeck – “As Vinhas da Ira”




Algumas partes da viagem, como era o caso da subida das Montanhas Negras a caminho de Oatman, de que vos falei na última “crónica” , eram feitas de noite, para evitar o sobreaquecimento dos carros… E a chegada a esta placa identificadora da entrada no Estado da Califórnia era vista como uma festa, muito embora ainda houvesse um deserto para atravessar…

O Sol esgotava as terras rochosas, já de si áridas e, em frente, erguiam-se serras caóticas, de cristas quebradas – a muralha ocidental do Arizona. E agora a família fugia ao Sol e à seca. Viajara a noite toda e chegara também de noite às montanhas. Trepara durante a noite as muralhas denteadas e a fraca luz dos faróis errara nas paredes de pedra clara que orlava a estrada. Passou o pico ao anoitecer e desceu vagarosamente através das velhas ruínas pedregosas de Oatman e, quando a madrugada chegou, viu, lá em baixo, o rio Colorado. A viagem continuou até Topock e a família teve de estacionar na ponte, enquanto um guarda da fronteira raspava o papelzinho que havia sido pregado no pára-brisas. Depois, atravessou a ponte e penetrou no deserto selvagem e rochoso. E, embora estivesse mortalmente cansada e o calor matinal fosse aumentando, resolveu parar.

O pai avisou:
- Chegámos … estamos na Califórnia!

John Steinbeck – “As Vinhas da Ira”


Luís Miguel Mira em Crónicas da América

1 comentário:

Seve disse...

A célebre fotografia de Dorothea Lange em que esta tem a mão no queixo e a olhar para o nada com um filho de cada lado a chorar-lhe no ombro é das fotos mais belas e que dizem quase tudo sobre um dos mais belos romances de sempre "As vinhas da Ira", tão bem descrito neste magnífico post.

Essa célebre fotografia retrata igualmente, tal como o livro, e como muito bem é aqui referenciado, uma época negra da História dos Estados Unidos e o lado negro do “Sistema” ,

AS VINHAS DA IRA é mais do que um belo romance é uma obra património da humanidade.

Obrigado Luís Miguel Mira por mais este belo momento de literatura.