sexta-feira, 21 de agosto de 2020

OLHAR AS CAPAS


Os Reinegros

Alves Redol
Publicações Europa-América, Lisboa , Novembro de 1972

-Quer uma beata?
- Não, obrigado.
- Aproveite, que a colheita d’hoje foi boa. Deixaram-me entrar numa leitaria… O caixeiro era um rapazote de boa cara. Vá lá. Olhe que não ofereço par armar. Quando há…
- Já fumei demais.
- Também teve sorte, não?
. Sim, tive.
Acanhava-se de lhe dizer que não era mendigo, parecendo-lhe que isso quebraria aquela camaradagem.
 - Venho aqui todas as noites. Vossemecê onde dorne?
- Onde calha.
- Já foi engatado?... A gente a tratar-se quase por senhoria, tem graça. Desculpa a franqueza. Mas isto entre malta da gandaia vai o tu prà frente. Vê lá, se t’importas…
- Eu não.
- Pois assim é que é direito. O que te parece a revolução?
- Parece-me bem.
- Os republicanos…
- Ganham. Isto é a revolução do povo e onde o povo se mete…
. Já foste aos comícios?
- Porquê?
- É que se vê logo. Falas assim de povo… o povo és tu e sou eu. Julgas que deixamos de dormir aqui por causa disso?
- Tenho a certeza.
- Que idade tens?
- A caminho dos trinta.
- Ainda tens cataratas. A revolução é pra eles.
- Pra eles quem?
- Pròs cartolas. Se fosse para a gente, não era assim. Havia mais sangue.
- Dizem que os mortos já não cabem na morgue…
- Está quieto! És republicano?
- O que queria que fosse? E tu?...
- Anarquista.
- Ah!...
Reinegro levantou-se, indo até à porta, espreitar a noite.
- A manhã já não tarda. Andas há pouco tempo nisto, não?
- Ando. Porquê?
- Vê-se logo. Republicano, e ainda por cima não sabes quando vai amanhecer. A gente, pelo hábito, já sente a manhã. É uma coisa que não se explica; aprende-se com o tempo.

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