domingo, 31 de outubro de 2021

POSTAIS SEM SELO


  «Houve uma altura da minha vida, quando havia cabinas telefónicas, em que eu praticamente conhecia todas as cabinas telefónicas da cidade. Eram pontos de referência para os encontros clandestinos da resistência contra o regime. O pior é que a polícia política também o sabia…»

Mário de Carvalho em entrevista no Mensagem de Lisboa

Legenda: fotografia de uma cabine telefónica retirada do blogue Restos de Colecção.

SARAMAGUEANDO

7 de Fevereiro de 1994

Costumo receber uns livros de capa amarela, habitados por personagens de nomes esdrúxulos, que têm em comum o facto de serem assinados por um rapaz chamado Saramago. Na dúvida se haveria de sacrificar-lhes o meu tempo, face a um antigo volume que levantei do chão, perguntei a um editor meu amigo se tal livro seria merecedor de atenção. Que não, garantiu. Aduzindo argumento demolidor: a sua editora recusara-se a publicá-lo. Com sobejas razões: o escrevente, que usa e abusa de vírgulas, raramente sabe onde colocá-las. Pontos parágrafos, então, nem vê-los. Daria um trabalho dos diabos transformar aquela massa informe de texto em prosa escorreita. Por esta razão, lá foi o original parar a uma editora de comunistas, onde, aliás, o sujeito se acoita, politicamente falando.

Os camaradas fizeram o primeiro frete, dando à estampa um volume com o nome arrevesado de “Levantado do Chão” que, segundo creio, passou completamente despercebido. Para não falar do flop total de outra tentativa, “Memorial do Convento”, de que seguramente ninguém guarda memória. Os editores, certos de que esta aventura lhes apontaria a falência, nem investiram muito no produto: não gastaram uns tostões a ilustrar as capas, produzindo-as em cartão liso de cor desmaiada.

O candidato a escritor poderia ter ficado por aqui. Mas a prova de que o autor não tem o menor sentido de humildade é que reincidiu. Raro é o ano em que não põe cá fora mais volumes de capa amarela, sempre com títulos desenxabidos e enganadores.

Nunca mais me vi livre dele. Por um aniversário, veio-me parar às mãos, camuflada em fitas e celofane, uma “Jangada de Pedra”, que mais não era do que uma narrativa alucinada da experiência vivida por um cão com pavores de tremores de terra. Num Natal couberam-me sete exemplares da “História do Cerco de Lisboa”, que não é história de um cerco nem de Lisboa, mas sim, de um revisor às voltas com uma esquisita sinalefa tida por deleatur. Para não falar do dia em que ofereci a um sobrinho com pendor para as belas artes um “Manual de Pintura e Caligrafia” que nada tinha a ver com pincéis nem caneta. A última afronta, qualquer coisa como “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” é a prova concreta da sua total falha de recursos criativos. Nem plagiar a Bíblia o sujeito sabe. E, mesmo depois dos conselhos do dr. Sousa Lara (“homem vá para casa, leia, estude”), continua a escrever. Continua. Continua.

Como ninguém lhe compra livros, acho que vêm todos parar à minha estante, por via de amigos e familiares que adoram pregar-me partidas – não sei por que é que a editora insiste em publicar as suas mal arrumadas prosas, arruinando-se certamente. Coisas de comunistas.

Além do mais, como escritor, o homem é um perigo. Imagine-se que os seus textos vão parar às escolas. Lá se vai o denodado esforço de Couto dos Santos, de Roberto Carneiro, de Deus Pinheiro, e de outros intrépidos ministros da Educação, para as criancinhas aprenderem o bom português da dr. Edite Estrela.

Aterrador, não é? O pior é que a criatura, ainda por cima, se ri de nós. Não sei porquê. Nunca lhe deram o Prémio Nobel. Vive exilado numa ilha do fim do mundo. Casado com uma espanhola. Como se isto não bastasse, há um montão de anos que está desempregado. Por causa daquele seu mau feitio, a teimosia própria de quem não enxerga de que lado sopra o poder, nunca será funcionário do dr. Pedro Santana Lopes nem presidente da Câmara de Cascais. Bem feita.

Texto da autoria da escritora e jornalista Ângela Caires  transcrito por José Saramago no II volume de Cadernos de Lanzarote.

NOTÍCIAS DO CIRCO

Em Outubro de 2019 o Partido Socialista recusou à esquerda qualquer acordo escrito para a nova legislatura.

Essa esquerda entendia que se devia mexer nas leis laborais de que o PS, há muito e muito tempo, andava a fugir com o cú à seringa. Entendia o governo que mexer nas leis laborais, como a esquerda pretendia – mas o PS não se diz de esquerda ???!!!... – não era prioritário.

Neste meio ano parlamentar, o PS votou mais vezes ao lado do PSD, CDS, PAN e IL do que com, tal como eles dizem os seus aliados parlamentares. A esquerda aprovou muitas das propostas do PS e o PS, em descaminho, votou contra inúmeras iniciativas da esquerda.

Quem não poderia concluir que o PS apenas entendia a esquerda como bengala do governo?

FALA UM AMIGO

Fala um amigo: «Vocês

não vêem que eu

não posso ainda pôr os sonhos para o lado de fora

e trago tudo suspenso há tanto tempo?!»

Fala uma amiga: «Estou

com medo e feliz. Sabes

 como cansa tanto fazer os papéis todos

e só, durante tanto tempo?

Sabes,

o jogo que se torna gratuito

e o olhar necessário

que era o que se queria

se desata nisso?

Se eu também me desato,

o que é? Trago

os meus dias todos aprendidos

e não me arrependo. Mas…

Estou feliz e com medo…»

AntónioManaças em Coisas

sábado, 30 de outubro de 2021

AS FOTOGRAFIAS DO VIAJANTE


 Pedro Laceiras é um restaurante em Cabanas de Viriato.

No agradável espaço exterior, debaixo de esplendorosa sombra, almoçou-se com agrado e gosto.

Nessa esplanada o viajante encontra, à torreira do sol, caixotes com espumantes e vinhos diversos de boas marcas.

Acha estranho.

Pergunta das razões.

Os proprietários, ao desmancharem uma sala de uma habitação, encontraram, debaixo dos degraus de uma escada,  todo este garrafame.

Quantos anos por ali estiveram?

Não se sabe.

Mas há crimes a que não se consegue dar qualquer nome.

CHEGARÁ?

10 de Agosto de 1946

O mar, Breughel, Bach, amigos, e dez reis de saúde… Chegará?

Miguel Torga em Diário, Volume III

OLHAR AS CAPAS


 A Experiência de Ler

Tradução e notas: Carlos Grifo Babo

Capa: José Brandão

Elementos Sudoeste, Porto, Abril de 2003

A crítica literária é tradicionalmente aplicada à apreciação de livros. Qualquer apreciação implícita, relativa à leitura que  se faz desses livros, surge como corolário da apreciação dos próprios livros. O mau gosto é, por assim dizer, o gosto por maus livros.. A minha intenção aqui é determinar o que se obtém pela inversão do processo. Tomemos, pois, por base, a distinção entre leitores ou modos de ler e, por corolário, a distinção entre livros. Tentemos descobrir até que ponto é plausível definir um bom livro como um livro que é lido de determinada maneira e um mau livro que é lido de uma outra.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

POSTAIS SEM SELO


 Se eu voltar algum dia será pelo canto dos pássaros.

Eugenio Montejo

DESPRAZER DESELEGANTE

17 de Maio de 1967

Não te vingues. A vingança é o desprazer deselegante dos homens.

José Gomes Ferreira em Dias Comuns, volume II

NOTÍCIAS DO CIRCO


O orçamento do governo para o ano de 2022 não passou na Assembleia da República.

Claro que não é uma tragédia.

Se assim fosse, Marcelo (que não é presidente pelo meu voto) não sairia do palácio para ir ao multibanco da esquina pagar uma qualquer conta, ou ver o saldo bancário.

Claro que se o ridículo pagasse imposto, o vencimento presidencial não chegaria…

Pouco ou nada interessa a responsabilização de uns e outros, mas adianta dizer que o comité de vigilância, que reúne, excepto aos domingos, no café do bairro, apontou o dedo ao Partido Socialista.

Andaram, estes anos a servir-se do voto da esquerda para aprovar orçamentos e apenas isso. Não que a esquerda andasse a ser enganada, (um dirigente comunista disse ao Diário de Notícias que no Partido nunca houve ilusões relativamente ao governo PS), mas há sempre um tempo em que é necessário mudar de agulha.

Certamente virão eleições lá para Janeiro, mas o panorama político não sofrerá uma mudança que permita pensar em grandes alternativas.

Mas relembrando o poema de FernandoEchevarria, aqui ontem publicado, os vivos ouvem poucamente, ou melhor: não ouvem nada.

A ver vamos, como diz o cego do costume…

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

OS VIVOS OUVEM POUCAMENTE

Os vivos ouvem poucamente. As plantas,
como o elemento aquático domina,
são dadas à conversa. A menor brisa abala
a urna de concórdia estremecida
que, assim, sensível, se derrama
e é solidão solícita.
Os vivos não ouvem nada.
Mas, havendo acedido a essa malícia
de experiência cândida,
os mortos deixam que o ouvido siga
o fluvial diálogo das plantas
umas com outras e todas com a brisa.
Melhor ainda. Quando, nas noites cálidas,
as plantas se sentem mais sozinhas,
os mortos brincam à imitação das águas
inventando palavras de consonâncias líquidas.
E esse amoroso cuidado de palavras
a urna de concórdia vegetal espevita
até que, a horas altas,
a noite, os mortos e as plantas
caiam no sono duma luz solícita.

Fernando Echevarria 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

SE EU VOLTAR ALGUM DIA

Se eu voltar algum dia

será pelo canto dos pássaros.

Não pelas árvores que hão-de partir comigo

ou irão depois visitar-me no Outono,

não pelos rios que, por baixo da terra,

continuarão a falar-nos com suas vozes mais nítidas.

Se no fim regressar, corpóreo ou incorpóreo,

levitando em mim mesmo,

embora nada possa já ouvir na ausência,

sei que minha voz estará ao lado de seus coros,

e voltarei, se hei-de voltar, por eles;

o que foi vida em mim não deixará de celebrar-se,

e eu habitarei o mais inocente dos seus cantos.

 

Eugenio Montejo

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

NOTÍCIAS DO CIRCO

Ao que dizem, o circo pegou fogo e os políticos parece não se entenderem, ou não querem mesmo qualquer entendimento.

Convém que se responsabilizem uns aos outros, mas apenas isso.

Claro, que se houver eleições, o povo terá a sua voz, mas pelas últimas fotografias de grupo, a coisa voltará a não ser famosa.

sábado, 23 de outubro de 2021

POEMA

Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha,
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada

alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar

António José Forte

sexta-feira, 22 de outubro de 2021


PYE  - PATS 7002

Make Me An Island – If You Care A Little Bit About Me

Permitam-lhe que ele desarrume a memória e que, por uma história de nada – ou de tudo? – ponha o Joe Dolan a rodar.

Um café de província, Alfeizerão, junto a uma bomba de gasolina, uma bomba de gasolina da Mobil, que não era como as bombas de gasolina que o imaginário dos filmes americanos lhe transmitiu.

Duas, três mesas, uma jukebox a um canto, todas as sextas-feiras do último mês, de quase quarenta meses de tropa, dez tostões na ranhura da jukebox e o Make Me An Island do Joe Dolan a cantar no sonolento café, 2, 3 gins tónicos a completar o cenário.

Ele que até à data, depois de um milhão de gin-tónicos – chapelada a Mr. Humphrey Bogart – bebidos, em muitos e diversos bares, uns rascas, outros a armar ao fino, terá sempre na memória o sabor daqueles gins.

As circunstâncias fazem milagres e ele sabe que os gins eram merdosos e aproveita para  citar Nuno Júdice:  nada nos faz reviver melhor o passado do que um cheiro que em tempos lhe esteve associado.

É isso.

O gin era marca Bols, a água tónica era Canada Dry, o limão não tinha casca, o dono do café aproveitava as cascas para os martinis, o gelo tirava-o das paredes da geladeira dos gelados Olás, mas nada, que Joe Dolan e o seu Make Me An Island, o saber que, em passo de corrida, o findar da tropa se aproximava não fizessem esquecer.

Terminou a tropa ao bater do meio-dia de 30 de Setembro de 1970.

Apanhou a camioneta azul da carreira dos Claras, chegou a casa, pegou na Aida e zarpou para Os Perús, à Praça do Chile, frango assado, no dizer do escritor e jornalista Rui Cardoso Martins,  os melhores frangos assados do mundo, uma garrafa de tinto Aliança, pudim flan, Antiqua, em balão aquecido, se faz favor, e  ala que se faz tarde para  o 3º anel da Luz, que ainda não era Catedral, ver o Glorioso espetar 8 a 1 no Olimpija, uma rapaziada que em Liubilana, na 1º mão da 1ª eliminatória da Taça dos Clubes Campeões Europeus, tinha cometido a soberba proeza de empatar a um golo.

Para o informe ficar como deve ser:

O árbitro foi o Sr. Queudeville do Luxemburgo e o Glorioso alinhou com José Henrique na baliza, Malta da Silva, Humberto Coelho, Zeca e Toni (Barros entrou aos 80 m), Jaime Graça, Matine, Simões (capitão), Artur Jorge, Torres e Eusébio.

O treinador era o inglês Jimmy Hagan, o garagista.

O pantera negra meteu 5 golos, Zeca, Artur Jorge, Jaime Graça, completaram o placard.

Na jukebox de um café de província, junto a uma bomba de gasolina, Joe Dolan acabou de soltar os últimos versos take me and break me and make me an island, I'm yours.

Ainda sente o último gole de gin antes de se pôr a caminho para o último recolher do dia, no RI 5 das Caldas da Rainha, a mesma porta de armas por onde, 42 meses depois, por um 16 de Março, um grupo de militares saiu, a caminho de Lisboa, para aquilo que, ainda hoje, ninguém sabe explicar muito bem o que foi.

Um ensaio para o 25 de Abril, dizem os que pormaiores querem abreviar.

Sing again, Joe!

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

O QUERER E O PODER

Frases de um texto de Gonçalo M. Tavares publicado na Granta nº 2: Breves Notas Sobre o Poder:

«Gosto da ideia de alguém chegar à cabeça de outro, bater três vezes antes de entrar e depois dizer: por favor, um texto sobre o poder.

Há os homens fortes nos dias mansos, e há os homens fortes nos dias fortes.

O dia médio é manso ou o dia médio assusta, exige, põe problemas, ataca? Eis uma das questões.

De novo. O mundo não é assim tão complicado: levantas os olhos, baixas os olhos, esticas o braço, és tocado.

A um milímetro do forte poder, a fraca fraqueza.

A força está, em potência, em todo lado ao mesmo tempo, tal como Deus.

E a fraqueza está também em todo o lado ao mesmo tempo, tal como Deus.»

Na contracapa da revista, uma citação do Padre António Vieira:

«O querer, e o poder, se divididos são nada, juntos, e unidos são tudo. O querer sem o poder é fraco, o poder sem o querer é ocioso, e deste modo divididos são nada. Pelo contrário o querer com o poder é eficaz, o poder com o querer é activo, e deste modo juntos, e unidos são tudo.» 

TAMBÉM EU MORRI COM ELES

14 de Junho de 2001

Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço.

Manuel António Pina em Crónica, Saudade da Literatura

NEVE NO RIO

Sobre mil colinas, nem um voo de ave.

Em dez mil veredas, vestígio algum de passos.

Uma barca solitária, um velho de capa e chapéu de palha,

Pescando, solitário, na neve do rio gelado.

Liu Zongyuan em Rosa do Mundo

Tradução de Gil de Carvalho

terça-feira, 19 de outubro de 2021

POSTAIS SEM SELO


Um homem só está vivo enquanto se projecta no futuro.

Mário Sacramento em Diário

É DIFÍCIL DIZER O QUE SINTO

Os primeiros dias do ano de 1968, trouxeram para Mário  Sacramento a morte de seu pai no dia 16 de Janeiro. O Diário, durante alguns dias, regista essa morte.

«É difícil dizer o que sinto. Um Pai é sempre um Pai. Mas o horror que era a sua vida, quantas vezes me fez desejar – por ele – a sua morte? Cego há vinte e tal anos, surdo há não sei quantos, ouvindo apenas, e a custo, com um aparelho de prótese auditiva, conservando um amor feroz à vida que nunca o deixou resignar-se ou dispor-se a atentar contra ela, sofrendo e fazendo sofrer… Solidão total! Agarrado ao aparelho de transmissão-escuta de radioamador, o seu frenesim de homem que fora o mais que é possível extrovertido enchia os dias de allos-allos infatigáveis! Que espanto a vida! Como é possível querer-lhe alguém deste modo, mesmo no abismo da détresse!»

Uma frase tirada do contexto:

«Por qualquer ponta que a tomemos, a morte está sempre errada.»

Um pormenor tirado também do contexto:

«Três radioamadores de Coimbra deslocaram-se de propósito para estarem apenas um minuto connosco! É mais fácil unir os homens do que muitos cuidam! Disseram-me: Era uma voz que nós conhecíamos – e deixámos de ouvir…»

Ainda uma outra frase solta:

«Um homem só está vivo enquanto se projecta no futuro.»

AS FOTOGRAFIAS DO VIAJANTE


A Câmara de Carregal do Sal assumiu, em Maio de 2020, e por um período de dez anos, a tutela da Casa do Passal.

A Câmara de Carregal do Sal receberá 300.000 euros do Ministério da Cultura, em três anos, para a gestão e funcionamento da musealização da antiga residência do cônsul Aristides de Sousa Mendes. 

Fechada ao público há quase 50 anos, sofreu uma intervenção nas paredes exteriores e cobertura em 2014.

 Ao passar por Cabanas de Viriato, o viajante olhou a casa fechada onde nasceu e viveu Aristides Sousa Mendes.


Nesta fotografia poderá ver-se no muro e a casa, uma escultura de Cristo na cruz.

Em conversa com a vizinhança deu para perceber que no interior da casa nem tudo estará nas melhores condições e a ruína de algumas salas deverá ser uma constante. 

Por aqueles lados, as autarquias são mais lestas em colocarem rotundas do que realizar outro tipo de obras, e até poderá acontecer não se saber muito bem por onde anda o dinheiro, que o governo, protocolarmente, diz ter cedido à autarquia.


A última fotografia o viajante tirou-a do alto do Miradouro de Cabanas de Viriato, uma outra perspectiva da casa e, um tanto ou quanto ao longe, avista-se a Serra da Estrela.

O viajante não sabe se voltará àqueles lados, mas se por acaso voltar, gostaria de olhar os interiores da casa devidamente restaurados, algo que há muito já deveria ter acontecido.

ARISTIDES SOUSA MENDES NO PANTEÃO


 Aristides de Sousa Mendes, antigo Cônsul-Geral de Portugal em Bordéus, recebe hoje, em Lisboa, honras de Panteão Nacional.

No início da II Guerra Mundial, à revelia de Salazar, o diplomata concedeu milhares de vistos a judeus e outros refugiados.

Os países que se mantinham neutros face à guerra evitavam qualquer conflito com a Alemanha e muitos consulados limitavam os vistos ou encerravam as portas. Para controlar a situação, Salazar enviou a todos os agentes diplomáticos uma circular que determinava a proibição da concessão de vistos a quaisquer refugiados judeus, exilados políticos bem como outros cidadãos.

Entre salvar vidas ou desobedecer ao governo, Sousa Mendes não hesitou.

Obrigado a voltar a Portugal, Sousa Mendes foi demitido do cargo e ficou na miséria, com a sua numerosa família. Morreu na pobreza em 03 de Abril de 1954, no Hospital dos Franciscanos, em Lisboa.

Em 1967, foi reconhecido pelo instituto Yad Vashem, memorial dos mártires e heróis do Holocausto, como um Justo entre as Nações.

Em 1988 a Assembleia da República aprovou a reabilitação de Aristides Sousa Mendes no cargo de Cônsul.

No dia 3 de Abril de 2017, o Presidente da República condecorou o Cônsul com a Grã Cruz da Ordem da Liberdade.

Na agenda da cerimónia está o descerramento de uma placa simbólica na Sala 2, onde se encontram sepultados Humberto Delgado, Sophia de Mello Breyner,  Aquilino Ribeiro e Eusébio.

A decisão de não trasladar o corpo de Aristides de Sousa Mendes para Lisboa foi tomada pelo Parlamento, de modo a respeitar o desejo do próprio ao querer ficar sepultado em Carregal do Sal, sua terra natal.

LEIO


Leio o amor no livro
da tua pele;
demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio
das vogais, num breve obstáculo
de consoantes, em que os meus dedos
penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos. Desfolho
as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar
de palavras que se
juntam, como corpos, no abraço
de cada frase. E chego ao fim
para voltar ao princípio, decorando
o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele.


Nuno Júdice

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

POSTAIS SEM SELO


 Pormenor do catálogo da Tinta-da-China.

CONVERSANDO

Quarenta anos sem Adriano Correia de Oliveira.

É bom que os mortos regressem, mas sem alvoroço.

Como disse Eduardo Prado Coelho sobre Fernando Echevarria:

«Regressam como quem regressa ao fim da tarde, e tudo se passa numa espécie de paisagem rural de sinos e lareiras. Ou, às vezes, nas ruas amaciadas da cidade – mas como se o ruído se tivesse retirado, e ficasse apenas o pacífico contorno nas imagens.»

Hoje, relendo este texto do Eduardo sobre Fernando Echevarria, (o livro é de Abril de 1994), interrogo-me como de imediato não fui em busca dos seus livros. Não é tarde demais mas o tempo perdido não volta e muitas outras coisas perdi não lendo Echevarria.

Teria eu lido, com olhos de ver, os textos do Eduardo?

«Para falar de tudo isto seria preciso que eu me debruçasse amorosamente sobre a teia de cada um destes poemas. É um trabalho que vale a pena. Afinal de contas, esta poesia só pode ser assim. Apenas um exemplo:

É mais fácil sentar-se quando os mortos

predominam à volta. Sem os vermos,

a escura transparência dos seus olhos

prepara o espaço onde fiquemos sendo

atenção a escoar-se. Mas de corpo

inteiramente dado à paz do peso.

Chamam a isto ficar alguém absorto.

Porque, enquanto se parte pelo espaço dentro,

o volume gravita de tal modo

que a alma se ergue. E um lugar intenso

fica pairando. E ver, então, é próximo

e sentar-nos no imóvel azul do pensamento.»

ÀS VEZES, ESCREVE

13 de Março de 1992

«Fernando Echevarria: escrevera sobre ele há muitos anos, ainda nas páginas da Seara Nova, ignorando quem era e o que fazia. Houve um verso que ficou (há palavras que atravessam a minha vida, vá lá saber-se porquê» «e sangue adelgaçado em alegria» (de novo, o sangue, reparaste?). Depois, muitos anos depois, houve um jantar e uma amizade discreta (com o Fernando e a Flor)). É um homem de rosto concentrado e silenciosos que gosta de algumas coisas simples e importantes, como música, vinhos e poesia. Tem uma espantosa sensibilidade `*a forma das palavras e anda por Paris como um clandestino de samarra que tem por missão acender entre os humanos pequenos nichos de respiração e transparência. Por vezes, quando passo de carro ao fim da tarde pelos cais, vejo-o voltado para si e aberto para os outros, num café junto ao Sena: um livro, um caderno, um olhar tranquilo. Às vezes, escreve.»

Eduardo Prado Coelho em Tudo o Que Não Escrevi Volume II

MAIS BANHA-DA-COBRA

Paulo Rangel, que, na semana passada, se candidatou à liderança do PSD, acredita que tem condições para vencer as próximas legislativas.

Apareceu dizendo que somos uma sociedade que é «aristocrática, tipicamente elitista, com grande resistência à mobilidade e à ascensão social.» e ainda, como a descoberta da pólvora sem fumo, que «Portugal é um país pobre, profundamente desigual, sem igualdade de oportunidades, onde o elevador social só funciona para pessoas com capacidades excecionais, mas não serve as cidadãs e os cidadãos médios que arrancam dos níveis mais baixos da sociedade.»

Sabemos que ele vive por Bruxelas e Estrasburgo, que não temos uma vida fácil, é certo, mas que era muito pior quando o PSD, coligado com o CDS, foi governo.

O problema do PSD é que não tem lugar político.

Quando nasceu, existia o Partido Socialista, quando agora canta estas loas, a Direita Liberal de Cotrim Figueiredo ocupa-lhe o espaço.

Rangel já não fala em social-democracia, diz-se liberal.

Dizem ali no café do bairro, que o discurso de candidatura que agora fez, é quase uma cópia do prospecto que a múmia-de-Boliqueime-que-não-sabe-comer-bolo-rei, bolsou no Expresso».

Os videirinhos são como a formiga branca...

O UNICÓRNIO

É o mais solitário, o mais esquivo,

o mais sonhador dos animais,

o unicórnio – a cadência dos versos

guiando-lhe os passos. Alguns

dizem tê-lo avistado ao crepúsculo

da noite, aproximando-se apenas

de raparigas e rapazes virgens

ainda. Não sei de quem o tenha

acariciado. Há os que pensam ser,

graças ao corno desmesurado

e afrontoso da sua virilidade,

encarnação do demónio. Talvez por isso,

os homens mal lhe pressentem o cheiro

atiçam-lhe raivosos os seus cães.

Eugénio de Andrade de Os Lugares do Lume em Poesia

domingo, 17 de outubro de 2021

OLHAR AS CAPAS


Granta

Nº 2

Direcção e Editorial: Carlos Vaz Marques

Textos de José Eduardo Agualusa, Miguel Esteves Cardoso, Hélia Correia,

                 Afonso Cruz, José Gardeazabul, Luísa Costa Gomes, Ana Teresa

                 Pereira, João Pina, Raquel Ribeiro, Gonçalo M. Tavares

Capa: João Pina

Edições Tinta-da-China, Lisboa, Outubro de 2013

Durante muito tempo não quis saber do Ochoa, precisamente porque o meu trabalho não era sobre política. Mas houve um escritor que um dia me disse: «Para compreender a maneira como Cuba olha para Angola se materializava naquela obsessão pelo Ochoa que ainda existe na sociedade cubana. O trauma não é Angola, ou a guerra: o trauma é terem fuzilado aquele homem, filmado o julgamento, transmitido diariamente na televisão como um reality show sobre um crime e o seu castigo, a autocritica, o mea culpa, peito aberto às bals. Os militares do Ministério do Interior de Camaguey só tinham medo que eu fizesse perguntas sobre o Ochoa, nem queriam saber de Angola. Quem me teria denunciado? Talvez nunca venha a sbar, mas sei agora que a minha teoria se concretizou ali, diante do Freddy e do Nicoklai.

Dias depois de tudo, li assim, num verso do poeta cubanoo Carlos Esquivel (que também esteve em Angola): «Nunca vuelvas donde fuiste feliz, porque es peligroso ser feliz dos veces.» E eu, que fora a Cuba tantas vezes desde 2005, primeiro deslumbrada, depois desiludida, cansada de tanto sorrir – aprendera finalmente a lição.

Raquel Ribeiro do texto «É Perigoso Feliz Duas Vezes»

Nota do editor: Arnaldo Ochoa foi um alto general do regime cubano que acabou fuzilado, acusado de tráfico de droga, de diamantes, e de marfim, e de ligações com Pablo Escobar, na Colômbia.

sábado, 16 de outubro de 2021

ADRIANO




Todos os países esquecem gente.

Uns mais do que outros.

Certamente o nosso é dos que mais esquece.

Adriano Correia de Oliveira morreu no dia 16 de Outubro 1982.

Nas efemérides redondas aparecem sempre os elogios e as carpideiras.

O resto dos tempos é um enorme e angustiante silêncio.

A saudade é um luto, a memória um tempo que passa e sempre alguém que diz não.

Adriano foi o mais autêntico intérprete de um país que esteve em guerra, um país votado ao abandono, à miséria, à frustração, mas um país onde as suas gentes, num canto qualquer do seu ser, cuidaram de guardar um naco de esperança.

Abril concretizou essa esperança.

Durou pouco, mesmo muito pouco.

Ao longo dos anos têm-nos sonegado essa esperança.

Hoje, claramente, sabemo-lo.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

RELACIONADOS

Luís Miguel Queiroz que escreveu o obituário de Fernando Echevarria no Público de 6 de Outubro, colocou em título: «Morreu o mais filosófico dos poetas portugueses.»

Outras palavras:

Ao longo de seis décadas ergueu uma das mais sólidas e singulares obras da poesia portuguesa contemporânea; na dedicação missionária à poesia, talvez só o possamos aproximar de António Ramos Rosa; no seminário de Astorga, em Espanha, estudou teologia e filosofia e estava destinado ao sacerdócio mas desistiu  da vocação religiosa ou talvez a tenha cumprido de outro modo; em 1967 é um dos fundadores da LUAR de Palma Inácio e acerca dessa actividade política manteve sempre uma grande discrição.

A VELHICE É UM VENTO

A velhice é um vento que nos toma
no seu halo feliz de ensombramento.
E em nós depõe do que se deu à obra
somente o modo de não sentir o tempo,
senão no ritmo interior de a sombra
passar à transparência do momento.
Mas um momento de que baniram horas
o hábito e o jeito de estar vendo
para muito mais longe. Para de onde a obra
surde. E a velhice nos ilumina o vento.

Fernando Echevarria

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

POSTAIS SEM SELO


 Tudo isto se passou há muito tempo mesmo o que acaba de acontecer agora.

António Lobo Antunes

NOTÍCIAS DO CIRCO

Fernando Medina renunciou ao cargo de vereador no próximo executivo camarário de Lisboa. Por arrasto, ou o que quer que seja, também renunciam quatro-independentes-quatro que estavam na lista. Esta gente irá ser substituída por militantes do Partido Socialista.

«Julgo que é esta a solução que melhor serve os interesses da cidade, o funcionamento das reuniões do executivo da autarquia e a capacidade de a oposição camarária se concentrar no futuro e não no passado», escreveu Medina.

Nunca gostei do personagem Medina e da sua actuação como presidente da Câmara.

Acreditem:

Detesto ter razão!

Não tarda aí um lugarzinho no executivo...

NÃO REPARAR NAS COISAS

15 de Agosto de 1975

Às vezes reparo que já não reparo nas coisas: a praia ao meio-dia, o sol da tarde nas árvores, o silêncio no breve ramalhar dos pinheiros. E então penso que a vida se me está estabelecendo noutro plano, na banalidade, no esquecimento. Deve ser por isso que cada idade tem o seu absoluto de ser. Deve ser por isso que não há loucura para os doidos nem infância para as crianças. Nem patetice para os velhos.

Vergílio Ferreira em Conta-Corrente Volume I

ALFABETO DO MUNDO

Em vão me demoro a soletrar

o alfabeto do mundo.

Leio nas pedras um escuro soluço,

ecos afogados em torres e edifícios,

indago a terra com o tacto

cheia de rios, de pausagens e cores,

mas engano-me sempre ao copiá-los.

Preciso de escrever cingindo-me a um risco

sobre o livro do horizonte.

Desenhar o milagre desses dias

que flutuam envoltos na luz

e se desprendem em cantos de pássaros.

Quando na rua os homens que vagueiam

do seu rancor à sua fadiga, matutando,

se me revelam inocentes mais que nunca.

Quando o batoteiro, a adúltera, o malandro,

os mártires do ouro ou do amor

são só signos que nunca li bem,

que ainda não consigo anotar em meu caderno.

Quanto eu queria ao menos um instante

que esta página febril de poesia

gravasse em sua transparência cada letra:

o o do ladrão, o t do santo,

o gótico ditongo do corpo e seu desejo,

com a mesma escrita do mar nos areais,

a mesma cósmica piedade

que a vida desdobra aos meus olhos.

Eugenio Montejo em Rosa do Mundo

Tradução de José Bento

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

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Estas narrativas de naufrágios da época das conquistas, escolhidas e adaptadas por António Sérgio, bem como alguns destes livros apresentados na contra  capa de «História Trágico-Marítima», terão sido as minhas primeiras leituras. 

Teria então uns 8/10 anos. 

Daqui passaria para o Emílio Salgari, Júlio Verne, Walter Scott.

Havia o futebol na rua, outras brincadeiras e estas leituras.

Hoje, as vivências dos miúdos de 8/10, são bem diferentes.

Já não olharei o futuro destes miúdos e não consigo - ou não quero? - imaginar como será.

OLHAR AS CAPAS


 História Trágico- Marítima

Narrativas de naufrágios da época das conquistas

Adaptação de António Sérgio

Capa e ilustrações de Martins Barata

Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa s/d

Vou contar-vos a história dos que embarcaram no galeão grande «S. João» quando saiu da Índia em princípios de Fevereiro de 1552.

Nos portos de Coulão e de Cochim recebeu o navio a pimenta com que devia de regressar a Portugal. Não se pode dizer que fosse muita: não passava, com efeito, de uma dúzia de milhares de quintais; mas a carga ficou ainda demasiada, pelas outras mercadorias que se embarcaram. Foi este excesso nos carregamentos uma das grandes causas de tantos naufrágios. Junte-se o descuido na construção das naus, e no caso do «S. João», o péssimo estado em que se achavam as velas.

HABITAR UMA MEMÓRIA

2 de Fevereiro de 1994

Habitamos fisicamente um espaço, mas, sentimentalmente, habitamos uma memória. Quando precisei de descrever o último ano da vida de Ricardo reis, tive de voltara atrás cinquenta anos na minha vida para imaginar, a partir das minhas recordações daquele tempo, a Lisboa que teria sido a de Fernando Pessoa, sabem de antemão que em pouquíssimo poderiam coincidir duas ideias de cidade tão diferentes; a do adolescente que eu fui, fechado na sua condição social e na sua timidez, e a do poeta lúcido e genial que frequentava, como seu direito de natureza, as regiões mais altas do espírito. A minha Lisboa foi sempre uma Lisboa de bairros pobres, quando muito remediados, e se as circunstâncias me levaram, mais tarde, a viver noutros ambientes, a memória mais grata e mais ciosamente defendida foi sempre a de Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa de gente de pouco ter e muito sentir, ainda rural nos costumes e na ideia que fazia do mundo.

José Saramago em Cadernos de Lanzarote Volume II