quarta-feira, 13 de outubro de 2021

HABITAR UMA MEMÓRIA

2 de Fevereiro de 1994

Habitamos fisicamente um espaço, mas, sentimentalmente, habitamos uma memória. Quando precisei de descrever o último ano da vida de Ricardo reis, tive de voltara atrás cinquenta anos na minha vida para imaginar, a partir das minhas recordações daquele tempo, a Lisboa que teria sido a de Fernando Pessoa, sabem de antemão que em pouquíssimo poderiam coincidir duas ideias de cidade tão diferentes; a do adolescente que eu fui, fechado na sua condição social e na sua timidez, e a do poeta lúcido e genial que frequentava, como seu direito de natureza, as regiões mais altas do espírito. A minha Lisboa foi sempre uma Lisboa de bairros pobres, quando muito remediados, e se as circunstâncias me levaram, mais tarde, a viver noutros ambientes, a memória mais grata e mais ciosamente defendida foi sempre a de Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa de gente de pouco ter e muito sentir, ainda rural nos costumes e na ideia que fazia do mundo.

José Saramago em Cadernos de Lanzarote Volume II

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