2 de Fevereiro de 1994
Habitamos fisicamente um espaço, mas, sentimentalmente,
habitamos uma memória. Quando precisei de descrever o último ano da vida de
Ricardo reis, tive de voltara atrás cinquenta anos na minha vida para imaginar,
a partir das minhas recordações daquele tempo, a Lisboa que teria sido a de
Fernando Pessoa, sabem de antemão que em pouquíssimo poderiam coincidir duas
ideias de cidade tão diferentes; a do adolescente que eu fui, fechado na sua
condição social e na sua timidez, e a do poeta lúcido e genial que frequentava,
como seu direito de natureza, as regiões mais altas do espírito. A minha Lisboa
foi sempre uma Lisboa de bairros pobres, quando muito remediados, e se as
circunstâncias me levaram, mais tarde, a viver noutros ambientes, a memória
mais grata e mais ciosamente defendida foi sempre a de Lisboa dos meus primeiros
anos, a Lisboa de gente de pouco ter e muito sentir, ainda rural nos costumes e
na ideia que fazia do mundo.
José
Saramago em Cadernos de Lanzarote
Volume II
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