7 de Fevereiro de 1994
Costumo receber uns livros de capa
amarela, habitados por personagens de nomes esdrúxulos, que têm em comum o
facto de serem assinados por um rapaz chamado Saramago. Na dúvida se haveria de
sacrificar-lhes o meu tempo, face a um antigo volume que levantei do chão,
perguntei a um editor meu amigo se tal livro seria merecedor de atenção. Que
não, garantiu. Aduzindo argumento demolidor: a sua editora recusara-se a
publicá-lo. Com sobejas razões: o escrevente, que usa e abusa de vírgulas,
raramente sabe onde colocá-las. Pontos parágrafos, então, nem vê-los. Daria um
trabalho dos diabos transformar aquela massa informe de texto em prosa
escorreita. Por esta razão, lá foi o original parar a uma editora de
comunistas, onde, aliás, o sujeito se acoita, politicamente falando.
Os camaradas fizeram o primeiro frete,
dando à estampa um volume com o nome arrevesado de “Levantado do Chão” que,
segundo creio, passou completamente despercebido. Para não falar do flop total
de outra tentativa, “Memorial do Convento”, de que seguramente ninguém guarda
memória. Os editores, certos de que esta aventura lhes apontaria a falência,
nem investiram muito no produto: não gastaram uns tostões a ilustrar as capas,
produzindo-as em cartão liso de cor desmaiada.
O candidato a escritor poderia ter
ficado por aqui. Mas a prova de que o autor não tem o menor sentido de
humildade é que reincidiu. Raro é o ano em que não põe cá fora mais volumes de
capa amarela, sempre com títulos desenxabidos e enganadores.
Nunca mais me vi livre dele. Por um
aniversário, veio-me parar às mãos, camuflada em fitas e celofane, uma “Jangada
de Pedra”, que mais não era do que uma narrativa alucinada da experiência
vivida por um cão com pavores de tremores de terra. Num Natal couberam-me sete
exemplares da “História do Cerco de Lisboa”, que não é história de um cerco nem
de Lisboa, mas sim, de um revisor às voltas com uma esquisita sinalefa tida por
deleatur. Para não falar do dia em que ofereci a um sobrinho com pendor para as
belas artes um “Manual de Pintura e Caligrafia” que nada tinha a ver com
pincéis nem caneta. A última afronta, qualquer coisa como “O Evangelho Segundo
Jesus Cristo” é a prova concreta da sua total falha de recursos criativos. Nem
plagiar a Bíblia o sujeito sabe. E, mesmo depois dos conselhos do dr. Sousa
Lara (“homem vá para casa, leia, estude”), continua a escrever. Continua.
Continua.
Como ninguém lhe compra livros, acho que
vêm todos parar à minha estante, por via de amigos e familiares que adoram
pregar-me partidas – não sei por que é que a editora insiste em publicar as
suas mal arrumadas prosas, arruinando-se certamente. Coisas de comunistas.
Além do mais, como escritor, o homem é
um perigo. Imagine-se que os seus textos vão parar às escolas. Lá se vai o
denodado esforço de Couto dos Santos, de Roberto Carneiro, de Deus Pinheiro, e
de outros intrépidos ministros da Educação, para as criancinhas aprenderem o
bom português da dr. Edite Estrela.
Aterrador, não é? O pior é que a
criatura, ainda por cima, se ri de nós. Não sei porquê. Nunca lhe deram o
Prémio Nobel. Vive exilado numa ilha do fim do mundo. Casado com uma espanhola.
Como se isto não bastasse, há um montão de anos que está desempregado. Por
causa daquele seu mau feitio, a teimosia própria de quem não enxerga de que
lado sopra o poder, nunca será funcionário do dr. Pedro Santana Lopes nem
presidente da Câmara de Cascais. Bem feita.
Texto da autoria
da escritora e jornalista Ângela Caires
transcrito por José Saramago no II volume de Cadernos de Lanzarote.
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