terça-feira, 31 de janeiro de 2023

POSTAIS SEM SELO


 Partir é tudo o que do céu sabemos, e do inferno basta aqui.

Emily Dickinson

Legenda: fotografia do Arquivo Imagem Global

O OUTRO LADO DAS CAPAS


 Este livrinho regista os discursos que foram proferidos no Porto, em Janeiro de 1969, por ocasião do 78º aniversário do 31 de Janeiro de 1891.

A Coordenação e edição pertence a Júlio Sereno Cabral e estão incluídos onze discursos proferidos por: Óscar Lopes, Joaquim Felgueiras, Velosos de Pinho, Ribeiro da Silva, Armando Bacelar, Mário Sacramento, Vergínia Moura, Alexandre Ferreira Barros, Fernanda Gonçalves, Mário Brochado Coelho.

Trata-se de uma Edição de Autor, sem indicação de data, mas supõe-se que seja Março de 1970. No prefácio, Sereno Cabral lembra Mário Sacramento que morreu a 27 de Março de 1969 e, por motivo de doença, não esteve presente nas comemorações do 31 de Janeiro desse ano, mas enviara uma mensagem que faz parte do livro.

Como epígrafe do livro, uma frase de Mário Sacramento:

«A terra de ninguém só dá cardos, se é que os dá.»

OLHAR AS CAPAS


 A Revolta de Ontem Nas Palavras de Hoje

Coordenação e edição de Júlio Sereno Cabral

Textos de Óscar Lopes, Joaquim Felgueiras, Velosos de Pinho, Ribeiro da Silva,

                  Armando Bacelar, Mário Sacramento, Virgínia Moura, Alexandre

                  Ferreira Barros, Fernanda Gonçalves, Mário Brochado Coelho

Edição de Autor, Porto s/d

A República está por fazer, como em 31 de Janeiro de 1891! Não basta retirar um rei e pôr nesse mesmo trono outro homem, para se fazer a República. É nosso dever lutar por ela, hoje como ontem. E só a unidade pode vencer a opressão!

(Do discurso de Mário Sacramento).

DUAS VEZES ME FINDEI ANTES DO FIM

Duas vezes me findei antes do fim –

Mas ainda estou pra ver

Se lá na Imortalidade

Isto torna a acontecer

 

Por forma tão medonha e deseperada

Como as duas que sofri.

Partir é tudo o que do céu sabemos,

E do inferno basta aqui.

Emily Dickinson em 80 Poemas

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

QUOTIDIANOS

O mês de Janeiro do ano que corre quase a despedir-se – adeus, adeus, adeus… - e ele ainda não veio aqui lamentar qualquer coisinha sobre os ódios aos meses de Janeiro e Fevereiro que o avô, em tempos de meninice, lhe foi transmitindo e ele tem arrastado por uma vida quase a bater os 78 anos e quando disto fala, nunca se esquece de ir buscar o velho Eugénio:

«Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados.»

Curiosamente, o avô nasceu no dia 6 de Fevereiro de 1883 e morreu no dia 27 de Fevereiro de 1969.

domingo, 29 de janeiro de 2023

DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM...


Ao qu’isto  chegou!

O circo político português é um amontoado de absurdos que não foge ao absurdo em que o país se transformou.

 Os disparates são tantos que não há mãos a medir, o único problema é por onde começar.

Por agora, fujo às notícias, e começo com um poema da Ana Hatherly.

O poema chama-se Balada do País Que Dói:

 

O barco vai

o barco vem

 

português vai
português vem

 

o corpo cai
o corpo dói

 

português vai
português cai

 

o barco vai
o barco vem

 

português vai
português vem

 

o país cai
o país dói

 

o tempo vai
o tempo dói

 

português cai
português vai
português sai
português dói

 

1.

Quanto vai custar a Jornada Mundial da Juventude, a realizar em Lisboa no próximo Verão?

Ninguém tem números exactos, mas é provável que ultrapasse largamente os 100 milhões de euros.

De fonte quase segura, sabe-se que o Palco-Altar onde o Papa Francisco celebrará missa, se continuarem com a mesma ideia, custará mais de 6 milhões de euros.

Que dirão os sem-abrigo que dormem nas imediações da Gare do Oriente, em Sete Rios?

Lembrar-se-á Marcelo Rebelo de Sousa que prometeu a erradicação dos sem-abrigo?

Lembrar-se-á a Câmara Municipal de Lisboa, conforme notícia da página 20 do Público de 27 de Junho de 2019, que iria tirar todos os sem-abrigo da rua até final do ano de 2021?

No final do ano de 2018, havia em Lisboa cerca de 2470 pessoas sem-abrigo, das quais 361 a viver rua e 1967 em centros de acolhimento.

Obviamente estes números, nos dias de hoje, terão largamente aumentado.

Face a esta situação, a que se junta a fome e a doença, que percorrem os dias desta gente,não há qualquer argumento que possa explicar o megalómano despesismo com o Festival da Juventude

A jornalista Helena Pereira, escrevia no Público:

«Ninguém sai bem na fotografia. Nem a Igreja, nem a Câmara de Lisboa, nem o coordenador do projecto da Jornada Mundial da Juventude, nem o Governo. O que é que andam afinal a fazer? A verdade é que, somando cada uma das partes, o cidadão comum ainda não percebeu quanto dinheiro e como anda a ser gasto para a recepção da JMJ e do Papa Francisco, em Agosto, no Parque Tejo, em Lisboa.»

2.

Segundo o INE, 2,6 milhões de portugueses vivem com menos de 660 Euros.

3.

Vinte e tal dias depois de se ter demitido, Pedro Nuno dos Santos  descobriu que afinal tinha enviado um whatsapp a aprovar a indemnização de meio milhão de euros da TAP a Alexandra Leitão.

Esta gente poderá governar um país?

Esta gente pode encontrar ponta de solução para os professores, para os médicos e enfermeiros que se manifestam nas ruas do país?

Esta gente é igualzinha a outra gente que se perfila para conquistar o poder.

O PSD, numa sondagem-sujeita-a-todas-as-suspeitas,feita para a TVI/CNN Portugal, consegue ultrapassar o PS e de imediato, vemos Montenegro a ameaçar Costa, caso não mude rumo na governação, irá de imediato a Belém exigir eleições.

4.

Fernanda de Almeida Pinheiro, nova bastonária da Ordem dos Advogados:

 "Portugal tem um problema de corrupção grave"

O problema não é apenas português, mas, sabe-se, que onde houver dinheiro, há corrupção.

Há dias soube-se que na Ucrâniavários elementos do governo de Zelensky desviaram centenas de milhares de dólares destinados a apoiar o povo ucraniano. Há suspeitas de desfalques de muitos milhões.

CONVERSANDO


 Nos dias que correm, terríveis dias, não há momento que não se ouça o sentir do perigo de uma guerra a acontecer, resultante da invasão de Putin à Ucrânia.

A morte recente de David Crosby trouxe-me à memória este triplo álbum comprado na então  Discoteca Melodia na Rua do Carmo, lado direito de quem subia a rua e que me custou 1.050 escudos, ao cambio de hoje  5 euros e vinte e cinco cêntimos.

No Nukes: The Muse Concerts For a Non-Nuclear Future,  continha seleccções dos shows do Madison Square Garden, Setembro de 1979, realizado pelo coletivo Musicians United for Safe Energy . Jackson Browne , Graham Nash , Bonnie Raitt e John Hall como os principais organizadores do evento.

O documentário/Filme do Concerto do Madison Square Garden de Danny Goldberg, Antonio Poenza e Julian Schlossberg de 1981, esteve em exibição, Fevreiro de 1983, em Lisboa, no então Cinema Roma.

Este é o alinhamento dos discos:


DISCO 1


Lado A

Dependin' On You (Doobie Brothers) - Runaway (Bonnie Raitt) - Angel From Montgomery (Bonnie Raitt) - Plutonium is Forever (John Hall) - Power (Doobie Brothers with John Hall & James Taylor)

Lado B

The Times They Are A-Changin' (James Taylor, Carly Simon, & Graham Nash) - Cathedral (Graham Nash) – The Crow On The Cradle (Jackson Browne & Graham Nash) - Before the Deluge (Jackson Browne)

DISCO 2

Lado A

Lotta Love (Nicolette Larson & The Doobie Brothers) - Little Sister (Ry Cooder) - A Woman (Sweet Honey in the Rock) - We Almost Lost Detroit (Gil Scott-Heron) - Get Together (Jesse Colin Young)


Lado B


You Can't Change That (Raydio) - Once You Get Started (Chaka Khan) - Captain Jim's Drunken Dream (James Taylor) - Honey Don't Leave L.A. (James Taylor) - Mockingbird (James Taylor & Carly Simon)

DISCO 3

Lado A

Heart of the Night (Poco) Cry to Me (Tom Petty & The Heartbreakers) - Stay (Bruce Springsteen & Jackson Browne & The E Street Band) – Devil With The Blue Dress Medley (Bruce Springsteen & The E Street Band)

Lado B

You Don't Have to Cry (Crosby, Stills & Nash) - Long Time Gone (Crosby, Stills & Nash) - Teach Your Children (Crosby, Stills & Nash) - Takin' It To the Streets (Doobie Brothers & James Taylor)

O disco tem pérolas verdadeiramente estimáveis, a maior será a primeira aparição oficial de Bruce Springsteen, e da E Street Band ao vivo.

Outra pérola estimável, mera opinião pessoal, é a participação do público enquanto Crosbt, Stills and Nash cantam «Teach Your Childreen»: « : don't you ever ask them why, if they told you, you would cry, so just look at them and sigh and know they love you.», que aqui no vídeo, tirado do You Tube aparece depois de «You Don't Have to Cry».

sábado, 28 de janeiro de 2023

MÚSICA PELA MANHÃ

Numa entrevista à agência Associated Press, no início desta semana, o Papa Francisco declarou que «ser homossexual pode ser pecado, mas não é crime».

Crime e Pecado.

É provável que há quem fique um tanto ou quanto à nora com a afirmação do Papa, que tem sido visto como um Papa de vistas largas. Mas também se sabe que pelo Vaticano ainda passeiam uma série de mentalidades completamente retrógradas, autênticos velhos do Restelo como se diria por aqui.

Há uma canção do Chico, a que Ney Matogrosso deu uma interpretação deliciosamente provocante, em que se declara que não existe pecado no lado de baixo do Equador Equador.

É para lá que vanos!

Não existe pecado do lado de baixo do equador
Vamos fazer um pecado safado debaixo do teu cobertor
Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho
Um riacho de amor
Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo
Que eu sou professor

Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar
Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá
Vê se me usa, me abusa, lambuza
Que a tua cafuza
Não pode esperar

Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar
Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá
Vê se me esgota, me bota na mesa
Que a tua holandesa
Não pode esperar

Não existe pecado do lado de baixo do equador
Vamos fazer um pecado, rasgado, suado a todo vapor
Me deixa ser teu escracho, teu cacho
Um riacho de amor
Quando é missão de esculacho, olha aí, sai de baixo
Que eu sou embaixador

Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar
Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá
Vê se me usa, me abusa, lambuza
Que a tua cafuza
Não pode esperar

Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar
Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá
Vê se me esgota, me bota na mesa
Que a tua holandesa
Não pode esperar


sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

BLOGUEANDO POR AÍ

A 27 de Janeiro assinala-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, implementado através da Resolução 60/7 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas.

 O propósito deste dia é não esquecer o genocídio em massa de seis milhões de judeus pelos Nazis e respetivos colaboracionistas. Este constitui um dos maiores crimes contra a Humanidade de que há memória. Por outro lado, pretende-se educar para a tolerância e a paz, bem como alertar para o combate ao antissemitismo.

Ana Cristina Leonardo colocou no seu blogue a imagem que encima este texto, a respectiva citação em inglês, e nós, por aqui, fizemos, à lepra, a tradução:

«O museu de Auschwitz disse na quarta-feira que, por causa da guerra na Ucrânia, a Rússia será excluída da cerimônia que marcará os 78 anos desde que o Exército Vermelho libertou o campo de extermínio nazista.

“Dada a agressão contra uma Ucrânia livre e independente, os representantes da Federação Russa não foram convidados a participar da comemoração deste ano”, disse à AFP Piotr Sawicki, porta-voz do museu no local do antigo acampamento.»

O POEMA

O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.

É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.

Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.

E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.

Natália Correia

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

REGRESSOS

Voltou. Não disse nada.

Mas era claro que tivera algum azar.

Deitou-se vestido.

Pôs a cabeça debaixo do cobertor.

As pernas encolhidas.

Anda pelos quarenta mas não neste momento.

Está mas apenas tanto quanto no ventre da mãe,

para lá de sete peles, na protecção do escuro.

Amanhã dará uma conferência sobre homeostase

na cosmo náutica metagaláctica.

Por agora, enrolou-se, adormeceu.

 

Wislawa Szymborska

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

OLHAR AS CAPAS


 Roteiro Afectivo de Palavras Perdidas

António Mega Ferreira

Capa: V. Tavares

Tinta-da-China Editores, Lisboa, Outubro de 2022

Quando viro o espelho retrovisor da memória para o percurso da minha já longa vida, é sob a forma de palavras que as diversas etapas, episódios ou afetos me aparecem. Muitas dessas palavras eram para mim correntes à data dos sucessos que nomeiam e descrevem; mas, resgatadas hoje, parecem-nos obsoletas, fora de uso, inutilizadas. Que mistério envolve o envelhecimento e a obsolescência das palavras? Porque caem em desuso termos como trampolineiro, infernizar e larápio (ao longo deste livro, as palavras que tenho por «perdidas» aparecem sempre em itálico), mesmo quando as realidades que nomeiam se mantêm presen‑ tes, ainda que sob outras formas?

Confesso que é com alguma nostalgia que me lembro de certas palavras da minha juventude, cujo fulgor rutilava no intenso fascínio do significante, antes mesmo que o que elas queriam dizer tivesse para mim um significado inteligível. Colhera o belo verbo nas «rútilas estrelas» de Gonçalves Crespo e só mais tarde soube que rutilante (arruivado, doura‑ do, cintilante) era um elegante latinismo de Camões (de rutilans, rutilantis), possivelmente acolhido por via castelhana. Porém, aqui não me refiro tanto às palavras «caras», que os adultos pronunciavam com aplicação e algum pretensiosismo, quanto às outras, as que povoavam a conversação, nem sempre densas de uma história multissecular, mas às palavras sem traço de novo-riquismo, nobres apenas porque enraizadas na fala vulgar da cidade de Lisboa, onde nasci, cresci e sempre vivi. Resgatar palavras do relativo esquecimento em que caíram é desencadear exercícios de reminiscência pessoal sobre os modos, as circunstâncias, o tempo em que elas foram correntes.

Ao longo dos anos, fui registando numa lista laboriosa palavras que fui perdendo, palavras que tiveram um tempo no meu discurso (na minha vida?), ou que, pelo menos, nela traçaram um rasto fulgurante de cintilações afetivas rapidamente extintas no céu do meu olvido. O que tinha em mente era uma coletânea de murmúrios e reminiscências, de segredos e memórias, um inventário de adversidades e afetos, cada uma das nossas histórias dando às palavras o sentido que lhes atribuí‑ mos, em lentas, sucessivas, respeitosas aproximações. Mas o que resultasse não seria um exercício lexicográfico, muito me‑ nos filológico, e só instrumentalmente etimológico: antes, um álbum de memórias vazadas em palavras cujo eclipse parcial me apetecia resgatar pela evocação, mais um roteiro do que um dicionário. Nada nele seria exaustivo: na realidade, me‑ nos de um terço das palavras listadas acabou por vir à escrita (80 de uma lista de 250). E, dessas, nem todas desapareceram da fala comum; algumas delas apenas se tornaram mais raras, menos correntes, mais «antigas».

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM...


Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia pediu a demissão. A jornalista Bárbara Reis, sobre essa demissão, escreveu o Público:

«É uma maravilha ouvi-la falar. Na era da desesperança política, Ardern é frescura, é inspiração, é alegria, é luz. Demitiu-se antes de tempo, sem um escândalo ou uma crise — para além da crise geral. Podia continuar no poder, mas disse que já não tem o “tanque cheio, mais a reserva” e que só faz sentido ocupar o lugar quando o tanque está muito cheio.

Notem as suas palavras: “Não estou a sair porque é difícil. Se fosse isso, provavelmente teria saído dois meses depois. Estou a sair porque esta função, tão privilegiada, exige responsabilidade. A responsabilidade de saber quando somos a pessoa certa para liderar e, também, quando não somos.”

E mais esta: “Espero ter deixado a convicção de que se pode ser gentil, mas forte. Empático, mas decidido. Optimista, mas focado. Que podemos ser o nosso próprio tipo de líder — um líder que sabe qual é o melhor momento para sair.”

Agora que passou o choque da demissão-surpresa, vai especular-se sobre as reais razões da saída. O “tanque” de Ardern deixou de estar cheio simplesmente porque é isso que acontece após cinco anos e meio a chefiar um país? Porque a sua popularidade caiu mais 1% e o rival de direita subiu 2%? Porque vai ser difícil formar o próximo governo? Porque tem uma filha de quatro anos e quer ir buscá-la à escola? Porque, por mais que se diga que “já foi pior”, é muito difícil ser mãe de um bebé e chefe, sobretudo de um país.

Helen Clark, a primeira mulher eleita para chefiar o governo na Nova Zelândia, disse que Ardern recebeu ataques “sem precedentes” e que a sua demissão devia pôr a país “a pensar se quer continuar a tolerar a polarização excessiva que está a tornar a política uma vocação cada vez menos atraente”: “As pressões sobre os primeiros-ministros são sempre grandes, mas nesta era de redes sociais, notícias feitas para atrair clicks de leitores e ciclos de media 24 horas por dia, 7 dias por semana, Jacinda enfrentou um nível de ódio sem precedentes.”

Clark não está sozinha. Outros líderes dizem que a quantidade e intensidade de abusos e ameaças contra Ardern contribuíram para a sua saída antes de tempo. Ameaças de morte, perseguições e agressões na estrada, insultos de todo o tipo, para além de anos a responder às perguntas mais misóginas de se possa imaginar.»

 Devagar vamos aprendendo que os problemas da participação das mulheres na vida política é um problema de natureza cultural e, como tal, não se resolve por meio de quotas, decretos ou simpatias.

O filósofo Sófocles, lá muito para trás, deixou escrito: disse lá muito parabtr

«Quando uma mulher está em condições de igualdade com um homem, torna-se superior» e o escritor Somerset Maugham admitiu que somente a mulher sabe do que a mulher é capaz.

1.

Continuam as investigações em quase tudo o que são autarquias aqui no pedaço, e tanto quanto se consegue ver, ou inventar, na Câmara de Lisboa as investigações vão até ao tempo em que António Costa era presidente.

Continuam os crimes – os que se vão conhecendo –dos padres pedófilos com crianças: A diocese de Viana do Castelo anunciou, ter proibido um padre de Monção, de exercer o sacerdócio depois de este ter confirmado um caso de abuso sexual de menor.

Continuam os imbróglios com as migrações: Pode chegar aos oito mil euros o salário do diretor da nova Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo que vai herdar as funções administrativas do SEF - mais do dobro do vencimento dos diretores nacionais da Polícia Judiciária,  

Os problemas com o SEF, e similares, denotam que os efectivos são poucos para resolverem as questões que o assunto exige.  Abrimos as portas aos migrantes mas depois não conseguimos iniciar, conduzir e finalizar o processo de cada migrante no nosso país.

Continuam os casos de imigrantes espoliados e tratados como escravos nos campos onde o trabalho sazonal é assegurado exclusivamente por estes trabalhadores, história bem sinistras que, volta e meia, chegam ao nosso conhecimento, onde as diversas máfias impõem a sua força.

 Não continua, porque começou agora, a polémica com o altar-palco onde o Papa Francisco celebrará, no próximo Verão, a missa final da Jornada Mundial da Juventude  e que  vai custar 4,2 milhões de euros.

A procissão ainda não saiu do adro, mas as palavras do Papa necessitam de um palco com este custo? O que se torna importante: as palavras ou o local onde elas serão proferidas?

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

CONVERSANDO


 Dando destino aos jornais e revistas que se vão acumulando por aqui e por ali, dei com um Fugas do Público de 23 de Julho de 2022 em que Edgardo Pacheco escrevia o obituário de Maria de Lourdes Modesto.

«Conheci Maria de Lourdes Modesto, que morreu esta terça-feira aos 92 anos, em meados dos anos de 1990, num dos Congressos de Gastronomia do Minho, organizados por Francisco Sampaio e Nuno Lima de Carvalho. Eram encontros estupendos porque, entre debates sobre papas de sarrabulho e as estratégias para o turismo termal, havia sempre tempo para se chegar a estados etílicos alegres e em diferentes escalas, tais eram as solicitações das adegas da região para a aferição da qualidade do Alvarinho, do presunto e dos enchidos variados.

O grupo de Lisboa ia para o Minho num autocarro fretado. À frente, os palestrantes, a meio, uns eruditos (com o jornalista António Valdemar à cabeça) e, atrás, a maralha, liderada por esse pândego cativante que era o Hélder Pinho – conhecido no universo gastronómico como Dom Pipas (Capital).»

Guardei o recorte porque a sua morte mandou-me para os tempos dos meus 13/14 anos em que determinados programas, na televisão Nordmend, a preto e branco, não tinham outros assistentes que não o avô, eu e o gato Trafaria.

Ali ficávamos os dois, o Trafaria, ronronando, aconchegado nos joelhos do meu avô, olhando as habilidades culinárias da então colaboradora semanal da televisão-canal-único, a sua simpatia, o trato fácil, excelente comunicadora, era professora no Liceu francês, os seus gestos, o seu grande sorriso, o gosto pela cozinha alentejana, Beja a viu nascer, um tempo em que não havia «chefs», apenas cozinheiro(a)s que falavam do que portuguesmente queriam saber, e José Quitério no seu  Histórias e Curiosidades Gastronómicas, chamou a Maria de Lourdes Modesto, uma das cada vez mais raras Guardiãs do Fogo.

Mas o recorte também ficou guardado porque Edgardo Pacheco falava do Helder Pinho, meu grande amigo, jornalista, desde os primeiros números, de A Capital, das andanças e trangalhadanças de D. Pipas.

Saudades.

Curiosamente, há dias, guardei uns recortes em que Jorge Pereirinha Pires, no «Expresso» escrevia sobre os portugueses na Califórnia («O primeiro europeu a chegar à costa da actual Claifónia foi, como, como se sabe, João Rodrigues Cabrilho. Natural da freguesia de Cabril, perto de Pitões das Júnias, no concelho de Montalegre.») e onde era referido o nome de Helder Pinho e o livro, Portugueses na Califórnia, que reuniu as reportagens que realizou para A Capital», com prefácio de Jorge de Sena.



Do prefácio de Jorge de Sena, e sabe-se que Sena não era homem de elogio fácil:

«Pede-me Helder Pinho algumas palavras de apresentação do seu livro sobre os portugueses na Califónia que ele publicou por Abril e Maio do corrente ano (1977), no jornal A Capital, e que representavam a soma das suas pesquisas e contactos de jornalista consciencioso e lúcido como poucos, para tão complexo tipo de reportagens jornalisticas e/ou literárias. Pelo que até aqui já vai dito é óbvio que os contactos que com ele tive já vai dito é óbvio que os contactos que com ele tive, o modo como o vi actuar, o que ouvi da actuação dele junto das várias pessoas, e os textos que li atentamente e com prazer e enorme proveito (quem de todos nós faz deste estudos brilhantes e ao mesmo tempo da funda seriedade e sólida documentação, se escreve de gentes e lugares que foi ver só para escrever deles?), me fazem julgar o autor como um admirável e os artigos que ele publicou como nada de efémero, e sim como essencial base documental para entender-se o problema dos portugueses e seus descendentes no estrangeiro, e em particylar na América do Norte.»

Conversando, o meu amigo Helder Pinho, Jorge de Sena, o meu avô, o gato Trafaria, Maria de Lurdes Modesto, a rara Guardiã do Fogo, como lhe chamou José Quitério, uma televisão Nordmend, a preto e branco, comprada a prestações, que levou anos e anos a pagar, e o primeiro programa que nessa televisão vi, «Nat King Cole Show» e em boa hora isso aconteceu, memórias e mais memórias…

DISSESTE

Disseste: o sol nasceu.

Foi verdadeiramente então que o sol nasceu

e que nos habituámos todos a dizer

que o sol nasceu.

Às vezes pensamos que acontece várias vezes

mas é uma ilusão de óptica que não nos deixa ver

o grande círculo azul em cujo centro

tu dizes eternamente: o sol nasceu.

 

Pedro Tamen 

domingo, 22 de janeiro de 2023

DITOS & REDITOS


 Amanhã é outro dia. E também o seguinte.

Morrer virá a seu tempo.

Vida de cão é não poder dizer que não.

Agir como se o tempo não passasse.

Atrás de mim virá quem de mim bom fará.

A inveja é cega.

Tostão poupado é tostão ganho.

O que o mar leva, o mar devolve.

sábado, 21 de janeiro de 2023

DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM...


 Os portugueses vivem dias difíceis, o governo de maioria absoluta, anda envolvido numa sucessão de crises, casos e casinhos, Marcelo tenta chamar a miudagem à razão mas perde-se em palavras e ideias com pouco nexo, e para completar, no meio destas trapalhadas diversas e sem fim, numa recente sondagem para o DN, JN e TSF, 63% dos inquiridos declararm que Montenegro e o PSD não estão prontos para liderarem um governo.

Mas para atrapalhar mais a situação, soube-se que Fernando Medina ministro das Finanças, enquanto Presidente da Câmara Municipaçl de Lisboa, ou alguém por ele, foi o responsável pela escolha de Joaquim Morão.

José António Cerejo escreve no Público que «a Câmara de Lisboa tinha centenas de engenheiros, arquitectos e gestores de obras nos seus quadros. Mas os seus responsáveis resolveram, no meio da trapalhada que o Ministério Público está a investigar, ir buscar o homem de Castelo Branco. Porquê? Não se sabe. »

Pelo seu lado, António Guerreiro escrevia, um destes dias no Público:

«Podemos facilmente observar, porque os seus signos são de uma enorme evidência, que a vergonha é um sentimento que desapareceu da política. E digo “da política”, e não “dos políticos”, para evitar a psicologização e apelar, antes, à referência espinosista que, refutando uma falsa antinomia entre ideia e afecto, afirma que os afectos são o material da política.

Os políticos apanhados a cometer infracções legais ou morais que os destituem tanto no aspecto político como cívico parecem ser indiferentes ao ethos social e mantêm geralmente uma atitude de realismo apático e desavergonhado. A desvergonha tornou-se mesmo um capital simbólico e um motor fundamental da acção política.

A manifestação protocolar de agradecimento pela dedicação e sentido do dever aos que se demitem (voluntária ou coercivamente) porque já não têm condições para ficar, devido a palavras ou decisões impróprias, tem de ser entendida como uma operação de branqueamento e uma contribuição para a anulação da vergonha e da culpabilidade enquanto sentimentos que a racionalidade política do nosso tempo expulsou da sua acção e até do seu horizonte. A manifestação individual de vergonha afecta todo o edifício político e afecta, portanto, até aqueles que não têm nenhuma razão para se sentirem envergonhados. A positividade ética da vergonha tornou-se uma negatividade política.»

1.

Os valores praticados no mercado de arrendamento de Lisboa sofreram um aumento de 36,9% no último ano, atingindo um preço médio de 21 euros por metro quadrado. Com esta subida, arrendar casa na capital portuguesa ficou com um custo semelhante ao praticado em Barcelona e mais caro do que em Madrid (17 euros/m2). Aliás, o aumento verificado em Lisboa é o mais elevado quando comparado com os registados em Paris, Milão, Madrid e Barcelona.

2.

Fernando Medina falou em "boas notícias" no que se refere aos receios de recessão na Europa após a reunião do Conselho de Assuntos Económicos e Financeiros e rejeitou a necessidade de novo aumento de salários em 2023.

3.

Mário Centeno confiante de que a zona euro não vai entrar em recessão técnica.

Poder de compra do trabalho estagnado há 20 anos, Medina rejeita necessidade de novo reforço agora.

Salários: mais de metade dos trabalhadores recebia menos de 1.000 euros em 2022.

Ainda Fernando Medina:

«A nossa política salarial é a política adequada para responder às necessidades de assegurar o poder de compra durante o ano de 2023, sem com isso contribuir para um amento das tensões inflacionistas no nosso país».

MÚSICA PELA MANHÃ

Num curioso livro intitulado “A idade das Obras-Primas”, os investigadores Francesco Antonini e Stefano Magnolfi levantam a questão do fator idade na produção das obras marcantes de uma vida. Todos nos impressionamos que Mozart tenha começado a compor aos 4 anos de idade, a dar concertos aos 6 e que um mestre com a consciência de Franz Joseph Haydn tenha dito de um Mozart ainda rapaz que era o maior compositor que havia encontrado.

José Tolentino Mendonça, de uma crónica no Expresso.

Também pretexto para deixar duas pequenas árias de As Bodas de Fígaro de Mozart.



 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

CONVERSANDO


 Não gosto do título que o Jorge Calado escolheu para as suas memórias lisboetas, ribatejanas, oxfordianas: Mocidade Portuguesa.

Se perguntarem o porquê, nem sei bem explicar, e se calhar nem tem a ver com o atentado de obrigarem rapazes e raparigas de 10 anos, a seguirem pisadas totalizantes-nazi-fascistas para formar homens e mulheres novos ao serviço do regime salazarista.

Adiante.

 O livro foi apresentado no dia 23 de Junho do passado ano, na Biblioteca da Imprensa Nacional pela Alice Vieira, uma velha e querida amiga de Jorge Calado. 

Entrou logo na longa lista de «Livros a Comprar», era para o adquirir na Feira do Livro, mas a única visita feita ao certame foi desastrosa.

Por Dezembro o filho pediu livros para me oferecer como prenda de Natal.

Assim aconteceu.

Folhei-o, como sempre gosto de fazer, mas o sentar para ler, após diversas ressacas natalícias, aconteceu apenas na sexta-feira 13. A 18 estava pronto para entrar no «Olhar as Capas».

Seis dias para ler as 561 páginas de um livro notável que termina assim:

«Hoje sorrio quando penso em Oxford. Foi lá que começou o resto da minha…»

E ficamos desde já à espera de outro livro, para ficarmos a saber dos dias maravilhosos  que são o resto dos trabalhos, dos gostos e vida de um homem entusiasmante.

Continua na minha lista de »Livros a Comprar» , Um Vestido Curto de Festa do escritor francês Christian Bobin, que morreu, com 71 anos, noa dia 24 de Novembro do ano passado. A curiosidade nasceu depois de ler esta passagem na Antologia doEsquecimento:

 «Para que serve ler? Para nada, ou quase nada. É como amar, como jogar. E como rezar. Os livros são como rosários de tinta negra, cada conta rolando entre os dedos, palavra após palavra. E o que é realmente rezar? É silenciar-se. Afastar-se de si no silêncio. Talvez seja impossível. Talvez não saibamos rezar como se deve: há sempre demasiado barulho nos lábios, sempre muitas coisas nos nossos corações. Nas igrejas ninguém reza, excepto as velas. Elas perdem todo o seu sangue. Elas despendem toda a sua chama. Elas não guardam nada para elas, elas dão tudo o que são, e esse dom transforma-se em luz. A mais bela imagem da oração, a mais clara imagem da leitura, sim, seria isto: o desgaste lento de uma vela na igreja fria.»

 Tantos e tantos que se interrogam:

Sim, para que serve ler?

Aqui estaríamos longas horas a falar disso.

 Mas termino com um comentário que encontrei no Público a propósito de uma crónica de Ana Cristina Leonardo:

«Vou contar um pouco de um mim, jovem adolescente e leitor dos livros da biblioteca ambulante. Escolher um livro quando se é pequeno e as estantes são altas, quando se é curioso e não se conhece bem como a literatura se apresenta, pode criar acontecimentos memoráveis. Ler Pascal e tentar percebê-lo com uma imaginação infantil. Requisitar "A Montanha Mágica" e sonhar, no caminho até casa, com uma leitura do género fantástico, ficar decepcionado mas mesmo assim ler até ao fim e com isso compreender a existência de mundos que estariam no futuro da vida por viver. Relê-lo muitos anos mais tarde porque se teve essa experiência na adolescência.»

DAVID CROSBY (1941-2023)


 Morreu David Crosby.

Continua o tempo dos que me ajudaram a palmilhar caminhos, estarem a desaparecer.

Onde estão os fins de tarde a ouvir o Cândido Mota a anunciar os Crosby, Stills, Nash and Young?


quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

POSTAIS SEM SELO


 Recomeço. Não tenho outro ofício.

 Eugénio de Andrade

 Legenda: pintura de Marcel Duchamp

CONVERSANDO


 Neste dia, há cem anos nascia José Fontinhas, mais conhecido por Eugénio de Andrade, um poeta único, o Geninho como dizia o José Leal Ferreira.

«Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar o coração, a minha face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu…»

Numa das crónicas que, semanalmente, publica no Expresso, José Tolentino Mendonça começa assim:

«Em Portugal, que eu saiba, o melhor lugar para ouvir as cigarras é a poesia de Eugénio de Andrade. Ao menos para mim representa o sítio onde verdadeiramente as escutei pela primeira vez.»

Conheci Eugénio de Andrade, corriam os primeiros meses do ano de 1967, nos Poemas, 23º volume da excelente Colecção Poetas de Hoje da Portugália Editora, que comecei a adquirir quando um livreiro aconselhou o meu pai que esse seria o melhor caminho para conhecer boa parte da nova Poesia Portuguesa e Despedida é o antepenúltimo poema do livro:

«Colhe

todo o oiro do dia

na haste mais alta

da melancolia.

Escreve Luís Miguel Queiros no Público de hoje:

«… cem anos após o nascimento do poeta na freguesia de Póvoa de Atalaia, no concelho do Fundão, e decorridas quase duas décadas desde a sua morte, em 2005, a presença de Eugénio parece estar a esbater-se mais depressa do que poderia esperar quem testemunhou a generalizada admiração de que gozou em vida, mesmo que esta possa ter sido sempre um pouco menos consensual em Lisboa do que no seu Porto adoptivo.»

Que se pode esperar de um país em que poucos, mesmo muito poucos, são os que lêem livros?

O sobressalto de um número recentemente  divulgado: 61% dos portugueses não leram qualquer livro impresso de espaço de um ano.

Um povo inculto apenas com os olhos para o que lhes aparece nos telemóveis.

E, no entanto, está tudo nos livros!

«Boa noite. Eu vou com as aves», como diria o Eugénio.

 

Legenda: fotografia de Paulo Pimenta no Público de hoje.

MAR DE SETEMBRO/OSTINATO RIGORE

Sobre a mesa os dois livros. Somente um
volume do “Mar de Setembro”, mas do “Ostinato
Rigore”, três exemplares. O meu, o do Manuel, o
do Joaquim. No final do dia ainda se juntaria

um outro, o do José Manuel Bulhão Martins.
Comprados nessa manhã na Guimarães; os três
decidiam-se pelo novo título, eu permaneci fiel,
até hoje, ao mar de setembro. Nenhum deles tinha

a minha relação com o mar, por isso viam no
verso de Eugénio um jovem a trabalhar a terra
vermelha do verão – o seu tronco, o vigor da argila vermelha do verão
mas o mar de setembro dava-me o melhor nadador
de agosto, o que perseguia desde maio até às marés vivas
o apelo absurdo da beleza
o espaço de tempo de um relâmpago

«com o rosto para sempre perdido / com o sorriso e
a sua tez dourada» algum de nós disse, mas nenhum
o chegou a escrever nas folhas que se espalhavam
sobre as mesas de fórmica.

João Miguel Fernandes Jorge

RETRATO

Sou filho de camponeses, passei a infância numa daquelas aldeias da Beira Baixa que prolongam o Alentejo e, desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a água. Nesse tempo, que só não foi de pobreza por estar cheio do amor vigilante e sem fadiga de minha mãe, aprendi que poucas coisas há absolutamente necessárias. São essas coisas que os meus versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulham desde a infância no mundo mais elemental. Guardo desse tempo o gosto por uma arquitectura extremamente clara e despida, que os meus poemas tanto se têm empenhado em reflectir; o amor pela brancura da cal, a que se mistura invariavelmente, no meu espírito, o canto duro das cigarras; uma preferência pela linguagem falada, quase reduzida às palavras nuas e limpas de um cerimonial arcaico – o da comunicação das necessidades primeiras do corpo e da alma. Dessa infância trouxe também o desprezo pelo luxo, que nas suas múltiplas formas ê sempre uma degradação; a plenitude dos instantes em que o ser mergulha inteiro nas suas águas, talvez porque então o mundo não estava dividido, a luz cindida, o bem e o mal compartimentados; e ainda uma repugnância por todos os dualismos, tão do gosto da cultura ocidental, sobretudo por aqueles que conduzem à mineralização do desejo num coração de homem. A pureza, de que tanto se tem falado a propósito da minha poesia, é simplesmente paixão, paixão pelas coisas da terra, na sua forma mais ardente e ainda não consumada.

Eugénio de Andrade 

ARREPIO NA TARDE

 Não sei quem, nem em que lugar,
mas alguém me deve ter morrido.
Senti essa morte num arrepio da tarde.
Qualquer amigo, um dos vários
que não conheço e só a poesia
sustenta. Talvez a morte fosse
outra: um pequeno réptil
no sol súbito e quente de Março
esmagado por pancada certeira;
um cão atropelado por um bruto
que, ao volante, se julga um deus
de arrabalde, com sucesso garantido
junto de três ou quatro putas de turno.
Talvez a de uma estrela, porque também
elas morrem, também elas morrem.

Eugénio de Andrade de Os Sulcos de Sede em Poesia

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

O OUTRO LADO DAS CAPAS


 O semanário «Expresso» começou a publicar-se no dia 6 de Janeiro de 1973.

Jorge Calado, nasceu no dia 6 de Janeiro de 1938.

«Tive sorte com o nome e com o dia. Chamo-me Jorge e nasci em Lisboa a 6 de Janeiro, Dia de Reis.»

E foi no «Expresso», como crítico de música clássica, de exposições de fotografia pintura, também de teatro e cinema, que comecei a deparar com o nome de Jorge Calado e a gostar do que, e como, escrevia.

«Seis de Janeiro era, então, festa e feriado: a Epifania, o 12º e último diua de Natal. É também o título da minha peça favorita de Shakespeare, a «Noite de Reis»

E já venho a citar «Mocidade Portuguesa», livro que Jorge Calado publicou no Verão passado, livro de memórias, se bem que o autor nos diga que não o é, tão pouco lhe chama autobiografia.

Diga-se que é um livro de memórias.

«Hoje vejo a memória como um museu cujo conteúdo é precisos estudar, preservar e divulgar.»

Gosto de autobiografias, livros de memórias, correspondência.

O livro de Jorge Calado é um livro fascinante, tão perto, tão perto de outro livro que me encantou: «Memórias» de Rómulo de Carvalho, também António Gedeão.

Tanto num como noutro livro, ficamos a saber de uma Lisboa de outras eras. Rómulo de Carvalho nasceu em 1906, Jorge Calado em 1938, Rómulo foi professor no Liceu Pedro Nunes, Calado aluno do mesmo Liceu e deixa expressa a mágoa de não ter sido aluno desse notável professor.

Acabei há dias a leitura do livro que ficou devidamente sublinhado e mercado, um livro belíssimo, lamentavelmente publicado segundo o atentado dito por Acordês.

 Naquelas páginas encontramos música, cinema, fotografia, pintura, o quotidiano da infância de Lisboa, a paixão de Jorge Calado pelo azul e por Shakespeare.

 Tenho saudades dos sabores da minha infância, quase todos oriundos do Ribatejo: os bolos-de-cabeça, a broa de milho, a morcela de arroz, a uva-maçã cor-de-rosa e carnuda, a erva-doce das broas de Todos-os-Santos, os ouregos para temperar o tomate acabado de colher.

Também eu gosto imenso das broas de Todos os Santos que o Garrudo me trazia, outros tempos, outros tempos, de Alcanena.

Jorge Calado «gostava de seguir as mãos habilidosas da minha mãe moldando as massas cruas em formas estranhas. Uns pós ou cristais (farinha, açúcar, fermento ou bicarbonato de sódio, às vezes sal) mais uns líquidos (água, leite, porventura um cálice de licor ou de vinho do Porto) e uma pasta (manteiga), vida em miniatura (ovos), e proporções variáveis, formavam o barro primordial de que eram feitos doce e salgados. Verifiquei que no girar e bater é que estava a graça, e que a A cozinha não era o estômago, mas sim o coração da casa

Retenho esta frase:

A cozinha não era o estômago, mas sim o coração da casa.

Hei-de voltar mais vezes a este livro mas, por acaso, aberto na página, copio:

 A roupa passava dos mais velhos para os mais novos. Fatos antigos e gastos do meu pai eram oferecidos aos membros mais necessitados da família, e depois adaptados ao novo corpo. Coisas velhas, avariadas ou partidas não se deitavam fora; antes eram recicladas e/ou remendadas ou passajadas. Aplicavam-se cotoveleiras às mangas de casacos e camisolas puídas pelo uso, e nós fundilhos aos calções gastos; viravam-se punhos e colarinhos às camisas coçadas do meu pai; os sapatos levavam tacões, biqueiras, meias solas ou solas inteiras novas.

E não me vou embora sem copiar esta frase, devidamente sublinhado, porque penso do mesmo modo, e retirada da página 21:

«Não me bastava ler um livro; queria possuí-lo, para voltar a ele sempre que quisesse.»

OLHAR AS CAPAS


Mocidade Portuguesa

Jorge Calado

Capa: Magda M. Coelho

Colecção Olhares

Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa, Outubro de 2022

No verão de 1968, interrompi os trabalhos de doutoramento em Oxford para duas semanas de férias em Portugal. Preparava-me para o meu último ano oxoniano, com a investigação a progredir de vento empopa. Como habitualmente juntei-me aos meus pais no Buçaco para um fim de semana. Lembro-me de estarmos sentados no varandim do hotel a esmoer o almoço, quando o meu pai foi chamado ao telefone. «O Salazar caiu!» era a notícia de um colega de Lisboa. «Não acredito!, acrescentei eu, pensando que a queda era do governo. «Não, o velho caiu da cadeira de repouso e bateu com a cabeça no chão de pedra. A coisa parece ser séria!», explicou o meu pai. A queda do ditador é um daqueles eventos fulcrais – como o assassínio do Presidente Kennedy, a morte estúpida da Princesa Diana ou a destruição terrorista das Torres Gémeas de Manhattan – em que inevitavelmente sabemos onde estávamos quando ouvimos a notícia. Nesse sábado, dia 3 de agosto de 1968, eu estava no Buçaco, O resto não foi silêncio, como no Hamlet; pelo contrário, à semelhança da Criação, de Joseph Haydn, ouvimos luz – a luz bruxuleante da liberdade ao fundo de um longo túnel de quatro décadas de Ditadura. 

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

INEXPLICÁVEIS EXÍLIOS

O mar é a minha mais antiga obsessão. Vivi sempre perto do mar e dum mar que encheu a minha infância de alterosas vagas povoando de terror os meus sonhos. Mas longe do mar ainda hoje sinto um inexplicável exílio.

Penso nisto lendo um livro de A.S. De repente, na página 289, está escrito: envelhecer é multiplicar-se interiormente.

Ana Hatherly em 351 Tisanas

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

GINA LOLLOBRIGIDA (1927-2023)


 Aos 95 anos morreu a linndissima Gina Lollobrigida.

NOTÍCIAS DO CIRCO

«Da escolha de presidente de junta de freguesia à de membros do Governo temos mesmo de ser muito exigentes, muito mais exigentes.»

António Costa na Convenção do Partido Socialista do passado sábado.

Então para que serve aquela coisa, perfeitamente inútil, do questionário aos futuros políticos de 34 ou 36, talvez mais, talvez menos, perguntas?

Exigência é o que se pretende... apenas!

BILHETE PARA O AMIGO AUSENTE

Lembrar teus carinhos induz

a ter existido um pomar

intangíveis laranjas de luz

laranjas que apetece roubar.

 

Teu luar de ontem na cintura

é ainda o vestido que trago

seda imaterial seda pura

de criança afogada no lago.

 

Os motores que entre nós aceleram

os vazios comboios do sonho

das mulheres que estão à espera

são o único luto que ponho.


Natália Correia em OVinho e Lira

domingo, 15 de janeiro de 2023

POSTAIS SEM SELO


 A velhice é o que sobra da vida.

Louis-Ferdinand Céline

CONVERSANDO


 Não podemos ser destrutivos ao ponto de dizer que a «Revista» do Expresso não tem ponta por onde se lhe pegue.

Há por lá uma secção «Planetário – No Caminho das Estrelas» da responsabilidade de João Pacheco, filho do poeta Fernando Assis Pacheco que morreu, prematuramente, à porta da Livraria Bucholz.

Numa das suas últimas colunas, João Pacheco disserta sobre Movimentos Improváveis:

«O prato do dia era ensopado de borrego à moda de Borba. Mas o que estava em causa naquela jogada arriscada era uma garrafa de Porto de 1952. A aposta fora feita à volta da mesa de bilhar opondo o maître da Casa do Alentejo ao narrador do livro “Requiem”.»

Regressei ao livro e apanho estas palavras:

«Aparentemente estou lixado, mas não me vou dar por vencido, é proibido o macê? O macê não, disse com ironia o Maitre da Casa do Alentejo, mas se o senhor rasgar o pano terá que pagá-lo. Está bem, disse eu, então acho que vou tentar um macê.»

Na Rua dos Anjos, em Lisboa, quase a cortar para a Almirante Reis, com o antigo Cinema Lyz na outra esquina, havia um café formidável: o «Ribatejano».

Café, restaurante, sala de jogos, do lado direito que tem entrava, venda de jornais, revistas e tabacos, engraxador por entre as mesas, um belo balcão.

O antigo Café Ribatejano,  no lado esquerdo o espaço da venda de jornais, revistas.
 

                                                       O antigo Café Ribatejano, o café e  o restaurante, a sala de jogos.

O café há muito que fechou portas e no seu lugar ainda está a Nortel – Utensílios e Equipamentos para Hotéis e Restaurantes.

Tantas horas que passei naquele café, a ler o Diário de Lisboa, um qualquer livro, o café era de «saco», tinha uma pastelaria fina e uns excelentes pastéis de bacalhau.

Acabada a leitura, rumava para a sala de jogos: damas, xadrez, bilhares, a três tabelas e snooker.

Na parede o aviso: «É proibido o macê».

O mesmo aviso existia na sala de jogos, no primeiro andar da Cervejaria Portugália.

Nunca tive habilidades para o bilhar, limitava-me a ver e gostava disso, pricipalmente o snooker.

Ainda o Requiem do Tabucchi:

«O Maitre da Casa do Alentejo tapou a garrafa e disse: o que fica é para quem ganhar, acho que chegou a altura de o senhor experimentar o seu macê.

Levantámo-nos e eu senti que tinha as peernas pouco seguras, pensei que naquelas condições era uma milagre se conseguisse acertar na bola, mesmo assim peguei no meu taco, passei o giz na ponta e fui até à beira da mesa de bilhar. Pus-me na ponta dos pés para atingir a bola de cima. A minha mão tremia ligeiramente, teria de precisar de um apoio, mas o macê joga-se sem apoio, de cima para baixo.»

João Pacheco, para ilustrar o texto, escolheu «Grande Masse», de 1933 do artista japonês NakagawaIsaku e adianta sobre o macê:

«O objectivo do jogador é picar a bola, mas esse malabarismo é muito arriscado, até para a saúde do panoi verde da mesa de bilhar. É também esse truque de bilharista que esta jogadora está atentar na gravura “Grand Masse”»

Por macê não poderia deixar de trazer aqui a loucura mansa de Alexandre O’Neill com o seu «É Proibido o Macê», que faz parte de «As Andorinhas Não Têm Restaurante»,  nº 7 da Colecção Cadernos de Literatura, publicado em 1970 pelas Publicações Dom Quixote, livro que levou sumiço da Biblioteca da Casa:

 «Satisfeita a malvada, Datuatia mete o último preso na enxovia, passa a a língua pelo teclado e pelas gengives e diz que este do carvoeiro é que sim, é que pinta. Observada uma aflita à velha, que tem os pintores escondidos atrás do Sagrado Coração e está a dar carapau ao Benfica, Datuatia pega na albarda, resmunga «tèlogomãe». «Não venhas tarde» cacareja a velha num arrasto neopopulista de varizes.

Ao passar pelo Vicente, Datuatia traqueja e diz para a velha das castanhas «troque-me este em miúdos!» e ri-se como um selvagem. A tiazinha fica-se a dar ao abano, como que a espalhar o petisco com que Datuatia a mimoseara. «Que vá gozar a patusca da mãe dele» diz a tiazinha de mistura com outras gentilezas de fazer corar o mais conspícuo, mas já Datuatia virara a esquina na bruta gáspea.

Em menos duma loja de barbeiro, Datuatia chega aos Bilhares, atira o cabedal para uma cadeira, põe a pata em cima do verde e declara que dá quinze às cinquenta a qualquer dos èpás que por ali se coçavam. «Prajá» disse um deles. Chamaram o Rentàterra, que em três trrrins tirou as bolas, depositou-as em cima do verde e preveniu pela estafadésima vez os èpás que era proibido o macê.»