quinta-feira, 31 de março de 2011

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS


Alguém seguiu a táctica deste homem?
Anúncio publicado em "A Bola" de 15 de Setembro de 2003.

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


A EVOCAÇÂO DO CHIMPANZÉ

“comprei um bilhete e um cartucho de amendoins e
entrei no cinema. tu compraste um bilhete e um
cartucho de amendoins e entraste no cinema, sen
támo-nos na mesma fila, lado a lado. eu abri o meu
cartucho de amendoins, tu abriste o teu cartucho
de amendoins, com um ruído exactamente igual ao
meu. voltei-me para ti e mostrei os dentes. tu
voltaste-te para mim e mostraste os dentes. quan
do a luz apagou, tu pousaste o teu cartucho de a
mendoins no colo e eu pousei o meu cartucho de
amendoins no colo. com a mão direita comecei a le
vantar-te a saia. para me facilitar a tarefa, tu
levantaste levemente as nádegas do assento. com
esse gesto, caiu-te do colo o cartucho de amendo
ins. assim que os amendoins acabaram de se espal
har no chão, abaixei-me para tos apanhar, mas es
queci-me do meu cartucho de amendoins, o qual me
caiu igualmente ao chão. gastei um tempo enorme
a procurar e a recolher todos os amendoins. lembro
me de que passei o tempo quase todo até ao inter
valo recolhendo amendoins. todo o tempo tu
não deixaste de suspirar e de gemer, embora esti
vesse apenas a decorrer um documentário sobre
o narciso e nenhum drama comovente. a voz do lo
cutor lembro-me que dizia: «no começo da primave
ra, quando montes e vales acordam do longo sono
de inverno, centenas e centenas de narcisos ele
vam as douradas cabeças em todas as frestas e a
brigos do solo, e lançam seu olhar inocente pelos
portentosos rochedos e pelas raízes nodosas da
floresta.» isto, como certamente te lembras, foi
antes do intervalo. depois, quantas vezes, oh quan
tas vezes não deixaste cair e eu não deixei cair
os amendoins que nos restavam. e ora eu, ora tu,
de cada vez descíamos a procurá-los, e a colhê-los
com suaves, ternos guinchos. o filme, no dizer da
crítica, era daqueles que se não podem perder.”

Alberto Pimenta em “Poemas Com Cinema”, Assírio &Alvim. Lisboa, Novembro 2010

QUAL O CRISTÃO QUE DISCORDA DO MANIFESTO COMUNISTA?


O “Diário de Lisboa” de 31 de Março de 1975 fazia-se eco da Homilia Pascal que D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, proferira na Sé Catedral.

Este era o começo da notícia:

“Na ordem dos fins não é Marx que nos separa do mundo de hoje, embora o reino de Deus nunca seja deste mundo simplesmente. Na ordem dos outros meios, outras coisas teria de dizer-se: mas esse estudo não é para aqui. Não deixaremos no entanto de dizer que se, bem que Marx fosse um revolucionário – não de café! – e o combate fosse o seu elemento, como dele descreveu Engels, o que aliás pagou bem caro toda a vida, no entanto o seu entusiasmo pela luta de classes ficava bem longe do de certos cristãos pelo socialismo e dos que pregam a raiva e o paroxismo do escândalo como meio de renovação do Mundo.”

E este o final da notícia:

“Referindo-se a Marx (nome que todos os reaccionários do Mundo sempre temem) afirmou D. António Ferreira Gomes:
“Se o Manifesto Comunista dá como definição do ideal comunista uma sociedade onde o livre desabrochar de cada um é condição do livre desabrochar de todos, qual seria o cristão, fiel ao reino de Deus, que discorde desse ideal? Se, em “O Capital”, Marx se propõe mostrar como o trabalho fabril coisifica o homem, ou, por outras palavras, opera uma inversão das relações entre o sujeito e o objecto, e põe como projecto ao socialismo reconverter essa inversão e fazer do homem sujeito da economia, qual é o católico, conhecedor da doutrina social, para quem este projecto esta própria linguagem sejam estranhas?”

quarta-feira, 30 de março de 2011

OLHARES

Lisboa vista do alto da Penha de França, junto à Igreja.

ONDE CHEGA A CLUBITE!...


Segundo o jornal “A Bola” a cantora colombiana Shakira vai deixar de ser ouvida no Estádio do Real Madrid.
Motivo?
Tem um relacionamento amoroso com Piqué, jogador do Barcelona.

NÃO SEI O QUE DIGA!...



Boaventura de Sousa Santos.

"Os mercados cometem crimes contra a humanidade"


O Prémio Nobel Paul Krugman diz que os mercados são um bando de miúdos de 20 e tal anos, bêbados e encharcados em cocaína...


São um bando de criminosos, que andam por aí muito bem vestidos, mas são uns mafiosos. Não há dúvida que se trata de um crime contra a humanidade, porque estão a lançar para a fome populações inteiras, para que uns poucos enriqueçam de uma maneira escandalosa. Estive em Nova Iorque e na 5.a Avenida bateram-se os recordes de venda dos produtos mais caros. Voltaram a abrir as carteiras, têm dinheiro como nunca em Wall Street, aqueles que produziram a crise.


O professor tinha dito que o neoliberalismo tinha falido, mas afinal...



Aí quase tenho de me retratar. Nunca imaginei que o neoliberalismo tivesse canibalizado tanto os estados. O neoliberalismo nacionalizou os estados, os bancos nacionalizaram os estados, não foram os estados que nacionalizaram os bancos. Passou a ideia de que um banco não pode falir. As empresas podem falir, um banco não pode falir. Faliram todos com a Grande Depressão nos EUA, mas nos últimos anos souberam como controlar os estados e começaram por fazer isso nos EUA. Quem é que nos últimos 20 anos financiou as campanhas nos EUA? Wall Street. A campanha do Obama? Wall Street. Quem é que Obama nomeia para seu consultor financeiro mais íntimo? Timothy Geithner. De onde vem Timothy Geithner? De Wall Street. Os abutres dos mercados financeiros estão a destruir a riqueza do mundo para se enriquecerem escandalosamente sem nenhum controlo e há-de haver um momento em que o povo, os governos, vão dizer basta. E os portugueses, quando começarem a sentir no bolso e na cabeça, e não só no bolso, estas medidas que vão começar a ser aplicadas.


O Presidente da República tem dito que não se deve achincalhar os mercados porque eles podem reagir contra nós...


Penso que o senhor Presidente da República está equivocado. Não há outra solução para a Europa que não seja a regulação financeira. Os mercados vão destruir o bem-estar das populações, criar um empobrecimento geral do mundo, para o enriquecimento de poucos. É necessária uma regulação forte. Não digo que seja igual àquela que se viveu nos anos 60 - quando uma empresa de Nova Iorque não poderia investir em Nova Jérsia, que fica do outro lado do rio. Mas hoje os mercados estão globalizados e os estados são nacionais, e ainda por cima não se unem. Aconselho o professor Cavaco Silva a abrir os jornais: na Grécia os juros estão a 12,5% - obviamente o país nunca vai pagar aquela dívida - apesar do dinheiro que lá se injectou.


Vamos ter confrontos sociais na rua no próximo ano?


É muito difícil prever essa situação porque não há uma relação directa entre o agravamento das desigualdades e a confrontação social. Portugal esteve metade do século xx sem democracia. Há uma cultura autoritária, de obediência, de medo. Foram 50 anos em que os outros países todos organizavam movimento sociais, sindicatos, e em Portugal nada aconteceu. Não pensemos que isto se curou nestes últimos 40 anos porque foram anos demasiadamente fáceis. Até 1974 tínhamos colónias, ficámos sozinhos 10/12 anos e em 1986 já éramos parte da Europa. Mas estou convencido que, no momento em que estas medidas se agravarem, vamos ter uma maior organização social e sobretudo sofreremos o contágio europeu. Vai haver obviamente mais contestação na Europa. É dessa contestação que vai surgir o golpe de asa de que precisamos e vamos tê-lo por pressão popular.


Nas ruas?


Nas ruas. No princípio de 2000, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, que faleceu recentemente, fez uma coisa que o transformou num pária. Achou que parte da dívida do país era ilegítima e disse aos credores: "Eu pago-vos, se aceitarem, por cada dólar que vos devo, 30 cêntimos. Agora os outros esqueçam!" O Fundo Monetário Internacional achou um escândalo. Disse que Kirchner era um "pária", que a "Argentina não cumpre". A verdade é que a Argentina fez isso mesmo. Os credores tiveram de aceitar. A Argentina levantou a cabeça e fez o seu desenvolvimento económico. Quando morreu Néstor Kirchner, a primeira coisa que fiz foi ir à página do FMI para ver o que dizia. E lá estava um elogio enorme do FMI pela capacidade de pôr a economia da Argentina de novo a crescer. Porque é que Kirchner se recusou a pagar a divida? Por pressão popular.


Uma mudança de governo poderia fazer diferença?


Nas actuais circunstâncias do panorama político, não faz nenhuma. E se fizer, neste momento, será para pior. Olhamos para o programa do PSD e o que está a ser praticado e é o quê? Mais privatização? Fim do Serviço Nacional de Saúde? São mais ou menos as medidas que o Fundo Monetário Internacional vai instituir quando aqui chegar. E vai chegar? Incrivelmente, há aí muitos tontos, economistas trauliteiros, que tenho hoje muita dificuldade em respeitar, que até parece que desejam isso. Mas desejam--no porque têm boas reformas, bons empregos, foram ministros ou estão em grandes empresas, são aqueles que não serão nada atingidos por essas medidas. Mas a maioria dos portugueses vai ser duramente atingida, porque são medidas cegas, que passam por privatizar tudo. Vejo comentadores, analistas, sociólogos deste país a dizerem que nós ainda dependemos muito do Estado e que é preciso termos confiança na sociedade. Mas que sociedade? Na filantropia, na caridade, no Banco Alimentar? O que vai ser destes jovens? Trabalho muito com estudantes, quer aqui quer nos EUA, e os meus estudantes nos EUA são cada vez mais velhos. São doutoramentos atrás de doutoramentos para adiar o desemprego. Tenho uma grande estima pelos estudantes de hoje. Às vezes quero levantar muitos problemas, mas os estudantes estão sobretudo preocupados com saber em que é que aquilo vai ajudar às suas empregabilidades. É muito difícil dizer a um estudante que um poema pode ajudar à sua empregabilidade.


Parte de entrevista ao jornal "I" por Filipa Martins, Publicado em 01 de Janeiro de 2011

OLHAR AS CAPAS


O Silêncio

Teolinda Gersão
Capa: Rogério Petinga
Livraria Bertrand
Lisboa, Janeiro de 1981

Lídia imaginou um corpo deitado numa praia, ao lado de outro corpo. Eram um homem e uma mulher e falavam. E o que diziam, ou o que a mulher dizia, era a tentativa de um diálogo fundo, mais fundo do que o diálogo de amor que se trava, ao nível do corpo, entre uma mulher e um homem. Ela procurava uma forma de encontro, através das palavras, um encontro que era, antes do mais, consigo própria, e só depois com o homem que escutava. Ou era apenas um jogo de palavras? Hesitou de repente, sem ver claro. Em algum lugar, é verdade, a falsidade começava. Talvez porque a mulher imaginada pressentia que o homem estava parcialmente fora do diálogo e lhe resistia, como se ele representasse, de certo modo, um perigo, e se pudesse finalmente converter numa agressão contra ele próprio. Talvez por medo, sim (pensou), o homem recusasse participar e levar a sério o que a mulher contava, aceitava-o apenas como um passatempo, compreensível numa praia em que todas as horas eram iguais e vazias.

OLHARES

Lisboa, vista do Alto da Penha de França.

terça-feira, 29 de março de 2011

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


A esquizofrenia que, ente o PS e o PSD , vai pelo pedaço, dois cães a um mísero mas, pelos vistos muito  apetecível osso, fez-me lembrar uma frase do filme “Quem Espera Por Sapatos de Defunto” do João César Monteiro:

“Este pais, senhores, é um poço onde se cai, um cu de onde se não sai.”

Pedro Tadeu, hoje no “Diário de Notícias”, interrogava-se e respondia-se:

“Os problemas dos portugueses vão resolver-se nas próximas eleições?
Não. Tudo está a ser construído para que o poder político venha a cair nas mãos de uma coligação de interesses: os dos que defendem o mesmo status quo que levou o País, desde há 25 anos, a abdicar da sua autonomia económica.
Essa coligação de interesses gastou o dinheiro da CEE em ostentação, em corrupção, em betão, em alcatrão e a financiar endividamento. Esta coligação de interesses pôs cada cidadão produtivo a dever à banca a casa onde mora, o carro com que circula, a TV e o computador onde se diverte.”

Vim pela frase do João César para sublinhar a esquizofrenia partidária, mas já que estou com a mão nos sapatos, falemos mais um pouco.

No seu livro “Morituri Te Salutant” João César revela-nos a planificação do filme:

 “Conta-se simplesmente: no Verão de 1965 eu rebentava (rebentava nada) se não fizesse um filme.
(…)
“Nesse tempo, vivíamos extremamente mal. Pensávamos fazer filmes e, regressados há pouco de Londres, com a nossa má cabeça devidamente iludida, éramos bem a imagem do Entusiasta.
Estávamos em 1965 e muitas inocências iriam, entretanto, ser violadas.
Este país, senhores, é um poço onde se cai, um cu de onde se não sai.”

No ofício que a Censura. “A Bem da Nação”, enviou para a distribuidora, dando conta da classificação do filme (Grupo D), bem como dos respectivos cortes, fica a saber-se que os censores não ouviram bem a frase e escreveram: “Este país, senhores, é um poço onde se cai e culpa donde se não sai.”

São estes os cortes:

a)      A frase “este país, senhores, é um poço onde se cai e culpa donde se nã sai.”
b)      Todas as fotografias do Chefe do Estado no jornal, tanto em grande plano como na manifestação;
c)      Fotografia como uma formação militar quando se ouve a palavra “repugnante”;
d)      Gesto obsceno com a mão;
e)      Canção dos marinheiros e todas as sequências ao almirante Saladas;
f)        A expressão “filhos da puta”;
g)      A frase “ao longe um país sem passado sem futuro;
h)      O apontamento escrito no papel.


João Bénard da Costa sobre o filme:

“Quando a Gulbenkian assinou um “modus vivendi” com o Centro Português de Cinema, em 1969, o primeiro plano que se concretizou entre 1969 e 1972, só contemplava quatro longas-metragens. César bateu à porta do mecenas a pedir uns extras para a sua média-metragem. Concretamente – lembro-me bem – pediu 180.000$10. Nessa altura, eu andava a fazer de controlador da Gulbenkian. Reparei na estranha soma e olhei para as parcelas. O tostão aparecia na rubrica “imprevistos”. Aparentemente ninguém mais reparou.”

Eduardo Guerra Carneiro (“não sou crítico, nem cronista de cinema”), num texto, “Um Olhar para os Sapatos”, publicado no “Diário de Lisboa” 14 de Novembro de 1971 considerava o filme de João César Monteiro “o mais português” que vira até então.

 “Não no sentido do Benfica. Mas no sentido literal: aqui e agora. Português na tristeza, nas pequenas rábulas, na frustração de pastelaria, no invejoso, nos outros (outras) que até se estão rindo para ti, ó César, para mim, para quem fala na primeira pessoa embora seja a voz dos outros e não a voz do dono. Desencanto?”

Jorge Silva Melo, que foi director de produção: “Um filme belíssimo. Um grande filme, há quem o diga. Um filme medíocre, também. Um filme belíssimo, parece-me”

Vitor Silva Tavares num texto no “República” de 21 de Janeiro de 1972, manda par o título um grito de César Monteiro “Filmar, sim, mas ferozmente”, cita Orson Welles: “Um filme só é bom quando a câmara representa um olho na cabeça de um poeta” e sintetiza: “Um tanto de Godard e um tanto de Rimbaud, um tanto de Bresson e um tanto de Vigo, um tanto de ternura e tanto de ironia, um tanto de pudor e um tanto de amargura, um tanto de anarquia e um tanto de medida coexistem nesta micropaisagem poética que é o filme de João César Monteiro.”

Gosto deste filme.

Os primeiros passos de um cineasta genial,  exagero meu, possivelmente, (“César tem de facto talento, embora não tenha aquele que julga ter”, Fernando Lopes). Recentes visitas ao filmes permitiram-me o espanto de vê-lo com os mesmos olhos daquele findar da década de 70. O silêncio, a espera.

Aceito que hoje, o filme, não provoque um pequeníssimo click que seja. Compreensível, mais que.

Mas estou como o João Bénard da Costa: “Não me tirem deste filme.”

E ESTA, HEIN ?


Cavaco lembra como Lula conseguiu promover o crescimento económico sem esquecer os mais desfavorecidos O Presidente da República elogiou hoje a forma como Lula da Silva chefiou o Estado brasileiro durante oito anos, demonstrando ser possível promover o crescimento económico sem esquecer os mais desfavorecidos.

Se calhar foi possível porque Lula não sabia o que eram as políticas responsáveis, estava bem a lixar-se para os "mercados" e nunca foi colega nem aluno do Prof. Cavaco Silva. Se calhar afinal existem alternativas, e ninguém quer que se saiba.

segunda-feira, 28 de março de 2011

TEMPO PARA AMAR, TEMPO PARA MORRER


Com este título Pedro Correia assina hoje, no “Delito Comum”, um texto comovente, um texto muito bonito.

Pode ser que a morte seja mais tranquila do que os nossos fantasmas murmuram. Mas sabemos que se pode morrer, mesmo quando não há razões aparentemente suficientes para isso.

O meu pai gostava de citar o Woody Allen, que não tinha medo da morte mas preferia não estar presente quando ela chegasse ao mesmo tempo que lembrava o Maiakovski a exigir a um qualquer químico do Futuro: “A primeira coisa que farás é ressuscitar-me, a mim que tanto amava a vida”

Acabou por se distrair e a morte, vestida não se sabe com que cor, surpreendeu-o.

A outra certeza é que não há químicos do Futuro, mas continuo a ouvir os clássicos, que volta e meia por aqui passam, com o meu pai.

E num click regresso àquele banco à porta da casa de Almoçageme,

Pouco falávamos, ouvíamos música num velho leitor de cassettes. O meu pai bebia o seu Whisky, eu, gin-tónico.

O cheiro das uvas morangueiras da parreira do quintal.

O silêncio.

OLHARES


Tarde do último dia do ano de 2010.
O arco-íris sobre Lisboa.
Impossível não lembrar a Judy Garland em “O Feiticeiro de Oz”.
A tradução da letra de “Over the Rainbow”, é uma gentileza da Margarida Ministro.

“Algures sobre o arco-íris,
estrada fora,
existe uma terra sobre a qual ouvi um dia falar
em "Lullaby"
Algures, sobre o arco-íris,
os céus são azuis
e os sonhos que te atreveste a sonhar
transformam-se em realidade
Algum dia, sobre as estrelas,
farei um pedido e acordarei
num sítio onde as nuvens ficarão para trás,
onde os problemas se derretem como rebuçados de limão,
distantes dos topos das chaminés.
Será aí que me irás encontrar.
Algures sobre o arco-íris,
pássaros azuis voam,
pássaros voam sobre o arco-íris,
porquê eles, porque não eu?

IDÍLIO EM BICICLETA


Estava um calor abrasado(r) e, ao inflectir para a esquerda, um vendedor de gelados, daqueles que transformam a bicicleta em triciclo e instalam um pequena caixa térmica à frente, chama-me. Na verdade ainda pensei ignorá-lo, fingir que não o ouvi, pois certamente queria bombardear-me com perguntas sobre a viagem e, com este calor, não me apetecia. Mas lá virei a cabeça e ele acenou-me para lá ir (ainda por cima tinha de ser eu a deslocar-me, pensei). Depois de me apertar a mão, abriu a caixa dos gelados e estendeu-me um dulcíssimo gelado de manga, de fabrico caseiro, já se vê, envolto numa película de plástico transparente e com o pauzinho artesanal. Ainda lhe perguntei se podia pagar-lho, mas respondeu-me com um sorriso feliz, que nem pensar, era “regalo” para me refrescar de tanto calor. E lá foi e eu lá fui, por caminhos que não mais se cruzarão, apenas na memória simples destas palavras singelas.

Texto e imagem de Idílio Freire

HÁ OUTRAS LUTAS A NÃO PERDER!...


Por 300 votos, os sportinguistas parecem ter decidido ficar na mesma. Parece que Bruno de Carvalho não parecia ser honesto. Ao contrário de Godinho Lopes, o dos paquetes, Luís Duque, com termo de identidade e residência, e Paulo Cristóvão, o do caso da mãe de Joana. Uma coisa é certa: o Sporting é o clube mais português de Portugal. Endividado e ingovernável.

Daniel Oliveira aqui

domingo, 27 de março de 2011

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS


Este anúncio foi publicado no “Diário Popular” de 2 de Setembro de 1969 e promovia o Algarve, hoje chamam-lhe Allgarve, mais concretamente Vilamoura, com oferta de “equipamento de recreio do mais alto nível com campo de golfe de 18 buracos, equitação, ténis, um lago artificial e pela primeira vez em Portugal um porto de recreio para 1000 barcos.”

Um Algarve que, antes anos, começara a ser destruído com a invasão de ingleses e alemães. Mário Ventura no romance, “O Despojo dos Insensatos” (1968), reporta o hediondo crime.

“Fazer fortuna a vender a sua terra a essa cambada toda que vem lá de fora… Era negócio que não me tentava. Qualquer dia não temos um único bocado nosso onde pousar os pés.”
“Oh doutor!, isso nem parece seu!, exclama o Silva Sequeira, cuja importância cresceu igualmente com a fartura turística. “Não me diga que deu agora em isolacionista. Que seria de nós se ninguém viesse a esta ponta da Europa ajudar-nos a viver? Ainda bem que assim é. Deixe-os vir, deixe-os vir, que isso có é bom para nós” (…) “Deixe-os lá! Trazem dinheiro, é o que importa! O senhor verá o que é este Algarve daqui por uns anos. Nem o reconhece!”

Silva Sequeira tinha razão: ninguém hoje reconhece o Algarve… mas pelos piores motivos!

Em Janeiro de 1963, na revista “Távola Redonda”, Sophia Mello Breyner Andresen escreveu um artigo que intitulou “Pelo negro da terra e pelo branco do muro” onde dava conta das suas preocupações com o que estava a acontecer no Algarve. Hoje, verificamos que o pessimismo de Sophia se transformou num enorme pesadelo.

“Há uma beleza que nos é dada: beleza do mar, da luz, dos montes, dos animais, dos movimentos e das pessoas.
Mas há também uma outra beleza que o homem tem o dever de criar: ao lado do negro da terra é o homem que constrói o muro branco onde a luz e o céu se desenham.
A beleza não é um luxo para estetas, não é um ornamento da vida, um enfeite inútil, um capricho. A beleza é uma necessidade, um princípio de educação e de alegria.
(…)
Quando olhamos à nossa roda as aldeias, vilas e cidades de Portugal temos de constatar que quase tudo quanto se construiu nas últimas décadas é feio. Feio e - ai de nós! - para durar: Feias as obras públicas e feias as obras particulares. As excepções à regra de fealdade são raras.
Costuma dizer-se que a nossa pobreza é a origem dos nossos males. Mas o que caracteriza grande parte da nossa arquitectura desta época é o novo-riquismo. Um novo-riquismo exibicionista – quase sempre sem funcionalidade e sempre sem cultura e sem sensibilidade
(…)
Penso neste momento especialmente na terra do Algarve, com suas praias, suas grutas, seus promontórios, seus muros brancos, sua luz claríssima. É preciso não destruir estas coisas. É preciso que aquilo que vai ser construído não destrua aquilo que existe.
A arte é sempre a expressão duma relação do homem com o mundo que o rodeia. A arquitectura é especificamente a expressão duma relação justa com a paisagem e com o mundo social. Fora destas coordenadas só há má arquitectura.
Afirma-se que é necessário desenvolver turisticamente o Algarve. Para isso será preciso construir. Mas é necessário que aqueles que vão construir amem o espaço, a luz e o próximo. Existem todas as condições para que se possa criar no Algarve uma boa arquitectura: ali temos uma paisagem e uma luz que pedem “arquitectura”, ali encontramos um uso belo e tradicional do barro e da cal; ali temos uma arquitectura local lisa e pura como uma arquitectura moderna, uma arquitectura popular cujos temas o arquitecto poderá desenvolver duma forma mais técnica e mais culta: ali temos um clima que facilita a vida e propõe soluções de extrema simplicidade.
Ali poderemos ter os materiais, as inovações, a técnica e a cultura do nosso tempo. Ali poderão trabalhar os arquitectos competentes que existem no nosso país.
Mas é urgente evitar os seguintes perigos:

A incompetência
O saloísmo
As especulações com os terrenos
Os maus arquitectos
O falso tradicionalismo
A mania do luxo e da pompa
As obras de fachada

Acima de tudo é preciso evitar a falta de amor: De todas as artes a arquitectura é simultaneamente a mais abstracta e a mais ligada à vida. Aqueles que não amam nem o espaço, nem a sombra, nem a luz, nem o cimento, nem a pedra, nem a cal, nem o próximo, não poderão criar boa arquitectura.”

Nota do editor: as transcrições do texto de Sophia aqui reproduzidas, são retiradas de uma divulgação feita pelo “Público” em Agosto de 2004.

sábado, 26 de março de 2011

POSTAIS SEM SELO


Em prinípios do século XIX as castas plantações de algodão que havia nas margens eram trabalhadas  por negros, se sol a sol. Dormiam em barracas de madeira, sobre o, piso de terra. Fora da relação mãe e filho, os parantescos eram convencionais e turvos. Tinham nomes, mas podiam prescindir de apelidos. Não sabiam ler. A sua voz enternecida de falsete cantarolava em inglês de lentas vogais. Trabalhavam em filas, curvados sob o azorrague do capataz. Fugiam, e homens valentes saltavam sobre formosos cavalos, levando em seu rasto fortes mastins.

Jorge Luís Borges, em História Universal da Infâmia

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS



Por aquele tempo dizia-se que a “TV” era fácil de lavar, rápida a secar e que dispensava “realmente” o ferro.

Ainda se lembram do “slogan”?

“TV: A CAMISA DO HOMEM QUE A MULHER PREFERE.”

Anúncio publicado no “Diário de Notícias” de 3 de Dezembro de 1968.

sexta-feira, 25 de março de 2011

IDÍLIO EM BICICLETA



Aqui não existe antes nem depois...
...apenas a simplicidade do instante.

Texto e Imagem de Idílio Freire

POSTAIS SEM SELO


“O Sol parece a canção do memino que saboreou aroma de baunilha pela primeira vez numa manhã de Priamavera.”

Mário Castrim

ELOGIO DA DIALÉCTICA


“A injustiça avança hoje a passo firme.
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são.
Nenhuma voz além da dos que mandam.
E em todos os mercados proclama a exploração;
isto é apenas o meu começo
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem:
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos.

Quem ainda está vivo não diga: nunca.
O que é seguro não é seguro.
As coisas não continuarão a ser como são.
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca?
De quem depende que a opressão prossiga? De nós.
De quem depende que ela acabe? Também de nós.
O que é esmagado, que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha?
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.
E nunca será: ainda hoje.”

Bertolt Brecht em “Poemas”, tradução de Arnaldo Saraiva, Editorial Presença, Lisboa s/d

quinta-feira, 24 de março de 2011

LUA DO DIA DO PAI


Estou certa que muitos de vós repararam na lua de sábado, e com certeza muitos a fotografaram. Pois bem, eu também me deparei com uma lua absolutamente fantástica e posicionada de uma forma indescritível, criando um cenário soberbo!
Foi com muita pena minha que não consegui dedicar o tempo que esta foto merecia, tive tempo apenas para dar um disparo e em modo automático.
Mesmo assim partilho com vocês a foto que tirei que está longe, muito longe do cenário real. O que me conforta é que mesmo não tido tempo para poder montar o tripé e fazer dezenas de disparos em modo manual até conseguir a "FOTO", é saber que esta imagem irá para sempre ficar na minha memória e que a lua apesar de ser a mesma, não é igual para todos.

Texto e imagem de Vanessa Mira

A VIDA SEGUNDO WOODY ALLEN


“Na minha próxima vida, quero viver de trás para frente.

Começar morto, para despachar logo o assunto.

Depois, acordar num lar de idosos e ir-me sentindo melhor a cada dia que passa.

Ser expulso porque estou demasiado saudável, ir receber a reforma e começar a trabalhar, recebendo logo um relógio de ouro no primeiro dia.

Trabalhar 40 anos, cada vez mais desenvolto e saudável, até ser jovem o suficiente para entrar na faculdade, embebedar-me diariamente e ser bastante promíscuo.

E depois, estar pronto para o secundário e para o primário, antes de me tornar criança e só brincar, sem responsabilidades. Aí torno-me um bébé inocente até nascer.

Por fim, passo nove meses flutuando num "spa" de luxo, com aquecimento central, serviço de quarto à disposição e com um espaço maior por cada dia que passa, e depois - "Voilà!" - desapareço num orgasmo.”

O Scott Fitzgerald fez um conto com base numa história deste tipo, que deu origem a um filme recente de algum sucesso: “O Estranho Caso de Benjamin Button”

Cortesia de Luís Miguel Mira

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


PORNOCINE


“Ah, deixem-se de abraços e de beijos,
de grandes planos de frentes e traseiros!
Não se lambam sob a luz cruenta
dos projectores.
Poupem-nos a essas cópulas
tecnicolores.
Na posição de «o missionário», denegrida,
ainda se move muita gente, muita vida.

E se a Carole não gosta, gosta a Ana!
E viva o sexual fim-de-semana!

A gratificação oral, que põe os olhos
do homem iguais aos do carneiro
mal morto,
é barco balanceiro
que encontra, no cinema, alguns escolhos,
por isso não se pisam os canteiros
ao entrar em tal horto.

E se a Carole não gosta, gosta a Ana!
E viva o sexual fim-de-semana!

Das cruas sodomias
pé ante pé a câmara se aproxima.
Por ângulos interessantes,
quase se espiritualizam os amantes.
Bertolucci emprega a margarina
no seu escabroso edificante.
Porém, lambe de mais o filme,
lambe de mais a cria,
e é assim - clássico! - que já está na estante...

E se a Carole não gosta, gosta a Ana!
E viva o sexual fim-de-semana!

Mais corajoso - e feio - o Pasolini serve-se
do amor com truculência, verve
e poucas ilusões.
Nele, a fornicação é quase sempre assalto
a privilégios.
Talvez por isso não mandem os colégios
ver as suas sessões...
E se a Carole não gosta, gosta a Ana!
E viva o sexual fim-de-semana!
De modo que a câmara aguenta
mais depressa a velatura que a franqueza.
Para que Eros durma em nossa casa
É preciso saber abrir-lhe a cama
E pôr-lhe a mesa...
E se a Carole não gosta, gosta a Ana!
E viva o sexual fim-de-semana,
eroturismo à portuguesa!”

Alexandre O'Neill, em “Anos 70 Poemas Dispersos”, Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro 2005

quarta-feira, 23 de março de 2011

SUBITAMENTE NA NOITE PASSADA



Morreu Liz Taylor, aos 79 anos, a inglesa por mero acaso, foi uma das grandes Divas de Hollywood. Nunca tive uma admiração extraordinária por ela, só a sua ligação a um dos meus grandes ídolos, James Dean, me fez prestar-lhe mais atenção. O dono aqui da tasca fará concerteza uma homenagem à altura da personalidade, eu limito-me a assinalar e a lembrar o seu desempenho em "O Gigante".

terça-feira, 22 de março de 2011

INCENDIÁRIOS


Imagine-se um pinhal a arder, e em vez de se chamarem os bombeiros, chamarem-se os incendiários para apagar o fogo....eis a situação actual em que Portugal se encontra. E os patetas alegres batem palmas, considerando que quem nos colocou na crise são os mais "responsáveis" para nos tirar dela, ou será para afundar isto em definitivo ?

OLHARES



Aos anos que este carro faz parte da decoração desta loja de trapos na Rua do Loreto em Lisboa

A APRENDIZAGEM DO OLHAR


Pode-se ensinar a técnica, o manuseamento correcto da máquina, a escolha certa dos tempos de exposição, as virtudes da profundidade de campo, os mecanismos complicados da revelação e da ampliação, as regras antigas da composição. Pode até ensinar-se a imitar o que os outros fizeram. O que não se ensina (o que não quer dizer que não se aprenda) é a ver. E é bom que assim seja. Se todos tivéssemos o olhar do Cartier Bresson, todos fotografaríamos como ele, o que, além de monótono, seria triste. A aprendizagem do olhar faz-se só. Não serve adoptar um olhar dum mestre senão para tentar ir mais longe que do que ele ou, por rebeldia, fazer o que ele não fez.

Texto e fotografia de Gérard Castello-Lopes

POSTAIS SEM SELO


José Gomes Ferreira, na entrada do dia 28 de Abril de 1967, do seu “Dias Comuns”, vol II

“Sempre é verdade que se envelhece?

Legenda: fotografia de Luís Miguel Mira

segunda-feira, 21 de março de 2011

O QUE DIZ MOLERO


No semanário  Sete, de 13 de Julho de 1978, Dinis Machado começa assim uma sua crónica:

Um dia, a long time ago, como dizia Ed. G. Robinson mascarado de gangster nostálgico já não me lembro em que fita, abri os olhos. Fiquei espectador.

Esse dia de Dinis Machado ficar espectador, aconteceu em Lisboa, levava o Março de 1930, 21 dias.
Andou escondido num tal de Dennis McShade e escreveu três policiais. Um dia abalançou-se a um outro género, deu-lhe o título  de O Que Diz Molero e colocou-lhe nome próprio. Luiz Pacheco, com o seu olho de águia, topou o livro à primeira, botou crítica no suplemento literário do Diário Popular e o livro, logo no ano de publicação, 1977,  teve cinco edições – um enorme sucesso de público e crítica.

No 10º aniversário da publicação de  O Que Diz Molero, Dinis Machado deu uma entrevista ao JL em que humildemente reconhece que não estava preparado para o sucesso do livro. A jornalista pergunta-lhe se o êxito do livro não o estimulara a escrever, durante esses dez anos, mais nenhum romance.

Paralisou-me. Embora o meu projecto, desde miúdo, fosse fazer um livro memorável, não compreendi o que se estava a passar. Perdi sentido crítico.

Volta e meia volto a  O Que Diz Molero.

Dizia o Helder Piunho que um livro como este só poderia ter sido escrito em Lisboa e por quem a conhecia muito bem , por dentro, por fora, palmo a palmo.

Então a tua tia chalou?, perguntou um dia o Zuca", disse Austin "como é que ela faz?, tem ataques?, é maluca de ter de ficar atada?, de ter ataques com espuma na boca ou é só maluca de não ligar a nada?, o rapaz disse que era maluca de falar em comboios e em serradura, que era um bocado triste e não fazia mal a ninguém, fazia-lhe impressão porque ela já não o conhecia, estava paradinha no banco de lona, então o Bertinho Ranhoso dizia que os malucos com uma grande calma às vezes eram os piores, estão com uma grande calma e só pensam em meter facas no bucho das pessoas, o Peida Gadocha dizia que também tinha uma tia maluca, mas era só maluca de comprar vestidos, tinha mais de quatrocentos vestidos, comprava os vestidos e passava-lhes a mão, era maluca de passar a mão pelos vestidos, o Zuca dizia que quatrocentos vestidos era uma peta das antigas, isso ninguém tinha, o Peida Gadocha dizia que se não eram quatrocentos eram duzentos, isso não interessava, ela era chalada de mexer nos vestidos e de estar sempre a dizer está bem mas tenho de mudar de vestido, dizia os meus vestidinhos, os meus vestidinhos, depois ficava nervosa e ia comprar mais vestidos, o Mané Borbulhas dizia que tinha um tio e uma tia que ficaram malucos ao mesmo tempo, foi por causa de uma roca, ele tinha uma roca em cima da mesinha-de-cabeceira, ela começou a embirrar com a roca, que ele gostava mais da roca do que dela, ele disse que nem ligava à roca, estava ali porque tinha um feitio giro, tinha-a comprado na Feira da Ladra, mas para a chatear começou a cantar uma música que é a Traviata com versos a falar da roca, que lindo som que esta roca tem, tatati, tatatitati, ela para se vingar escondeu-lhe as calças e ele não podia sair de casa, cantava a Traviata à procura das calças, e ao fim de três dias chateou-se e saiu para a rua em cuecas e a tocar a roca, foi logo engavetado pelo polícia, a família toda foi à esquadra, a minha mãe levou-lhe umas calças do meu pai, mas ele não quis, que ficava em cuecas e a tocar a roca enquanto não lhe dessem as calças dele, a minha tia disse que lhe dava as calças se ele deitasse a roca fora, depois fizeram as pazes, o meu tio deu a roca à minha mãe, que ma deu a mim, era eu puto, eles depois deixaram de ficar malucos, a roca é que os chalava, o Zuca então dizia que também tinha um tio maluco, andava sempre de boca aberta e a pensar em nada, era despedido dos empregos porque o apanhavam de boca aberta e a pensar em nada, andava aí pelas ruas com livros debaixo do braço, vai lá a casa só no Natal, dizia ele, no último Natal ficou de boca aberta no meio do jantar, fez-me uma festa na cabeça e foi-se embora, deixou a perna de peru no prato, às vezes encontro-o e faz-me uma festa na cabeça, depois ficamos a olhar um para o outro, pergunta-me se eu já ando na escola, eu começo a falar e ele fica de repente de boca aberta, faz-me outra festa na cabeça e vai-se embora, ninguém consegue falar com ele, desliga quando lhe dá o aparte de ficar de boca aberta e de pensar em nada, o que ele gosta é de dar milho aos pombos nas praças, um dia o meu pai deu-lhe uma grande descompostura, disse-lhe o piorzinho, e depois no fim perguntou-lhe e agora o que é que vais fazer?, vou dar milho aos pombos, disse ele, fez-me uma festa na cabeça e foi-se embora de boca aberta, parece que os pombos é que o conhecem bem, poisam-lhe nos ombros e na cabeça, comem o milho da mão dele, um emprego de dar milho aos pombos é que era bom para ele, às vezes ele anda aqui no Largo do Navegante a dar milho aos pombos muito satisfeito da vida, anda de largo em largo, senta-se nos degraus das estátuas e põe-se a ler uns livros que ninguém percebe nada de um gajo chamado Pessoa, não é o António Pessoa, porque esse é o das balanças, é outro, se calhar é um livro sobre pombos, não sei, uma vez foi para a tropa e desertou, foram dar com ele numa praça a dar milho aos pombos, perguntaram-lhe porque é que ele tinha desertado e ele disse que marchar lhe fazia bolhas nos pés, acabou por ser preso e apanhou uma data de castigos, mas punha-se de boca aberta e não ligava a nada, depois mandaram-no para um manicómio e foi uma grande confusão, o médico perguntou ao meu pai se o meu tio tinha uma coisa que era intermitências não sei quê, o meu pai perguntou ao meu tio se ele tinha essas intermitências, o meu tio perguntou de que cor?, depois viram-lhe a língua e os olhos, ele nos intervalos perguntava ao enfermeiro não se importa de me dar o meu Pessanha?, que é um livro de outro gajo, o médico fazia-lhe perguntas para malucos, mas ele não ligava, só ligava ao Pessoa e ao Pessanha, queria era ficar de boca aberta a pensar em nada, devia sentir a falta dos pombos, acabaram por mandá-lo embora porque não havia lugares, os lugares eram precisos para os malucos assassinos e para os que espumam da boca, vai lá a casa no Natal, agora mesmo está ele, até aposto, a dar milho aos pombos num largo qualquer, a ler livros e de boca aberta, há malucos à brava mas não são perigosos, o meu pai diz que o Bigodes Piaçaba é maluco de ajudar os pobres, de querer pias limpas e banheiras e de acabar com os percevejos, de fazer umas grandes fitas com os senhorios e de querer endireitar o mundo, é um maluco que pensa nas coisas, em escolas e em hospitais, há malucos com outros apartes, de andarem a falar sozinhos ou de arriarem sempre do melhor, como o Joca Farpelas, ou de fazerem discursos que não interessam nada, e os malucos de contar o dinheiro, contam o dinheiro quinhentas vezes, depois falta-lhes um tostão e voltam a contar, se a porra do tostão não aparece até ficam doentes de cama, e os malucos de tocar pífaro só gostam de estar a tocar pífaro e o resto não interessa, todos os gajos têm um tio maluco, às vezes há gajos que têm uma data de malucos na família, o Padeirinha diz que a avó dele é maluca de dizer que lhe roubam coisas da caixa da costura, os dedais, as agulhas e os botões, um dia foi cá uma fita por causa de um botão de madrepérola, o avô do Padeirinha foi aos arames e disse que queria que o botão se fodesse, e bateu com a porta como de costume, o Padeirinha anda sempre a arranjar a fechadura, pede à avó que acabe com a mania que lhe roubam a caixa da costura e ao avô para não bater com a porta, mas eles não ligam, os malucos não ligam, é esse o aparte deles, até a minha mãe um dia acordou maluca, subiu-lhe à cabeça uma coisa que é a ureia, começou a dizer ao meu pai que andava um cágado nas dunas, o meu pai à rasca dizia um cágado nas dunas?, um cágado nas dunas?, levou-a para o hospital das pernas partidas, conhecia lá um enfermeiro, o meu pai começou a dizer às pessoas todas que a minha mãe dizia que andava um cágado nas dunas, uma enfermeira disse que ali era o hospital das pernas partidas, das doenças de pus e coisas assim, dizia que as doenças de cágados nas dunas era no manicómio.

Legenda: Esta fotografia de Dinis Machado é da autoria de Augusto Cabrita, seu cunhado.

DIA DA POESIA


Os que passam por aqui sabem que não necessitamos de um dia de para trazer as palavras dos poetas. O Cais do Olhar é por si uma ideia de que não há olhares sem poesia, nem cais sem chegadas e despedidas, o mundo demasiado grande a engolir-nos, o adeus, mas viramo-nos para a frente, para a seguinte aventura louca sob os céus, tal como escreveu Jack Keroauc pela estrada fora.
Maria do Rosário Pedreira é quem nos visita neste dia, dito da poesia, que também é dia da árvore, e bom seria que as gentes pensassem todos os dias em poesia, na poesia e não apenas porque é dia de.


“Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.
 
 Mãe, eu quero ir-me embora – os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.
 
 Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.
 
 Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste um dia que chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.”

Maria do Rosário Pedreira em “O Canto do Vento nos Ciprestes” Gótica Editora, Lisboa 2007

OLHARES


Não devemos adiar conversas mais de vinte anos e tirei a conversa do espeto com Delmiro, o galego. O Delmiro trabalha na casa Os Perus, à praça do Chile, a vinte metros da estátua de Fernão de Magalhaes, é a cervejaria com dois grandes machos de leque aberto no “placard” da porta, mas nunca lá assou perus, só frangos.
Sao os melhores do mundo que conheço, e já dei umas voltas, sao muito anos a assar frangos, diz-se, mas aqui é uma vida. Comi no Chile, na fronteira como Peru, em Arica, ondes os pelicanos atravessam a rua fora da passadeira, os papos gigantes de escroto a abanar, e era um bom frango assado mas nao como o do Delmiro Candeira Gonzalez, o galego. Carvao com espeto: o frango sobe e desce patamares, rolando feliz nas brasas como a Terra ao Sol.
Há vinte anos vivi nesta zona onde mulheres de salto esclareciam a noite:
- Levas uma naifada nos tomates que tos abro até o pescoço...
mudei de casa sete vezes mas sempre cruzei Lisboa, uma vez por semana, pelos frangos do Delmiro. Os dias de futebol, europeus, mundiais, pedem-me frango. Nunca tivemos a conversa. Nem demos um passou-bem completo, ele estende o braço para nao me sujar, os dedos dourados de sal grosso, limao, louro e sumo picante de frango. Uma vez, Delmiro lembrou José Cardoso Pires a terminar as madrugadas na tasca ao lado, a antiga Casa dos Perus, hoje fechada, onde ele e o seu irmao poeta galego cresceram, mais nada.”

Rui Cardoso Martins, “Público”, 6 de Junho de 2010

domingo, 20 de março de 2011

OLHAR AS CAPAS


Todos os Anos Pela Primavera

Luís de Sttau Monteiro
Guimarães Editores
Lisboa, Novembro 1963

Primeiro preso – Você está aqui há sessenta e sete dias sozinho? (Senta-se e enterra a cabeça nas mãos) Meu Deus!
Segundo Preso – Não há Deus
Primeiro Preso – Não há…
Segundo preso (interrompendo) – Não. (Pausa) Não há Deus.
Primeiro preso – Então o que há?
Segundo preso – Filhos da puta, bandidos, o que você quiser… mas Deus não: Deus é coisa que não existe.
Primeiro preso – Para mim existe.
Segundo preso – Se Deus existe, está tudo perdido, tudo.

OLHARES


O DINHEIRO DO POVO



Dois títulos retirados da "Vida Mundial" nº 1853 de 20 de Março de 1975.

sábado, 19 de março de 2011

QUOTIDIANOS


Há aquele poema do Alexandre O’Neill que diz que o medo vai ter tudo e é isso que o medo quer. 

O medo do medo.

A luta contra Salazar e Caetano está cheia de histórias, umas pequenas, outras grandes.

António Alçada Baptista esbanjou a herança que lhe deixaram na criação da “Moraes Editora” e da revista “O Tempo e o Modo”.

Um dia contou esta pequena história:

“A situação do medo era tal que as pessoas nem o disfarçavam, achavam-no natural. Lembro-me que uma vez, alguém me encontrou na rua, deu-me os parabéns pela existência de “O Tempo e o Modo” e disse-me: “Sabe, eu não sou assinante, eu compro sempre nas livrarias porque tenho medo que um dia vá lá a PIDE buscar o ficheiro dos assinantes.”

POSTAIS SEM SELO


Experimento uma terrível clareza em momentos em que a natureza é tão linda. Perco a consciência de mim mesmo e os quadros vêm como um sonho.

Vincent Van Gogh

Legenda:  Sunset de Van Gogh

sexta-feira, 18 de março de 2011

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS

NACIONALIZAÇÃO DA BANCA


Fotografia de Alfredo Cunha no álbum “Disparos”, Editora “Terra Livre”, Lisboa, Março 1977

A BEM DA NAÇÃO


Podem sempre dizer, o governo e seus arautos, que como isto foi uma conquista do PREC, não faz sentido manter nos dias de hoje, é contra a modernidade. 
Determine e mande-se publicar.

SARAMAGUEANDO


Há nove meses, José Saramago não subiu para as estrelas porque à terra pertencia.

Registando a efeméride, em Tias, Lanzarote, é hoje aberta ao público, “A Casa”, complexo que integra a casa e a biblioteca de José Saramago.

Num quarto do “Hotel Bragança”, no decorrer de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, Fernando Pessoa e Ricardo Reis filosofam. Saramago coloca na boca de Fernando Pessoa que demoramos nove meses a sair do ventre da mãe e nove meses para sermos esquecidos.

“Soube que me foi visitar, eu não estava mas disseram-me quando cheguei, e Ricardo reis respondeu assim, Pensei que estivesse, pensei que nunca de lá saísse, Por enquanto saio, ainda tenho unas oito meses para circular à vontade, explicou Fernando Pessoa, Oito meses porquê, perguntou Ricardo reis e Fernando Pessoa esclareceu a informação, Contas certas, no geral e em média, são nove meses, tantos quantos os que andámos na barriga das nossas mães, acho que é por uma questão de equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos podem ver mas todos os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco, salvo casos excepcionais nove meses é quanto basta para o total olvido, e agora diga-me você que é que o trouxe a Portugal.”

Acontece que, nove meses depois, continuamos a recordar quem não queremos esquecer.

quinta-feira, 17 de março de 2011

BEM A SINTO! BEM A SINTO!


Melhor que a Primavera é estar à espera que ela chegue.

Depois do longo inverno a natureza a espreguiçar-se para os dias que aí vêm. A vida que renasce. Lembro o meu avô que, todos os anos desmesuradamente, aguardava a chegada da Primavera. Odiava Janeiro e Fevereiro  e os primeiros salpicos de sol primaveril traziam-lhe um brilhozinho aos olhos. Mas, pelos começos de um longínquo Fevereiro, não conseguiu resistir e, serenamente, partiu.

O dia do equinócio é igual à sua noite. Na horta semeiam-se coentros e morangos. Memórias. cheiros. No miradouro do Monte Agudo, quando miúdo, ficávamos a ver a chegada dos primeiros gafanhotos, gafanhoto que em francês é uma palavra bonita: grasshopper. Passar o tempo nisto. Suavemente. Dias primaveris, águas de Março anunciando o Verão. O cheiro da terra.

Há gostos assim. Há quem diga que são os melhores…

Primavera. Sagração. A festa. Os parágrafos de Raul de Carvalho:

“Dizer que Primavera é simples e palpável como um coração. Um coração que fala. Um coração que canta.
Dizer que estamos na Primavera…
Dizer que eu amo gente de quem não sei o nome, nem é preciso; que amo estas ruas estreitas, cariciosamente recolhidas ao sol, um sol camarada; que amo este rio com barcos verdadeiramente azuis, tão azuis como o mar, tão azuis que se confundem; dizer que amo esta palavra anónima que corre de boca em boca dizendo que é Primavera.
E todos os anos haverá semelhante milagre. A ele assisto."

Já agora, fiquem a saber que no próximo dia 19, véspera de equinócio, poderão observar   a maior Lua Cheia das últimas duas décadas.

Mais pormenores aqui

OLHAR AS CAPAS



Pastoral Americana

Philip Roth
Tradução: Maria João Delgado e Luísa Feijó
Capa: Rui Garrido
Publicações Dom Quixote
Lisboa, 2010

Ela desistiu porque há coisas que para ela são mais importantes do que as letras B-b-b.A. num bocado de papel. Chamas a isto extremismo? Não, eu acho que extremismo é continuar a viver como se nada fosse quando existe este tipo de loucura, quando as pessoas são exploradas à esquerda, à direita e ao centro, e a gente continua a enfiar o fatinho e a gravata e a ir todos os dias para o emprego. Como se nada se passasse. Isso é que é extremismo. É de uma estupidez extrema, é o que é.

IDÍLIO EM BICICLETA


Das viagens tinha o nervoso do antes mas ninguém lhe conhecia ânsias de chegar.

Imagem de Idílio Freire