sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

OS IMBECIS VÃO TOMAR CONTA DO MUNDO


 Possivelmente sei das razões que em cada dia do final do ano me lembrar da frase de Umberto Eco, mas nunca atino com a razão:

«Os imbecis vão tomar conta do mundo.»

Miguel Torga, em Milão, no último dia do ano de 1932:

«Não se pode dormir com tanta gente lá fora, aos uivos, a festejar o ano novo. Como se fosse possível um ano novo rer melhor do que o velho!»

Vergílio Ferreira, no findar de 1978:

«Estava eu a querer saber o que vou fazer este ano. Não sei.»

António Alçada Baptista, em Dezembro de 1984:

«Olho para o novo ano com fé e esperança. O meu incansável de sobrevivência faz-me recordar mais as alegrias que tive do que as tristezas. O que é que querem que eu faça? Gosto de viver e detesto a existência em forma de lamúria.»

O velho ano está quase a escapulir-se.

Foi mais um, e foi péssimo!

A Sophia gostava de dizer que não sabia por que as pessoas celebravam a passagem do ano porque o ano estava sempre a passar.

O tempo do meu cachimbo estar apagado, o meu copo vazio e a chegar-me a lembrança do Helder Pinho, na passagem do ano de 1972, a telefonar para casa do meu pai e a gritar-me, o Helder morava, junto ao Tejo, na Rua da Manutenção: «eh pá! estou a ouvir a ronca dos barcos no Tejo a saudar o novo ano. Que maravilha!...que maravilha.» e mais outra lembrança, José Saramago, na noite estrelada cálida e tranquila de Lanzarote, no findar do ano de 1994: «Ninguém mais no mundo quer esta paz?»

Agora, segue-se o salto sem rede no vazio incógnito do novo ano.

Será, então, tempo de voltar a acender o cachimbo, voltar a encher o copo.

Será?

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Dito já que começaram as iniciativas que visam registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um parágrafo, aquilo que constitui os milhares de sublinhados que, ao longo dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam a  Biblioteca da Casa.

Pegamos em O Ano da Morte de Ricardo Reis para lermos o que José Saramago nos tem para dizer sobre um findar de ano:

«Hoje é o último dia do ano. Em todo o mundo que este calendário rege andam as pessoas entretidas a debater consigo mesmas as boas acções que tencionam praticar no ano que entra, jurando que vão ser rectas, justas e equânimes, que da sua emendada boca não voltará a sair uma palavra má, uma mentira, uma insídia, ainda que as merecesse o inimigo, claro que é das pessoas vulgares que estamos falando, as outras, as de excepção, as incomuns, regulam-se por razões suas próprias para serem e fazerem o contrário sempre que lhes apeteça ou aproveite, essas são as que não se deixam iludir, chegam a rir-se de nós e das boas intenções que mostramos, mas, enfim, vamos aprendendo com a experiência, logo nos primeiros dias de Janeiro teremos esquecido metade do que havíamos prometido, e, tendo esquecido tanto, não há realmente motivo para cumprir o resto, é como um castelo de cartas, se já lhe faltam as obras superiores, melhor é que caia tudo e se confundam os naipes.»

SÍLABA


Toda a manhã procurei uma sílaba.

É pouca coisa, é certo: uma vogal,
uma consoante, quase nada.

Mas faz-me falta. Só eu sei
a falta que me faz.

Por isso a procurava com obstinação.

Só ela me podia defender
do frio de janeiro, da estiagem
do verão. Uma sílaba.

Uma única sílaba.

A salvação.

Eugénio de Andrade em  Ofício de Paciência

Colaboração de Aida Santos

Legenda: Desenho pintado por Aida Santos

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

CHOVER NO MOLHADO

1 de Janeiro de 1992

O calendário bem o diz. Mas é chover no molhado. Há muito tempo já que os anos são sempre velhos em Portugal.

Miguel Torga em Diário Volume IX

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A VELHICE É ISSO...

14 de Maio de 1977

A velhice é isso – sermos só nós a nossa testemunha.

Vergílio Ferreira em Conta-Corrente 2º Volume

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

SENSAÇÃO...

16 de Setembro de 1969

Ouvi agora, transmitido pela Rádio, Dido e Eneias de Purcell. Sensação, como sempre da Hora da Morte.

José Gomes Ferreira em Dias Comuns Volume VIII

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

NOTÍCIAS DO CIRCO

1.

O Presidente da República afirmou que Mendes Calado mostrou disponibilidade para deixar o cargo de Chefe de Estado-Maior da Armada.

O Almirante garante que a saída do cargo não acontece por «vontade própria.

Marcelo e o Governo aparecem envolvidos numa trapalhada de meninos brincando no recreio da escola.

Henrique Gouveia e Melo tomou hoje posse, numa cerimónia rodeada de ruidoso silêncio, em que ninguém aparece bem na fotografia.

2.

Mais uma de Marcelo Rebelo de Sousa que pode ler-se em O Tempo das Cerejas de Vitor Dias:

«Apesar de ser véspera de Natal  não posso deixar de notar que um Presidente da República não tem nada que pedir maiorias em eleições legislativas. A única coisa que, sobre as eleições, pode dizer é que deseja que os portugueses votem de acordo com as suas convicções.»

3.

Manuel Pinho, ex-ministro de um governo de José Sócrates, declarou há dias:

«Fiz mal em ir para o Governo. Perdi uma fortuna incalculável.»

O juiz Carlos Albuquerque determinou que Manuel Pinho fica em prisão domiciliária enquanto não fizer o pagamento de 6 milhões de euros de caução.

Por uma qualquer arte mágina alguém decidiu agora que o juiz Carlos Albuquerque já não ficará com o caso EDP em que o nome de Manuel Pinho se encontra envolvido.

4.

Também por uma qualquer arte mágica, soube-se agora que o russo Roman Abramovich, um dos homens mais ricos do mundo, é cidadão português desde Abril.

Depois de, em rapazinho,  andar a vender patinhos de borracha, nos anos 90 construiu uma fortuna de 12 mil milhões de euros na indústria do petróleo.

Como foi possível esta cidadania?

Por onde e para quem escorreu o dinheiro do suspeitoso novo cidadão português?

HORAS DE A LOJA FECHAR...

23 de Janeiro 1978

A certa altura, temos enfim a vida em ordem – os filhos arrumados, as ideais arrumadas, os livros escolhidos, a mulher enfim escolhida, o trabalho realizado, todas as opções feitas. É a altura finalmente de vivermos, de gozarmos do que acumulámos, de sermos homens a valer. Mas é justamente nessa altura que nos põem fora da vida. São horas de a loja fechar ou de ser trespassada.

Vergílio Ferreira em Conta-Corrente, Volume II

A MORTE NA MORTE SE TERMINA

 

A morte na morte se termina.

E amamos na esperança que a alimenta

não a transparente ferramenta

mas a alma que passa e se ilumina.

 

Porque estarmos na morte nos designa.

E a própria virtude que a sustenta

nela se afirma e nos ensina

a iluminar também a ferramenta

 

por onde a alma se ilumina e passa.

E estar na morte segue o seu destino

de saber que por esta morte baça

 

ir à morte é lermo-nos num signo

que se acende somente, repentino,

quando lermos é lido em obra e graça.

 

 Fernando Echevarría 

domingo, 26 de dezembro de 2021

QUANDO JÁ NÃO SÃO PRECISAS PARA NADA

7 de Setembro de 1968

E vou encerrar o meu dia agitado com esta frase que sublinhei mentalmente durante a leitura de Entre Mulheres Solitárias de Pavese:

«Maurizio diz sempre que se obtêm coisas, mas quando já não são precisas para nada.»

José Gomes Ferreira em Dias Comuns, Volume V

SONETO PRESENTE

Não me digam mais nada senão morro

aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que fôr o meu


José Carlos Ary dos Santos em Resumo

sábado, 25 de dezembro de 2021

AS APARÊNCIAS...

29 de Junho de 1992

Quando alguém me vem dizer que os meus textos se tornaram «mais claros», suspeito sempre que se trata de um imbecil. Eu sei que os meus textos se tornaram mais comunicativos, mais contagiantes isto é, que uma certa aridez teorizante se foi desvanecendo. Mas cuidado! Um dia a Marguerite Duras disse-me de uma determinada personagem que havia conhecido em Portugal: «Ela não é bela; tem a aparência da beleza.» Diria o mesmo do que hoje escrevo: os meus textos não são claros; têm a aparência da clareza.

Eduardo Prado Coelho em Tudo O Que Não Escrevi, Volume II

REVISITAÇÃO DE POEMAS DE NATAL

Quando Vieres

Quando vieres
Encontrarás tudo como quando partiste.
A mãe bordará a um canto da sala...
Apenas os cabelos mais brancos
E o olhar mais cansado.
O pai fumará o cigarro depois do jantar
E lerá o jornal.
Quando vieres
Só não encontrarás aquela menina de saias curtas
E cabelos entrançados
Que deixaste um dia.
Mas os meus filhos brincarão nos teus joelhos
Como se te tivessem sempre conhecido.
Quando vieres
nenhum de nós dirá nada
mas a mãe largará o bordado
o pai largará o jornal
as crianças os brinquedos
e abriremos para ti os nossos corações.
Pois quando tu vieres
Não és só tu que vens
É todo um mundo novo que despontará lá fora
Quando vieres.


Maria Eugénia Cunhal em  Silêncio de Vidro

Legenda: Ilustração de Rogério Ribeiro para o livro de Manuel Tiago  Até Amanhã, Camaradas

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

NOTÍCIAS DO CIRCO


Os portugueses consomem 70.000 toneladas de bacalhau por ano, sendo cinco toneladas pelo Natal.

« Entre aquilo que Portugal deixou neste país africano, podemos destacar o costume de se comer bacalhau na noite de Natal. E não se pense que é hábito de reduzida elite urbana, nostálgica de tempos coloniais, que alguns estudiosos gostam de impropriamente chamar “crioula”. Para já, a população urbana é metade da de Angola e vai servindo de matriz cada vez mais avassaladora da cultura angolana. E o costume está absolutamente espalhado, pelo menos por todas as cidades.»
- Pepetela

A NÃO SER EM INSTANTES DE EXCEPÇÃO

30 de Abril de 1977

A única certeza da vida é a morte. E é a certeza em que menos se acredita. Toda a história do mundo assentou sempre na ignorância de que se é mortal. Aqueles mesmo que o sabem não o vêem – a não ser em instantes de excepção. Que seria o mundo com essa evidência sempre presente? Só o homem sabe que é mortal. Mas raramente o homem sobe até si. O animal pesa nele, mesmo no que não é do animal. Assim a arte, a cultura, poucas vezes funcionam como o que é para o espírito, sendo para o que é da nossa grosseria.

Vergílio Ferreira em Conta-Corrente, Volume II

REVISITAÇÃO DE POEMAS DE NATAL


Ladaínha dos Próximos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que se veja à mesa o meu lugar vazio

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que só uma voz me evoque a sós consigo

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que não viva já ninguém meu conhecido

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem vivo esteja um verso deste livro

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que terei de novo o Nada a sós comigo

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem o Natal terá qualquer sentido

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que o Nada retome a cor do Infinito

 

David Mourão-Ferreira de Cancioneiro de Natal em Obra Poética

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Dito já que começaram as iniciativas que visam registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um parágrafo, aquilo que constitui os milhares de sublinhados que, ao longo dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam a  Biblioteca da Casa.

Ainda estamos no 1º capítulo do livro de Conceição Madruga: A Paixão Segundo José Saramago:

«Neste labirinto de luz que se nos afigura ser a obra de Saramago, estabelecemos um “corpus” constituído pelos romances Manual de Pintura e Caligrafia, Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A jangada de Pedra e História do Cerco de Lisboa, no qual perseguiremos possíveis respostas, ainda que ambíguas e, por isso, criativas, sobre o conhecimento possível do Mundo, admitindo, porém com Saramago, que a ambiguidade é mais nossa, porque o lemos:

«Imagino que sabe que o lugar ambíguo é a cabeça de quem ouve ou lê.» (História do Cerco de Lisboa, página 88 – Nota do Editor. No topo a página do livro de onde é tirada a citação.)

«A linguagem do Conhecimento: eis a grande busca de Saramago. A certeza da nossa incapacidade de o mostrar totalmente, a nossa aposta.»

MAS HÁ COISAS MAIS BONITAS...

24 de Março de 1948

Esta manhã, uma velha que de mando de um namorado levava um lindo molho de cravos a casa da namorada. Parou a perguntar-me se eu conhecia a menina e se lhe podia ensinar onde ela morava. Nas suas mãos encardidas e calosas o ramo parecia ter ainda as raízes no estrume.

- Bonitos! – exclamei eu, deslumbrado.

- São… - respondeu ela com cepticismo- - Mas há coisas mais bonitas…

- Por exemplo?

- Um bocado de broa e uma sardinha, quando a gente está cheia de fome.

Miguel Torga em Diário, Volume VI

REVISITAÇÃO DE POEMAS DE NATAL


 

Herodes

     Para Miguel Viqueira

 

Gritam, mijam, cheiram a leite

azedo. Andam por aí

pelos colos das mães, montados

em burros poeirentos. E há um

que aqueles pretos dizem que há-de um dia

sentar no meu coxim o cu borrado.

Não sabem nada, uns e outros,

soltam vagidos que ninguém entende.

Dou-lhes na mona a uns

e os outros que passeiem.

Detesto gente parva.

 

Pedro Tamén em Natal… Natais

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

SOLIDÕES

4 de Agosto de 1968

Os homens só se sentem verdadeiramente sozinhos, quando olham para o céu.

José Gomes Ferreira em Dias Comuns, Volume V

POSTAIS DE NATAL


 Durante muitos anos trabalhei perto da Praça da Figueira.

Recordo-me de nos Restauradores, por esta época natalícia, perto do Hotel Avenida Palace, com cenário montado estava, por lá um Pai Natal, trenó, árvore de Natal, para a velha fotografia das crianças mandarem à família.

Alguém me contou que um dia, o Pai Natal perguntou a um garoto, que se aprestava para a fotografia, se ele se portava bem lá por casa e que lhe respondeu:

«Eu porto. Quem não se porta bem é o meu avô que chega todos os dias bêbado.»

Colaboração de Aida Santos

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 Dito já que começaram as iniciativas que visam registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um parágrafo, aquilo que constitui os milhares de sublinhados que, ao longo dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam a  Biblioteca da Casa.

Mais um livro que aborda a obra e a personalidade de José Saramago.

Maria da Conceição Madruga chamou ao seu livro: A Paixão Segundo Saramago.

É mesmo um livro de paixão. A Paixão do Verbo e o Verbo da Paixão.

Mário David Soares, à guisa de prefácio, escreve:

«Para quem gostar de Saramago, para quem ainda não compreende Saramago, para quem tem que analisar Saramago este é um livro fundamental para aprofundar gostos, ultrapassar incompreensões e ajudar a análises.»

É um livro apaixonado e as paixões não se explicam.

O percurso de leitura de Maria da Conceição Madruga inicia-se com o Manual de Pintura e Caligrafia e termina com a História do Cerco de Lisboa.

Seguindo estes livros, sublinhei os sublinhados que a autora fez dos livros de Saramago.

Importa pouco, ou nada, se são coincidentes.

Entremos no primeiro capítulo do livro: O Enigma da Leitura:

«Os livros de Saramago abertos sobre a mesa são uma rememoração, um chamamento. Convidam-nos à viagem, em busca do fio que nos conduza no labirinto do conhecimento de nós, do mundo, do Conhecimento. Viagem inaugural, redentora e de retorno à infância, na acepção de Blanchot: “Continuamos a ler desde há milénios, como se mais não fizéssemos do que começar a aprender a ler”.

Saramago revela-se-nos, desde logo, o contador da História e de histórias, que nos fascinam e nos apaixonam. É a grande Voz e o grande Olho, dizendo o que ouviu e viu, lá em nenhum lugar. Nem em nenhum tempo, porque como ele próprio refere, “tudo provavelmente são ficções” (Citação de A Jangada de Pedra, pág. 138 (2ª edição, Nota do Editor).

«Retemo-nos nas suas páginas, tentando aliar a paixão da deriva à exigência do olhar. Assumimos uma leitura de paixão e de desespero provocada pelo próprio texto, onde um narrador irónico e mordaz se compraz em demonstrar-nos a (im)possibilidade de interpretar.»

Conceição Madruga neste capítulo, faz uma citação de O Ano da Morte de Ricardo Reis:

«As frases, quando ditas, são como portas, ficam abertas, quase sempre entramos, mas às vezes deixamo-nos estar do lado de fora, à espera de que outra porta se abra, de que outra frase de diga.» (Citação de O Ano da Morte de Ricardo Reis, pág. 183, 1ª edição, Nota do Editor.)

Esta frase está sublinhada pelo editor, pertence a um diálogo de Marcenda com Ricardo Reis. Fica aqui o sublinhado do editor:

«Não deve perder a esperança, Suponho que essa já está perdida, qualquer dia sou capaz de ir a Fátima para ver se a fé ainda pode salvar-me. Tem fé, Sou católica, Praticante, sim, vou à missa, confesso-me, comungo, faço tudo o que os católicos fazem. Não parece muito convicta, É jeito meu, não pôr muita expressão no que digo. A isto não respondeu Ricardo Reis, as frases, quando ditas, são como portas, ficam abertas, quase sempre entramos, mas às vezes deixamo-nos estar do lado de fora, à espera de que outra porta se abra, de que outra frase de diga.»

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 O avô era um tipo assaz curioso, patusco mesmo. Por chalaça, por um certo gosto anarquista, apresentava-se às pessoas como: «Mário Santos – benfiquista, republicano histórico e anticlerical».

 Ficava depois a gozar o efeito das palavras.

Tinha um béguin pelo Johnny Guitar de Nicholas Ray, aquele diálogo fabuloso em que Vienna pede a Johnny para lhe contar mentiras, que ainda a ama como ela o ama e o velho vaqueiro, a filosofar sobre Johnny: tal como ele disse, só precisa de um café e de uma boa cigarrada.

Este disco existe porque pediu ao filho que lhe arranjasse a canção tema do filme.

Naqueles tempos a oferta de bandas sonoras era quase nula, o filho não encontrou a interpretação da Peggy Lee e comprou esta versão, em espanhol, cantada pela Juanita Cuenca, uma soberba capa amarela, uma fotografia como mandavam as regras.

O avô morreu com 85 anos e nunca conseguiu entender-se com o “pick-up”. Quando lhe dava a saudade dizia: «eh pá! Põe a tocar o Johnny Guitar».

Na estante onde estão os LPs, puxados ligeiramente 5 ou 6 para fora,  está lá pendurado o boné – Donegal Tweed Woven in Ireland – que foi o último que o pai usou.

Tem dias, mas principalmente noites, que sente que o pai anda por aí, a solicitar um whisquinho e a dizer: «Eh! 
Pá põe lá o «Johnyy Guitar” para o teu e eu avô ouvirmos»

«Play the guitar, play it again, my Johnny, maybe you're cold, but you're so warm inside.»

E uma nostalgia do tamanho do mundo apodera-se da prosa.

Johnny Guitar é cantado em espanhol e está identificado como sendo um «bolero afrocubano». O disco tem ainda: Mis Manos, que é a versão espanhola de uma velha canção do Gilbert Bécaud, um fado fox, Lejana Lisboa, assinado por A. Angel e Garcia Cote, e Faustina, um baião que, no antigamente, muito no antigamente, era tocado, dezenas de vezes, na mesma noite, nos bailes lá de casa.


O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


É quando ele diz a frase certa: um tipo só precisa de um café e de uma boa cigarrada.

Ouve-se a frase no Johnny Guitar, um dos filmes da vida de muita gente.

De João Bénard da Costa sabemos que era.

 «Só recordam aqueles que confidenciam, a recordação é uma arte que arranca da solidão e do silêncio», escrevi há quarenta e muitos anos, sem ainda saber ler nem escrever. Hoje, que tinha obrigação de saber mais, só posso repetir que esta arte recordatória, este filme mítico, este filme-mito (tão, tão diferente da memória) arranca também daí: da solidão e do silêncio.»

Uma ópera? O melhor diálogo da história do cinema?

Ainda Bénard da Costa:

«Reduzido a escrito e a seco, o diálogo é confrangedoramente banal, Se as pessoas ficam com tal memória dele é pelo concerto das vozes – raspante, a de Crawford, átona a de Hayden – que se ouve no filme e pela associação delas à fabulosa partitura de Victor Young.»

“Vienna – É uma história triste.

Johnny – Sou bom ouvinte de histórias tristes.

Vienna – Há cinco anos apaixonei-me por um homem. Não era bom nem mau, mas… eu amava-o. Quis casar com ele, ajudá-lo a construir um futuro.

Johnny – Mereciam ser felizes…

Vienna – Mas não foram. Separaram-se. Ele não se via amarrado a uma família.

Johnny – Felizmente ela foi esperta e livrou-se dele.

Vienna – Claro que foi. Aprendeu, daí em diante, a não se apaixonar por ninguém.

Johnny – Cinco anos é muito tempo… Com certeza que, entretanto, na sua vida houve outros homens.

Vienna – Os suficientes.

Johnny – O que aconteceria se esse homem voltasse?

Vienna – Quando um fogo se extingue, só restam as cinzas.

Johnny – Quantos homens já esqueceste?

Vienna – Tantos quantas as mulheres de que te lembras.

Johnny – Não te vás embora.

Vienna – Nâo me mexi.

Johnny – Diz-me qualquer coisa bonita.

Vienna – Que queres que eu te diga?

Johnny – Mente-me. Diz-me que esperaste por mim todos estes anos.

Vienna – Todos os anos esperei por ti.

Johnny – Diz-me que morrerias se eu não tivesse voltado.

 Vienna – Morreria se tu não voltasses.

Johnny – Diz-me que ainda me amas como sempre te amei.

Vienna – Ainda te amo como tu me amas.

Johnny – Obrigado. Muito obrigado. 


Play the guitar play it again my johnny

Maybe you're cold, but you're so warm inside

I was always a fool for my johnny
For the one they call johnny guitar
Play it again, johnny guitar

What if you go what if you stay i love you
What if you're cruel you can be kind i know

There was never a man like my johnny
Iike the one they call johnny guitar

There was never a man like my johnny
Iike the one they call johnny guitar
Play it again johnny guitar

Ainda João Bénard da Costa:

«Muitas vezes ouvi a banda sonora do Johnny Guitar sem ver as imagens. Tudo vem, por acréscimo, toda a memória do filme se repovoa, Mas, para que isso suceda, é preciso haver memória, é preciso ter-se visto o filme. Se é verdade que Johnny Guitar é também uma ópera, não o é menos que está dependente daquela única e irrepetível mise en céne.»

RECADOS

Nunca se vê um filme da mesma maneira, há sempre maneiras diferentes de o ver.

Hoje, na Cinemateca, provavelmente, seria a última oportunidade para eu ver o Johnny Guitar numa sala de cinema, onde todos os filmes têm de ser vistos!

Outros afazeres não me permitirão esse prazer.

Não impede que, abusando da vossa paciência, deixe por aqui algumas das coisas que já foram ditas sobre o filme.

JOHNNY GUITAR

de Nicholas Ray

com Joan Crawford, Sterling Hayden, Mercedes McCambridge, Scott Brady, Ward Bond

Estados Unidos, 1954 - 110 min

legendado em português | M/12

Um dos westerns maiores da história do cinema, de cores agressivas e imagens barrocas (as fabulosas cenas de Joan Crawford no interior do saloon, o cenário deste com os fantomáticos croupiers e a roleta a rodar). Um filme “onde os cowboys desmaiam e morrem com a graça das bailarinas” (Truffaut). E um “duelo” sem tréguas entre as fabulosas Vienna (Crawford) e Emma (McCambridge). “Rever as imagens do JOHNNY GUITAR é rever a recordação delas. Para quem o vê pela primeira vez, é ainda de rever que se trata. Porque todas as personagens não fazem outra coisa. […] JOHNNY GUITAR é um filme construído em flashback sobre uma imensa elipse? Ou é uma imensa elipse construída sobre um flash que não pode come back? Ou será que é tudo a mesma coisa?” (João Bénard da Costa). 

REVISITAÇÃO DE POEMAS DE NATAL


 espero que me calhe aquela fava

que é costume meter no bolo-rei:

quer dizer que o comi, que o partilhei

no natal com quem mais o partilhava

 

numa ordem das coisas cuja lei

de afectos e memória em nós se grava

nalgum lugar da alma e que destrava

tanta coisa sumida que, bem sei,

 

pela sua presença cristaliza

saudade e alegria em sons e brilhos,

sabores, cores, luzes, estribilhos...

e até por quem nos falta então se irisa

 

na mais pobre semente a intensa dança

de tempo adulto e tempo de criança.

 

Vasco Graça Moura

 

Poema retirado de Natal… Natais

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

SUPLEMENTO DE FASCÍNIO

14 de Maio de 1992

No cinema, Basic Instinct, com Sharon Stone em grandeza e plenitude. Curiosamente, é um filme de que quase toda a gente se sente obrigada a dizer mal, com a preocupação de se demarcar de qualquer suspeita de poder ter gostado por motivos menos puros. Contudo, trata-se de um policial interessante e bem executado, e é difícil ficarmos indiferentes à presença de Sharon Stone. Mas porquê? Por ela ser belíssima e elegantíssima? Seria insuficiente. Há no filme um suplemento de fascínio, que resulta do confronto entre a mera inteligência masculina e uma inteligência sexual que combina o mais feminino dos corpos com a mais masculina capacidade de raciocínio. A famosa cena do interrogatório não é apenas interessante pelo facto de Sharon Stone, ao descruzar as pernas num relance o sexo nu. O que se passa é mais do que isso: é uma debandada (em todos os sentidos do termo) da inteligência masculino policial face a uma inteligência que se reforça na afirmação fálica através do modo como desafia os homens quanto à sua vontade de continuar a fumar. O riso nervoso e perturbado que se difunde entre polícias e espectadores do filme é apenas o reconhecimento constrangido de que uma inteligência sexual é sempre mais inteligente do que uma simples inteligência sem mais nada. O que o filme de Paul Verhoeven tem de provocatório é o curto-circuito que estabelece entre o primitivo da instância sexual e o mito computorizado de uma inteligência sem falhas.

Eduardo Prado Coelho em Tudo O Que Não Escrevi, Volume II

REVISITAÇÃO DE POEMAS DE NATAL


 Primeiro Natal

sem que faças o presépio.

Todos os anos compravas

algum pastor, um bicho

e os magos do Oriente repetiste.

Maria, José, o Menino,

A estrebaria:

Por aí começaste. E a ti

Deponho a seu lado, a ti e a meu pai,

Luz do Espírito santo na Palha.

 

António Osório em Natal... Natais

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

ESTA VIDA ARREPIADA...

12 de Setembro de 1968

Levanto-me – para quê?, é a amargura que todos os dias me invade. Leio, mal ou bem, até às tantas, sofro sonhos desabridos em que desponta ao acordar, uma ou outra ideia, que se esvai, por não a conduzir até à secretária. Inicio a rotina com sarro na boca e, nos intervalos dela, garatujo que porei um dia, aqui, o que agora não faço. Faço projectos para a hora a que regressar a casa, mas, chegado lá, o ciclo fecha-se, não há forças que o rompam.

Reduzo-me, assim, à paisagem interior que is livros visitam. Será isto viver? Valerá a pena teimar? Não é nem vale, mas assim me «cumpro», não sei por que teima abjecta. Uma protérvia, esta vida arrepiada!

Mário Sacramento em Diário

REVISITAÇÂO DE POEMAS DE NATAL


Natal de 1972

Neste comércio festivo que há dois mil anos quase
perdura mal cobrindo remendadamente
o solstício do Inverno e os deuses sempre vivos
de cuja falsa morte o mundo paga em crimes,
como em vileza humana, o medo que escolheu
quando ao claror da aurora rósea e livre
de viver como os deuses e com eles
preferiu a lei e a ordem projectadas
na sombra em sombras da caverna obscura
e desejou o mal em preço de ser-se homem —
tudo o que em milhares de anos é tribal
congrega-se feliz num doce rebolar-se
da traição de que fomos contra a vida.
Tão vil que levou séculos a inventar
um deus assassinado para desculpá-la,
e fez dele o comércio das famílias
que cortam no peru as raivas de existirem,
beijando-se visguentas, comovidas,
tal como têm babado os pés dos deuses,
ah não eles mesmos mas imagens vãs
que não resplendam da grandeza humana.
Alguma vez teremos o dinheiro
para comprar de novo o Paraíso,
em vez de prendas para o sapatinho?
O Paraíso aqui — aquele que venderam
no começar do mundo. E que nos trocam
por outros no futuro ou nos aléns,
agora, aqui, aberto a todos, claro
- um sol sem fim nos bosques ou nas praias,
uma nudez sem morte nos corpos sem alma.

 

Jorge de Sena

Poema retirado de Natal… Natais

domingo, 19 de dezembro de 2021

OU NEM ISSO...

4 de Janeiro de 1977

Afinal, voltei a isto. Velho literato, impróprio já para serviços pesados, restam-me estes servicinhos ligeiros. Tento iludir-me com projectos – não há forças. E todavia sinto que ainda posso realizar os dois ou três livros que imaginei. É a ilusão dos velhos que ainda se imaginam capazes de amar. Só já se ama em imaginação. Ou nem isso: na lembrança inverosímil de quando se imaginava.

Vergílio Ferreira em Conta-Corrente, Volume 2

OLHAR AS CAPAS

O Caçador de Elefantes Invisíveis

Mia Couto

Capa: Rui Garrido

Ilustração da capa: Susa Monteiro

Editorial Caminho, Lisboa, Outubro de 2021

- O nosso maior receio é termos herdado a violência dele.

- Engano vosso, meus filhos – declarou a mãe.

- O vosso pai nunca ergueu um dedo contra mim.

- Como pode protegê-lo depois de tantos anos?

- Alguma vez viram uma nódoa negra no meu corpo?

- Então de quem eram os gritos? – perguntou o meu irmão. – De quem era o choro?

- Eu gritava e chorava – respondeu a mãe – porque o vosso pai se agredia a si mesmo.

O facto de a raiva do vosso pai se dirigir exclusivamente contra ele mesmo era um prova de amor tão verdadeiro que, em prantos e soluços, a mãe implorava que o homem, nesses acessos de raiva. A agredisse a aela.

- O vosso pai só me tocou para me amar.

E o seu verdaeiro vício não era o álcool. O seu verdadeiro vício éramos nós, a sua família, que ele amava e que não sabia o que fazer com esse amor. O nosso pai nunca aprendera a exercer a ternura que havia nele. Tinha medo de se entregar e de não regressar. A bebida afastava-o dessa carência.

Colaboração de Aida Santos