Se Ao Menos Nevasse
Nesse tempo chegávamos ao natal pelas
estradas
dos ingleses construídas em yes
num emaranhado de malfadadas curvas em obras que haveriam
mais tarde de justificar discussões políticas sobre
o emprego dos fundos comunitários
uns diziam que era preciso o progresso avançar
assim ao ritmo do asfalto cortando declives
aproximando as encostas de um e outro lado do vale mesmo
ou sobretudo que a urze e a lírica passassem ao caralho
outros que na educação e na formação é que estava
o futuro de um povo e por essa altura vá
lá saber-se porquê davam como exemplo a dinamarca
As minhas primas cagavam-se no discurso ideológico e
metiam-se às costelas de vinho e alho à carne da peça
às rabanadas e ao vinho quente das fatias de parida
a lírica delas eram os sonho fritados às colheres até
rebentar ou golpearem-se à tesoura
as filhós as orelhas de abade o
bolo de monja com seu bico de grinalda e muitos ovos que
as galinhas quase nem davam feito e
na consoada amandavam-se gulosas ao polvo e
ao bacalhau cozido e à couve galega idem com
azeite de vila flor a escorrer-lhes salvo seja
dos carnudos lábios adolescentes
que era um mimo
E chegávamos também ao natal pelo
tronco dos vidoeiros antes da neve e pelo fogo do pobo e
pelo presépio nos degraus da câmara
com musgo e serradura nos caminhos e santinhos de barro
esculpidos decerto em braga em tamanho natural que
a gente era como se o menino jesus tivesse acabado de nascer
e até se benzia mesmo antes da missa do
galo quando o meu tio baptista bêbado que nem uma puta
rezava o pai nosso em siríaco e a família
tapava o rosto com as mãos muito
dividida entre o orgulho na erudição clássica do
velho seminarista e a vergonha pela sua queda em
sentido literal pelo tinto de valpaços
Talvez o problema seja só o
de envelhecermos mal e nos habituarmos a
culpar o mundo em abstracto a
darmos um outro nome à tristeza que a nós mesmos apenas pertence
talvez o problema seja desta raiz metálica que
nos perfura o estômago e
que nem folhas dá quanto mais flores a
verdade é que tudo agora é difuso e insípido
a gente chega ao natal de auto-estrada pagando as portagens
e ele é o algodão nos pinheirinhos de plástico com
o logotipo da sociedade ponto verde a
garantir que tudo será reciclado e
apetece logo poluir o alto do larouco
a gente chega ao natal e ao meu tio baptista dão-lhe
comprimidos e chá de cidreira
e até o clafouti de maçã reineta já não leva conhaque e vai
ao forno com manteiga sem sal e
as minhas primas muito magras erguendo-se a medir a cintura
discutem a dieta e as sessões de mesoterapia
e se bem compreendo não coisam nem com os legítimos esposos se
a retoiça não vier especificada na tabela de calorias do livro que
é agora uma bíblia
da senhora doutora isabel do carmo
Que saudades da neve se
ao menos nevasse
penso por instantes enquanto
venho à rua e acendo um cigarro
às quatro da manhã
José Carlos Barros em Resumo. A Poesia em 2009, Assírio & Alvim,
Lisboa Março 2010
Legenda: fotografia da Magnum
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