terça-feira, 14 de dezembro de 2021

REVISITAÇÃO DE POEMAS DE NATAL


 

Se Ao Menos Nevasse

Nesse tempo chegávamos ao natal pelas estradas
dos ingleses construídas em yes
num emaranhado de malfadadas curvas em obras que haveriam
mais tarde de justificar discussões políticas sobre
o emprego dos fundos comunitários
uns diziam que era preciso o progresso avançar
assim ao ritmo do asfalto cortando declives
aproximando as encostas de um e outro lado do vale mesmo
ou sobretudo que a urze e a lírica passassem ao caralho
outros que na educação e na formação é que estava
o futuro de um povo e por essa altura vá
lá saber-se porquê davam como exemplo a dinamarca

As minhas primas cagavam-se no discurso ideológico e
metiam-se às costelas de vinho e alho à carne da peça
às rabanadas e ao vinho quente das fatias de parida
a lírica delas eram os sonho fritados às colheres até
rebentar ou golpearem-se à tesoura
as filhós as orelhas de abade o
bolo de monja com seu bico de grinalda e muitos ovos que
as galinhas quase nem davam feito e
na consoada amandavam-se gulosas ao polvo e
ao bacalhau cozido e à couve galega idem com
azeite de vila flor a escorrer-lhes salvo seja
dos carnudos lábios adolescentes
que era um mimo

E chegávamos também ao natal pelo
tronco dos vidoeiros antes da neve e pelo fogo do pobo e
pelo presépio nos degraus da câmara
com musgo e serradura nos caminhos e santinhos de barro
esculpidos decerto em braga em tamanho natural que
a gente era como se o menino jesus tivesse acabado de nascer
e até se benzia mesmo antes da missa do
galo quando o meu tio baptista bêbado que nem uma puta
rezava o pai nosso em siríaco e a família
tapava o rosto com as mãos muito
dividida entre o orgulho na erudição clássica do
velho seminarista e a vergonha pela sua queda em
sentido literal pelo tinto de valpaços

Talvez o problema seja só o
de envelhecermos mal e nos habituarmos a
culpar o mundo em abstracto a
darmos um outro nome à tristeza que a nós mesmos apenas pertence
talvez o problema seja desta raiz metálica que
nos perfura o estômago e
que nem folhas dá quanto mais flores a
verdade é que tudo agora é difuso e insípido
a gente chega ao natal de auto-estrada pagando as portagens
e ele é o algodão nos pinheirinhos de plástico com
o logotipo da sociedade ponto verde a
garantir que tudo será reciclado e
apetece logo poluir o alto do larouco
a gente chega ao natal e ao meu tio baptista dão-lhe
comprimidos e chá de cidreira
e até o clafouti de maçã reineta já não leva conhaque e vai
ao forno com manteiga sem sal e
as minhas primas muito magras erguendo-se a medir a cintura
discutem a dieta e as sessões de mesoterapia
e se bem compreendo não coisam nem com os legítimos esposos se
a retoiça não vier especificada na tabela de calorias do livro que
é agora uma bíblia
da senhora doutora isabel do carmo

Que saudades da neve se
ao menos nevasse
penso por instantes enquanto
venho à rua e acendo um cigarro
às quatro da manhã

José Carlos Barros em Resumo. A Poesia em 2009, Assírio & Alvim, Lisboa Março 2010

Legenda: fotografia da Magnum

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