segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Dito já que começaram as iniciativas que visam registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um parágrafo, aquilo que constitui os milhares de sublinhados que, ao longo dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam a  Biblioteca da Casa.

 A escolha de hoje para os sublinhados, recaiu em Caim.

Livro polémico, pois então.

Quando calhava em conversa, José Saramago atalhava sempre:

Desde há muitos anos que eu venho dizendo que a Bíblia tem umas quantas histórias mal contadas.

E uma vez, em Penafiel, também lembrou:

Concretamente “Caim” tornou-se mais polémico, não propriamente pelo tema em si, mas por algumas afirmações que Saramago proferiu em Penafiel, aquando da apresentação do livro e que criaram, um acontecimento mediático, um pequeno vendaval, entre os suspeitos do costume, a maior parte nem o livro lera e sucederam-se as incompreensões, as resistências, ódios velhos.

Numa entrevista Saramago disse:

«O teólogo Hans Kung disse sobre isto uma frase que considero definitiva, que as religiões nunca serviram para aproximar os seres humanos uns dos outros. Só isto basta para acabar com isso de Deus. Mas há coisas muito mais idiotas, por exemplo: antes, na criação do Universo, Deus não fez nada. Depois, decidiu criar o Universo, não se sabe porquê, nem para quê. Fê-lo em seis dias, apenas seis dias. Descansou ao sétimo. Até hoje! Nunca mais fez nada! Isto tem algum sentido?”, perguntou.“Deus só existe na nossa cabeça, é o único lugar em que nós podemos confrontar-nos com a ideia de Deus. É isso que tenho feito, na parte que me toca.»



Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a Adão e Eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden, a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo.

(Página 11)

A terra está completamente corrompida e cheia de violências, só encontro nela corrupção, pois todos os seus habitantes seguiram caminhos errados, a maldade dos homens é grande, todos os seus pensamentos e desejo pendem sempre e unicamente para o mal., arrependo-me de ter criado o homem, pois que por causa dele o meu coração tem sofrido amargamente, o fim de todos os homens chegou perante mim, porquanto eles encheram  a terra de iniquidades, vou exterminá-los, assim como à terra, a ti, noé, escolhi-te para iniciares a nova humanidade, e assim mandei que construísses uma arca de madeiras resinosas, que a dividisses em compartimentos e a calafetasses com betume por dentro e por fora.

(Página 158)

Legenda: pormenor da capa, da autoria de Rui Garrido. do livro Caim.

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