quarta-feira, 31 de março de 2021

POSTAIS SEM SELO


O coração é uma arte difícil. Mas tudo o resto é a crédito.

José Amaro Dionísio

ABRI A JANELA


 Agora mesmo, por exemplo, abri a janela e olhei para o céu. 

 Lá estava a Lua, a tonta! A Lua bolorenta que ninguém estoira com dinamite ou atravessa com flechas. A Lua redonda.

Fechei a janela com furor.

E sentei-me à mesa a desenhar uma paisagem nocturna, saudosamente iluminada por uma lua quadrada.

José Gomes Ferreira em Imitação dos Dias

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE...


Em Novembro de 1975, o Conselho de Administração da Lisnave convocava uma Assembleia Geral Extraordinária.

Após 33 anos de actividade, 5.200 navios reparados, a Lisnave, acontecia o último do ano de 2000, deixou de existir, o fim do que foi considerado um dos melhores estaleiros a nível mundial, a maior doca com capacidade para navios até um milhão de toneladas. Lembrança ainda do ministro Mota Pinto-a-meias-com-Mário Soares-bloco-central, a lamentar-se aos jornalistas: «Não é mais possível que os operários da Lisnave andem à pesca, porque não têm nada que fazer». 

Também um filme, Segundas ao Sol, de Fernando Léon Aranoa, que toma como ponto de partida um despedimento colectivo ocorrido nos estaleiros de Gijón no principio da década de 90 e conta a história de um grupo de desempregados desse estaleiro naval, que fechou as portas porque os donos procuraram, algures num qualquer paraíso de mão-de-obra barata do Pacifico, quem lhe reparasse e construísse os barcos a menor preço, um filme sobre a amizade, a solidariedade sem falsos sentimentalismos, trabalhadores desempregados ligados entre si, como diz um dos personagens, «como siameses: um cai, o outro ri-se, antes de perceber que caíu também», que retrata a amargura muda, o desespero, quando a vida se torna assim: diariamente, de casa para a tasca, da tasca para casa, pelo meio segundas ao sol para sonhar sonhos, absurdos que sejam.

«A questão não está se nós acreditamos em Deus. A questão é se Deus acredita em nós. Em mim, estou certo que Ele não acredita.», diz um dos personagens.

OLHAR AS CAPAS


 Cabo da Víbora

Agatha Christie

Tradução: Mascarenhas Barreto

Capa: Lima de Freitas

Colecção Vampiro nº 151

Livros do Brasil, Lisboa s/d

O céu já escurecera quando ele chegou junto ao barco que fazia a travessia do rio.

Podia ter chegado muito mais cedo. A verdade é que o adiara tanto quanto pudera.

Primeiramente, o almoço com os camaradas no Redquay; a conversa ligeira e vaga, a tagarelice acerca de amigos comuns – tudo isso apenas significava que, intimamente, se esquivava a fazer o que devia. Os amigos tinham-no convidado a ficar para o chá e ele aceitara. Mas, por fim, chegara o momento em que compreendera não poder a adiar as coisas por mais tempo. 

ESCREVO O QUE AINDA CONHEÇO


escrevo o que ainda não conheço

nomes de ruas pássaros árvores

monólogos de quem ainda te fala alto

é a minha voz ou a tua?


lá fora a chuva confunde-se com gestos

falamos do tempo, ponte entre o silêncio e o nada

 

ouve, quando não fores capaz de falar, toca-me

 

Maria Sousa em Resumo: a poesia em 2010

terça-feira, 30 de março de 2021

POSTAIS SEM SELO


 E vou precisar de mais um whisky para tentar esquecer o peso demasiado simples das evidências.

Manuel de Freitas

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Mantém os teus amigos perto de ti e os teus inimigos mais perto ainda.

Michael Corleone em O Padrinho II, filme Francis Ford Coppola.

LUGAR DE ENCONTRO




Além disso, o Monte-Carlo, bem perto da casa dele (onde hoje é a Zara) foi durante algum tempo um lugar de encontro que apagava tristezas. O Abril de 74 afastou-nos: o tempo era de menos, as coisas eram de mais. Os horários e os sítios (pelo menos para mim) mudaram. E para mim também, durante um tempo, a literatura e as artes solitárias apagaram-se.

Eduarda Dionísio, do testemunho sobre Carlos de Oliveira no número da Relâmpago dedicado ao poeta.

Legenda: onde hoje está a Zara, era o Monte Carlo

OLHAR AS CAPAS


Nenhum Homem é Estrangeiro

Joseph North

Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues

Posfácio: Ruben de Carvalho

Notas: António Belmiro Guimarães

Edições Avante, Lisboa, Fevereiro de 1981

Desde que, em garoto, ia levar o almoço ao meu pai, à fábrica, não me lembro de nenhuma greve em que não me tenha sentido do lado dos trabalhadores. Isso mantém-se sem alteração. Os marxistas chamam a tal facto «consciência de classe», isto é, a compreensão de que pertencemos à classe operária e que as suas aspirações são sagradas. Mesmo antes de pertencer ao movimento da classe operária, já considerava os piquetes grevistas sagrados, o «fura» detestável e o patrão o inimigo irrevogável.

TEATRO POLÍTICO


                          para o Rui Miguel Ribeiro

 

Quando tudo é mentira,
a mentira torna-se invisível
como o dedo do encenador.

O pano sobe, de fumo,
e nada representa nada
nem ninguém.

Às escuras, o público sorri,
o público aplaude, julgando
seguir, entender a história.

Se um grama de verdade,
todavia, custa hoje
setecentas ilusões apodrecidas

e o preço da entrada
é suspensão da descrença,
só de fora é perceptível

o entrecho da decomposição,
com seus ritos e porquês
assinalados a vermelho:

o vinho do desejo cultivado
em bardos de necessidade,
a bolha esburacada da democracia,

a corrente de facadas e suturas
a que chamamos progresso,
o beco sem saída da evolução.

José Miguel Silva em Resumo: a poesia em 2013

segunda-feira, 29 de março de 2021

POSTAIS SEM SELO


Que guardarão de mim as casas que deixei? O pó sobre o meu nome?

Maria do Rosário Pedreira

DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM...



Na manhã de um dia 16 de abril dos anos de 1940, o dr. Bernard Rieux saiu do seu consultório e tropeça num rato morto, no meio do patamar. Nesse momento, afastou o bicho sem lhe prestar atenção e desceu a escada.

Assim começa  A Peste de Albert Camus.

 Um rato morto foi este o primeiro sinal de uma epidemia que invadiu a cidade provocando o caos e a morte. Camus termina o livro lembrando que o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca.

Neste momento o mundo luta contra uma epidemia, a que deram o nome de Covid-19, fazendo todos os esforços (?) para que as populações sejam vacinadas o mais depressa possível, sabendo-se de antemão que assim não acontecerá.

Dizem os especialistas que a idade é o factor que mais peso tem na mortalidade por Covid-19. Os dados actuais mostram que as pessoas com 70 ou mais anos que morreram com Covid-19 são 88% do total de óbitos.

1.

O porta-contentores Ever Given  partiu da China com uma carga de 22 mil contentores com destino ao porto de Roterdão tendo, a meio caminho, encalhado na parte mais estreita do Canal do Suez que é ponto de passagem de 12% do comércio mundial e do transporte do petróleo consumido no mundo.

Diariamente calcula-se que mais de 50 navios atravessam o canal.

Naqueles contentores embarcados nono Ever Given, encontram-se matérias-primas que servirão as mais diversas fábricas espalhadas pelo mundo.

O navio já seguiu viagem com destino a Roterdão, e dentro de alguns dias, é possível fazer uma primeira estimativa dos prejuízos resultantes da paralisação, porque, além do Ever Given, mais de 237 navios, incluindo 24 petroleiros e 41 porta-contentores estiveram a aguardar a possibilidade de cruzar o Canal.

Esta paralisação, e tudo o que a envolve, faz lembrar um poema de Henrique Segurado intitulado a Apologia dos Pequenos Nadas:


«No gerador central

Bem lá no fundo

Entalada

Numa certa cavidade

 

A asa de uma mosca

 

                Pequenina…

 

E falta a energia na cidade!

 

(Saibamos antever a nossa meta

No cadáver duma mosca incompleta!)» 

2.

Janice Deul, activista holandesa negra, emitiu opinião escrita num jornal que a editora de Amanda Gorman que escreveu e declamou o poema "The Hill We Climb".   na tomada de posse de Joe Biden, nunca deveria ter escolhido Marieke Lucas Rijneveld uma tradutora holandesa que é branca demais, antes devia ter escolhido alguém assumidamente negra. "Uma escolha incompreensível, na minha opinião e na de muitos outros que expressaram a sua dor, frustração, raiva e decepção através das redes sociais", insistiu Deul. "É uma oportunidade perdida."

Amanda Gorman e a sua editora, acolheram a ideia da activista e procuram nova tradutora.

O mundo está repleto de gente cada vez mais cada vez mais estúpida e terrivelmente insuportável. 

3.

Segundo a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, Portugal está na cauda da Europa no que toca a hábitos de leitura.

4.

As quotas portuguesas na pesca do bacalhau sofreram um corte de 200 toneladas.

5. 

Acreditem que faço os mais sérios esforços para entender, minimamente, alguns acontecimentos que vão ocorrendo no país:

- a venda de barragens entre a EDP e a Engie. O que consegui ler aponta para o simples facto de que o governo teve conhecimento da negociata.

- os CTT praticam, miseravelmente, a sua obrigação de prestarem o serviço que, a preço de saldo, acordaram com o governo Passos/Portas e que, agora descobriram que não era sustentável, nem economicamente interessante, exigindo serem compensada pelos prejuízos que a pandemia lhes trouxe.

- Isaltino de Morais admira Rui Rio e acredita mesmo que um dia ele vai ser primeiro-ministro.

- O novo Banco, com prejuízos de 1329 milhões de euros em 2020, vai pedir 598,3 milhões ao fundo de Resolução.                                                 

DEPOIS SAIR SEM DIZER NADA

Um médico nem sequer pode chorar. Só pode pegar no bracito magro e morno, apertar a artéria morta e ficar uns segundos a trincar os dentes. Depois sair sem dizer nada.

Quem saberá por aí uma palavra para estes momentos? Uma palavra para um médico dizer a esta mãe, que entregou à vida um filho vivo e recebeu da vida um filho morto.

Miguel Torga em Diário Vol. I

OLHAR AS CAPAS


Gente de Palmo e Meio

Augusto Gil

Guimarães Editores, Lisboa 1913

- Gosta do mar? preguntou-me

Disse-lhe que não… E justifiquei: A beleza só é perfeita quando equilibrada e serena. Ora o mar é a intranquilidade eterna. Demais, a grandiosidade deixa de ter beleleza se não fôr variada. E o mar é monótono: uma onda, outra onda, e outra, e outra ainda… Lembra-me os dramas do velho Hugo: sempre, sempre sempre alexandrinos…

- Para que é falso? ralhou ela com um gostozinho de amuada .

E depois, com a literária fluência de quem repetia o que muitas vezes pensára, ou até de quem reproduzia alguma página do seu diário íntimo, acrescentou:

- Deus fez com a água a epopeia da humildade.

- Da humildade?... interroguei surpreso.

- Sim , humildade. Encha com ela uma taça de oiro e tomará a forma da taça. Deite-a depois num vaso tosco de barro humilde e vê-la há humildemente aconchegar-se às linhas rudes dêsse vaso ingénuo.

NOTÍCIAS DO CIRCO


Em tempos de Troika (ainda se lembram da dita?) o governo de direita de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, impuseram aos portugueses 12 dias de indemnização por cada ano de trabalho (com o limite máximo de 20 anos).

O PCP, o BE, o PAN e o PEV apresentaram propostas no Parlamento para a reposição dos montantes e das regras de cálculo das indemnizações por despedimento dos trabalhadores.

Há dias, todas essas propostas foram chumbadas com os votos do Partido Socialista e de toda a direita.

Aproveito para roubar o título do poema do Alexandre O’ Neill:

«Que vergonha, rapazes!»

QUE VERGONHA, RAPAZES!


Que vergonha, rapazes! Nós pràqui,

caídos na cerveja ou no uísque,

a enrolar a conversa no «diz que»

e a desnalgar a fêmea («Vist'? Viii!»).

 

Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito

é esta videirunha à portuguesa,

que às vezes me soergo no meu leito

e vejo entrar quarta invasão francesa.

 

Desejo recalcado, com certeza...

Mas logo desço à rua, encontro o Roque

(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!»)

e desabafo: — Ó Roque, com franqueza:

 

Você nunca quis ver outros países?

— Bem queria, Sr. 0'Neill! E... as varizes?

 

Alexandre O'Neill em De Ombro na Ombreira

 

domingo, 28 de março de 2021

POSTAIS SEM SELO


Domingo não é um dia. É uma ausência de dia.

Mia Couto

Legenda: fotografia Shorpy

OLHAR AS CAPAS


Comércio com o Inimigo

José Rodrigues Miguéis

Capa: Armando Alves

Colecção Duas Horas de Leitura nº 21

Editorial Inova, Porto, Julho de 1973

Fico de novo só entre as vozes electónico-angélicas, em plena multidão dos vivos, eu, que sonhei ressuscitar os mortos (ou ressuscitar-me dentre eles). Recomeçar a cada instante, ou periodicamente, a vida nova: não é essa a mensagem do Santo Solstício? Por isso o festejamos. A vida que perpetuamente renasce das cinzas que somos, o Cristo dentre os mortos, o eterno devir, a esperança ou certeza do dia, quando a noite nos afoga. Mas hoje não, é tarde. Agora é tarde. Há quantos anos eu aturo isto! Tudo a recomeçar, noutro plano e talvez noutra vida, noutro mundo. Eu passo e eles ficam. (Como elas!) Deixá-los ficar. O meu Natal é outro, é outra a minha Cruz. Vou sempre em sentido contrário, incoincidente.

Desço a Quinta Avenida, a gente vai rareando, a luz e o amor decrescem, como as decorações. Até que mergulho de novo nos bairros obscuros, calados e desertos.

Afinal não me ocorreu a ideia! Paciência, talvez para o ano que vem.

Ainda não é hoje que escrevo, o Conto Alegre de Natal.

RELACIONADOS


Renata Correia Botelho já por aqui andou, a lembrar Lhasa de Sela, estava o ano no seu primeiro dia.

Voltou hoje com outro poema, tempo de recordar Lhasa de Sela que tão cedo nos deixou.

DE CARA A LA PARED


foi talvez a nossa última canção.

 

oiço ainda os corpos a vincar a noite,

um campo minado de corações tristes

explodindo o rosto na parede.

 

muitas músicas depois

quando as paredes eram já outras

e nas caras se perdiam novos nomes

 

voltei a ela: ficara-me sempre, afinal,

um terrível verso solitário

e a culpa de a ter levado

 

a um coração onde as canções

morreriam de frio.

 

Renata Correia Botelho em Resumo: a poesia em 2010 

DOMINGO DE RAMOS


Domingo de Ramos.

Entrada de Jesus Cristo em Jerusalém.

No dia seguinte, ouvindo a grande multidão que viera à Festa, que Jesus ia chegar a Jerusalém, tomou ramos de palmeira e saíu-Lhe ao encontro, clamando:

Hossana! Bendito seja Aquele que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel!

 Do Evangelho Segundo São João.

Legenda: Entrada Triunfal em Jerusalém, quadro de Pietro Lorenzetti.

Colaboração de Aida Santoso de R

sábado, 27 de março de 2021

POSTAIS SEM SELO


O meu pai tem uma colecção de discos metidos em caixas de papelão, arrumadas contra a parede do quarto, que se vai enchendo da poeira do Novo México. Nesta colecção, o campeão é um Al Johnson original em 78 rotações, com a capa colada com fita adesiva e até a fita está meio rasgada. Da última vez que o vi, tentou convencer-me a levar o disco para L.A. e a vendê-lo por uma boa maquia. Está convencido de que vale, pelo menos mil dólares. Talvez mais, consoante o mercado. Diz que, nos últimos tempos, tem perdido o contacto com os negócios.

Sam Shepard em Crónicas Americanas

Legenda: fotografia Shorpy

OLHAR AS CAPAS


 O Testamento

Fiama Hasse pais Brandão

Capa: José da Câmara Leme

Colecção Novos Dramaturgos nº 2

Portugália Editora, Lisboa, Dezembro de 1962

A moral desta história é, para o público, um pau de dois bicos. É a moral da injustiça e a moral da justiça, a moral da razão e a da prepotência. Cada qual tirará a moral a seu modo, conforme o conteúdo do porta-moedas. Num teatro, a moral é directamente proporcional ao preço do assento.

Hoje apenas tenho uma notícia para todos: Só o medo subsiste. Agora só o medo resiste ainda. Em todos os bancos só os cheques do medo têm cobertura. É medo que abre trincheiras contra o futuro, o medo da paz que comanda as batalhas. A pólvora do medo alastra pela nossa cidade. O medo devora o medo.

Só pelas mãos a vitória é possível. Só as mãos, o suor, os corpos, hão-de arrombar os cofres do luxo e do excesso do medo.

CONVERSANDO


Nunca teve certezas de nada, também sabe que não serve de exemplo para ninguém.

Ainda no outro século, o médico que lhe prestava assistência no posto da Junta de Freguesia, perguntou-lhe por vacinas, fossem elas quais fossem. Tirando as que teve que tomar durante a tropa, nunca mais as frequentou. É conveniente, por Outubro, tomar a vacina contra a gripe, disse-lhe o médico. Nunca está engripado, acabou por responder. Mas pode vir a estar, ripostou. Se tiver que ser, vamos a isso e, a partir daquele ano, por Outubro vacina-se.

Os tempos agora são de pandemia. Aguarda que o chamem para ser vacinado contra o Corvid-19.

Não consegue entender como há gente-anti-vacinas. Tanta gente, mesmo.

Não lhes chama qualquer nome mas, pensa, que não estão a agir correctamente. Contudo, se não querem ser vacinados, pelo menos não incitem os outros a seguir o mesmo caminho.

Omar Khayyam, um poeta e astrónomo persa que morreu com 83 anos, escreveu esta frase:

«Se os que amam o vinho e o amor vão para o inferno, então o paraíso deve estar vazio.»

Está um bonito dia de sol, a temperatura está bem amena.

Que bem sabe ouvir I Love you, Porgy neste velho EP.

Numa entrevista ao Expresso (06.02.2016), por ocasião dos 50 anos dos Cinco Minutos de Jazz, perguntaram-lhe por um episódio destes longuíssimos minutos de jazz, o José Duarte respondeu:

Fui a uma rádio em Los Angeles, que passa jazz 24 horas por dia. O edifício era lindo, alto, todo em vidro. Era o início dos anos 70, o João ainda era vivo. Eu tinha levado comigo uma cassete da Nina Simone a tocar piano. O apresentador fez-me perguntas, estranhou onde era Portugal, expliquei-lhe que se nadasse sempre em frente chegaria a Lisboa. E quando lhe contei que tinha um programa de cinco minutos fechou o microfone, pensava que eu me tinha enganado no inglês! No fim, pôs a minha cassete da Nina Simone e ia caindo da cadeira: nunca a tinha ouvido só a tocar o piano. Saí daquela rádio orgulhoso.

Um orgulho tão grande que, certamente, no regresso a Lisboa, obrigaram o José Duarte a pagar excesso de bagagem.

DESDE HÁ MUITO QUE SOMOS PRISIONEIROS


Desde há muito que somos prisioneiros,

mortos muito antes de nascermos,

heróis predestinados ao silêncio das cadeias e à pobreza.

As notícias de beleza que nos chegam são erradas,

e baionetas crescem a cercar-nos.

Sitiados é que somos, embora

nenhuma baioneta evite o voo e o gesto de ir além.

Junto às portas, janelas e canteiros,

o arame farpado da propriedade alheia.

Pouco mais,

além da madrugada oferecida em prenúncio de esperança.

Prisioneiros das cidades e das vozes,

Somos ainda mais cercados de os amigos o serem também, e até as flores.

Nunca entretanto sobre nós pode a força

Dos arames cortantes e das grades,

Que sob os pés pisados o abismo

Nunca é bastante para s nossas asas.

 

Eduardo Valente da Fonseca em 71 Poemas

sexta-feira, 26 de março de 2021

POSTAIS SEM SELO


«Debati-me diante da tua face como a fêmea do açor no seu primeiro cobrimento. Mas a tua saliva vestiu-me de branco o dentro do corpo.

Maria Velho da Costa em Corpo Verde 

NÃO SEI QUANTOS SÃO MUITOS


-Há coisas preciosas que me foram tiradas e criaram uma situação que nem com muito trabalho posso ultrapassar, et cetera. Está a perceber o que eu quero dizer?

- Não estou a perceber muito bem. Refere-se só ao envelhecer, ou há mais qualquer coisa em particular?

- Acho que só me referia ao envelhecer.

- Agora percebo.

- Isto está a dar cabo de mim, portanto o melhor é ir-me embora. Não vou obedecer ao meu impulso de tentar beijá-la.

- É melhor não.

- Não nos levaria a lado nenhum.

- Tem razão. Mas foi bom que tivesse cá vindo esta tarde. Foi muito bom.

- Você é uma sedutora?

- Não, não, de maneira nenhuma.

- Tem um marido, tem um amante, e agora quer ter-me a mim como amigo. Colecciona homens? Ou são os homens que a coleccionam a si?

- Acho que já colecionei homens e eles já me coleccionaram a mim.

- Você só tem trinta anos. Já colecionou muitos homens?

- Não sei quantos são muitos.

- Quero eu dizer, desde que deixou a faculdade, entre a festa de fim de curso e esta tarde, que terminou consigo a colecionar-me com o seu poder de sedução… Mas agora está a comportar-se como uma criança, como ase não tivesse esse poder. Nunca ninguém lhe disse que tinha esse poder?

- Já me disseram. Mas agora estava-me a rir porque se você se considera um homem coleccionado, não sei como hei-de contar os homens que já colecionei.

 

Philip Roth em OFantasma Sai de Cena

OLHAR AS CAPAS


Os Funerais da Mamã Grande

Gabriel Garcia Márquez

Tradução: E.B.

Publicações Europa-América, Lisboa s/d

A inquietação começou em Julho, quando a Sr.ª Rebeca, uma viúva amargurada que vivia numa imensa casa de dois corredores e nove quartos, descobriu que as persianas das janelas estavam rasgadas como se tivessem sido apedrejadas da rua. A primeira descoberta foi feita no seu quarto, e pensou que deveria falar sobre aquilo com Argénida, sua criada e confidente desde que o seu marido morrera. Depois, revirando os seus trastes (pois havia muito tempo que a Sr.ª Rebeca não fazia outra coisa senão revirar os seus trastes), descobriu que não só as persianas do seu quarto, mas todas da casa estavam estragadas.

ORAÇÃO PELO MESSIAS


O seu sangue no meu braço é quente como um pássaro

o sei coração na minha mão pesado como chumbo

Os seus olhos através dos meus brilham mais que o amor

Oh manda-nos o corvo antes da pomba Senhor

 

A sua vida na minha boca é menos que um homem

a sua morte no meu peito é mais pesada que pedra

Os seus olhos através dos meus brilham mais que o amor

Oh manda-nos o corvo antes da pomba senhor

 

Oh manda-nos o corvo antes da pomba Senhor

Oh canta apesar das algemas do fundo dessa prisão

os teus olhos através dos meus brilham mais que o amor

o teu sangue detém a morte desta canção

 

Oh canta apesar das algemas do fundo dessa prisão

Os teus olhos através dos meus brilham mais do que o amor

O teu coração na minha mão é pesado como chumbo

o teu sangue no meu braço é quente como um pássaro

 

Oh que rompa entre os teus ramos o ramo verde do amor

depois do corvo ter morrido em vez da pomba do Senhor  


Leonard Cohen em  Filhos da Neve

quinta-feira, 25 de março de 2021

POSTAIS SEM SELO


Um erro precisa de ser chamado de erro e precisa de ser corrigido.

Angela Merkel

OLHAR AS CAPAS


O Duelo

Anton Tcheckoff

Tradução: Cordeiro de Brito

Prefácio; Adolfo Casais Monteiro

Capa: Augusto Gomes

Vasco Rodrigues, Editor, Porto 1938

- Minha querida, estou comovida e consternada. O nosso bondoso e querido doutor disse ontem ao meu Nikodine Alexandreitch que o seu marido morreu. Diga-me, minha querida! Mas há males que vem por bem. O seu marido era sem dúvida nenhuma um homem nobre, excepcional; um santo. E os homens como êle são mais precisos no céu do que na terra.

PORQUE ESCREVEMOS?


Porque escrevemos?, pergunta em uníssono o grande coro de quem escreve.

Porque não nos podemos limitar a viver.

Porque choras? – pergunta uma voz.

- Não sei – respondo. – Certamente é porque me sinto feliz.

No comboio, continuo a escrever febrilmente, como se tivesse ressuscitado de um mar de recordações. O Alain desvia os olhos do livro e olha pela janela. O tempo contrai-se. Quase sem nos darmos conta, estamos a chegar a Paris. O Aurélien dorme.

Ocorre-me a ideia de que os jovens parecem belos quando estão a dormir, ao passo que os velhos, como eu, parecem já mortos.

Patti Smith em Devoção

CANTO POPULAR


A mulher que me prepara a carne

é  tão bela como o sol.

Mas o cavalo que eu cavalgo

é mais belo do que todas as mulheres.

                       Aiá ah!

 

Eu quero que me queimem um braço

se me roubarem o meu cavalo!

O meu cavalo e eu, eu e o meu cavalo

Somos um único e mesmo ser.

                      Aiá ah!

 

Quando percorre cem léguas,

todo o seu pêlo espuma

como a neve na Primavera!

E relincha de contentamento!

                    Aiá ah!

 

As raparigas nas tendas

escutam o vento a galopar

e dizem uma para as outras:

Lá vai Purev com o seu cavalo branco!

                   Aiá ah!

 

Canto popular da Mongólia, traduzido por António Ramos Rosa em

Rosa do Mundo 

quarta-feira, 24 de março de 2021

POSTAIS SEM SELO


Não fales, se o que vais dizer não for tão importante como o silêncio.

Provérbio árabe

OLHARES


O Armindo dizia sempre que era no Tagarro que se comiam as melhores pataniscas de bacalhau.

O Helder Pinho dizia que ao Tagarro não ia porque havia lá uma empregada que era informadora da PIDE.

A tristeza invadia o rosto do Armindo, que acrescentava que comíamos só as pataniscas, não falávamos de política.

O Helder perguntava como se podia jantar sem falar de política.

Tudo acabava na cave de um tasco que havia ali ao fundo da Calçada do Carmo, junto àquelas escadinhas que dão acesso à Rua 1º de Dezembro, o «Adriano», chamava-se o tasco. Nunca havia pataniscas, e o Helder falava sempre dos planos para, num ápice, deitar o Salazar abaixo.

O Armindo para fugir à guerra, deu o salto para Grenoble e nunca mais dele ouvimos falar.

O Salazar, por um Verão, batera com a cabeça no chão da esplanada de um forte junto ao Tejo, pancada de que veio a morrer.

Foram uns militares que, cansados de muita coisa, deitaram o Marcelo abaixo.

Quando depois encontrei, na rua, o Helder mandou-me à cara que tinha que ser a merda dos militares!

Tive a vaga ideia de saber o que ele queria dizer, mas não me lembro do que então lhe disse. Ainda não lera Philip Roth:

«Ninguém sabe a verdade de uma pessoa, e com muita frequência a própria pessoa menos do que as outras.»

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Há mais de um ano que não vou ao cinema.

Como nasce o desespero dos dias?

Estamos neste desespero há mais de um ano.

Quanto mais tempo?

Depois de tantos sacrifícios, depois de a situação aliviar um pouco, seremos os mesmos?

Que filme terei visto no S. Jorge naquela 5ª feira de 1 de Setembro de 1966?

Eu, que, nas costas do bilhete, até colocava o filme que tinha ido ver, com quem.

Desta vez está tudo em branco.

Colaboração de Aida Santos

OLHAR AS CAPAS


O Enigma das Cartas Anónimas

Agatha Christie

Tradução: Maria do Carmo Pizarro

Capa: Lima de Freitas

Colecção Vampiro nº 320

Livros do Brasil, Lisboa s/d

Tenho recordado muitas vezes a manhã em que recebemos a primeira carta anónima.

Chegou quando tomávamos o pequeno-almoço e abria-a com o modo ociosos de alguém para quem o tempo passa devagar e deve fazer render ao máximo cada acontecimento. Reparei que era uma carta local com o endereço escrito à máquina. Abri-a primeiro que as outras duas, ambas com o carimbo postal de Londres, por uma delas ser, sem sombra de dúvida, uma conta, e, na outra, ter reconhecido a letra de uma das minhas maçadoras primas.

Agora parece estranho recordar que Joana e eu ficámos mais divertidos com a carta do que com outra coisa qualquer. Nessa altura, não tínhamos a mínima suspeita do que estava para vir – uma senda de sangue e violência, de suspeita e medo. 

RUA DO SÉCULO, 79


Os gradeamentos das janelas

negam a quem os contempla da rua

qualquer sugestão de vida

a ser vivida por trás das grades.

Os caixilhos de ferro forjado

sugerem locutórios de um convento

da mais ascética austeridade,

como se o espaço (cujo acesso

as grades peremptoriamente vedam)

fosse votado por inteiro a extremos

exacerbados de misticismo e de penitência.

Mas também se pressentem salões escuros,

onde paira sempre o cheiro fresco a encerado,

ou a perfume de rosas e noz-moscada;

paredes revestidas de damasco,

cobertas de grandes telas,

paisagens campestres e naturezas mortas.

Medalhões de talha dourada, segurados

por fitas de seda listrada a duas cores;

silhuetas de damas coroadas de peruca,

fantasmas da corte da Rainha Louca,

móveis nas suas molduras de tartaruga e charão.

Frederico Lourenço em Resumo:a poesia em 2010

terça-feira, 23 de março de 2021

POSTAIS SEM SELO


Quando alguém conta um dia ou uma vida está a calar quase tudo, as vidas são imensas e não se podem contar só por palavras. Haveria que inventar artes de encher o silêncio e de descobrir nele o peso certo do que somos. O que se é só se pode encontrar no que não é dito, nas culpas deixadas dentro, nos castigos que se vão escolhendo.

Nuno Camarneiro em Debaixo de Algum Céu

Legenda: imagem Shorpy

OLHARES


Não fica longe, mas as pernas, destes tempos já não têm aquela facilidade de caminhar de outrora.

Conheci-a no Bairro Alto e estava à mão de semear.

A livraria Ler Devagar abriu portas mo ano de 1999. Depois a especulação imobiliária levou-os para a Lx Factory em Alcantara.

Fui lá algumas vezes mas já há muito que não a visito.

A falta que mais faz

A raiz, o nome, dizem tudo: «Tudo o que é bom é feito devagar ou com vagar».

Uma deliciosa linha de pensamento.

«Espero que os compradores de livros se tenham apercebido de que é melhor comprar livros nas livrarias de bairro ou de rua do que nos centros comerciais», disse José Pinho um dos fundadores da Ler Devagar.

OLHAR AS CAPAS


O Cônsul Honorário

Graham Greene

Tradução: Maria Ondina Braga

Capa: José Cândido

Livraria Bertrand, Lisboa, Outubro de 1973

O doutor Plarr, criado pelo pai com os livros de Dickens e de Conan Doyle, achava os romances do doutor Jorge Julio Saavedra difíceis de ler, mas considerava o esforço como parte das suas obrigações de médico. Dentro de alguns dias teria um dos seus usuais jantares com o doutor Saavedra no Hotel Nacional e devia aprontar-se para fazer qualquer comentário sobre o livro que ele lhe tinha tão calorosamente dedicado: «Ao meu amigo e conselheiro doutor Plarr, este meu primeiro livro para lhe mostrar que nem sempre fui um romancista político, e para revelar, como só se pode fazer a um amigo íntimo, o primeiro fruto da minha inspiração.» O doutor Saavedra, na realidade, não era nada taciturno, mas o doutor Plarr suspeitava de que ele se considerava um Moreno manqué Talvez fosse significativo o facto de ter dado a Moreno um dos seus nomes de baptismo…

TIRAR O VÉU A CARTAS DESTA VALIA


A capa do precioso livrinho já mereceu um Olhar.

Hoje, reproduzo as palavras que os editores, Emanuel Carneira e Paulo da Costa Domingues, colocam no prefácio. No meio de todo o lixo que por aí campeia, sabem bem estas palavras:

«Tem-se, por vezes, a sorte de ler aquilo que poetas e editores entre si trocam de mensagens. Fala-se de livros, fala-se do como dar a ler a oficina poética em páginas límpidas. Conspira-se sobre esboços a legar ao Futuro. Tem-se, por vezes, sorte. A sorte de testemunhar da fábrica, a sorte de sermos nós o autêntico destinatário, o alvo verdadeiramente cultural de preocupações e minúcias editoriais. Cuja implícita pedagogia é de agradecermos.
Aqui, numa toada que nos faz lembrar o bailado felino de dois gigantes criativos que se respeitam mutuamente e que, mutuamente, procuram eles (e encontram) o melhor terreno para a travessia dalguma arte vinda do outro lado do oceano. E se é um triângulo o que aqui temos, não é ele o buraco negro sorvedouro de matéria, mas, isso sim, o triângulo “amoroso” revelador do espírito de uma época culta irrepetível. Tirar o véu a cartas desta valia, que circunstâncias várias acabam, tantas vezes, por votar a uma invisibilidade perene – não fosse a acção dos que se dedicam, com obstinado entusiasmo, à preservação de arquivos e da memória histórica – favorece, pois, a possibilidade de enquadrar, de avivar protagonismos, de desenterrar detalhes dessa extraordinária aventura humana, poética e/ou editorial.
Em cena: Mário Cesariny, poeta-ex-editor proponente de um original inédito do poeta brasileiro Sérgio Lima, a Vitor Silva Tavares, editor-poeta e guardião do Subterrâneo Três. O livro a que tudo se refere – Aluvião Rei – sairia chancelado & etc, no mês de Setembro de 1992.
Da transcrição dos manuscritos, vai aproximativamente diplomática.»

LEAVIN'TOWN


Ao fazer a mala reparou que pouco

levava daquela lúgubre cidade.

Alguns vestidos, as primeiras frésias

que tivera de presente, agora murchas,

uma dezena de exemplares de Moody

que lhe serviam para amortalhar o resto.

 

Se é que alguma coisa restava, pensou

junto ao aparador, enquanto no espelho

se perdia o fogo ruivo dos cabelos,

sublinhado pelo negrume do olhar.

Ao ajoelhar-se sobre a mala, escreveu,

em vez do seu nome, «Goodbye to love».

 

Era também a sua única morada,

até que a morte ou a chuva a apagassem.

 

Manuel de Freitas em resumo: a poesia em 2011

 

Legenda: fotografia Shorpy

segunda-feira, 22 de março de 2021

POSTAIS SEM SELO


Na vida, há sempre comédia na tragédia e vice-versa.

Angelica Huston

QUOTIDIANOS


Quando foi trabalhar para a agência, ficávamos dispostos em pequenos gabinetes, só mais tarde foi criado um open space.

 Mas no tempo dos gabinetes, um chefe e quatro trabalhadores, até dava para ouvir a respiração de cada um.

O Esteves, a cinco anos da reforma, passava noites e noites de insónias. 

Volta e meia adormecia frente à máquina de escrever.

- Então, Esteves, que é isso?

- Desculpe Sr. Rolo, mas almocei favas!...

OLHAR AS CAPAS


Os Dados Estão Lançados

Jean-Paul Sartre

Maria Luísa Vieira da Rosa

Capa: F.C.

Editorial Presença, Lisboa, Outubro de 1972

Pedro, que não teve ainda possibilidade de dizer palavra, subitamente dá vazão à sua Cólera e olha os mortos com um ar de desafio.

- E então? O que é que isso prova? Que vocês falharam na vossa vida?

Os mortos respondem todos em uníssono:

- Vocês também, Falhámos, pois decerto. Todas as pessoas falham na vida.

O velho que esteve silencioso desde que chegou ao quarto, toma a palavra e a sua voz domina a confusão:

- Falha-se sempre a vida, no momento em que se morre.

- Sim, quando se morre cedo de mais – exclama Pedro.

- Morre-se sempre demasiado cedo…,  ou demasiado tarde. 

DÁDIVA


A flor que me não deste

e, esquiva, recusaste,

naquela tarde triste,

- uma rosa amarela

debruçada na haste –

foi afinal aquela

a flor que me entregaste,

pra sempre me entregaste,

naquela tarde triste,

naquela tarde agreste!...

Saúl Dias

domingo, 21 de março de 2021

POSTAIS SEM SELO


Se não queres que te escreva mais, diz-me. Depois decido eu o que faço. Às vezes é preciso pôr os pontos nos ii. E ao dizer isto deu-se conta que o ponto do i não era outra coisa senão uma ilha.

Claudio  Hochman em Ilhas

OLHAR AS CAPAS


O Signo da Ira

Orlando da Costa

Colecção Autores Portugueses nº 22/23

Editorial Arcádia, Lisboa, Fevereiro de 1961

Escravizados à lei do sol e das chuvas, os homens do campo olharam constrangidos para tudo quanto de novo acontecia à sua volta e assistiram, perplexos e temendo a sua própria revolta, à fraqueza e ao declínio dos batcarás, senhores das terras que amanhavam. Viram apodrecer sob o chão alagado a última semente do senhor e à beira do desespero conteve-os a submissão e a esperança. E por isso suportaram a fome caminhando de mãos dadas com o sol no meio de uma paisagem de verdura luxuriante, onde só os frutos suspensos e as ervas de pasto pareciam sobreviver. Mal-aventuradas gentes condenadas a ver as monções vestir de verde a própria morte!