sábado, 4 de abril de 2015

OLHAR AS CAPAS


Corpo Verde

Maria Velho da Costa
Desenhos: Júlio Pomar
Colecção: Cábulas de Navegação
Contexto Editora, Lisboa 1982

Debati-me diante da tua face como a fêmea do açor no seu primeiro
cobrimento. Mas a tua saliva vestiu-me de branco o dentro do corpo.

Os meus peitos sobem ao teu bafo e o meu corpo é como o galho na
Primavera quando lhe ascende o suco da terra.

No negrume da tua testa no sono provei com a minha boca a maciez do
lírio e no cingir-te com a minha vulva o silêncio do toiro sob as gotas
da  noite.

Deitados num mar de leite veneramos a mesma ilha de metal e osso por
dentro da carne e a alma que está na polpa dos dedos e do dorso.

Porque onde tu dizes pátria e ovo eu digo a toda a terra erectra do teu
falo, canoa e horto. E onde não falamos a fricção da nossa pele gera
mais sóis.

Agarra o meu cabelo que eu te arredondo o mundo e me concitas pela
tua mão aos outros continentes, mares irmãos.

Meu amado de alma como uma boca certa, adorno dos meus rins sob as
roupas.

Vestida do teu suor fui sobranceira ao medo. Mas todos os templos
batidos pelos ares estão nas colunas das tuas coxas. Venerado o teu
septo nasal e a pele do crâneo como se foram da criança própria surge o
susto – todo o amor é abolição de limites até do próprio corpo.

As nossas mãos a concha, tanger do mesmo músculo submerso.

E a tua estrofe com o seu sonido de altíssimo silêncio na viagem dentro
do casco da ilha, o tambor íntimo.

A tua boca sobe à minha boca como uma só língua de todas as línguas.

Comovem-me os teus quadris de guerreiro virgem. E as tuas mãos
estão na minha garganta como um colar de opala e âmbar, os teus
tornozelos enlaçados nos meus como as asas da borboleta nocturn
e os guizos da dança.

O sol do teu umbigo, úbere das tuas mãos, não resplandece mais do que
esse membro que entre ti e mim nos convoca e contempla.

Como uma estátua equestre no vácuo, em pura prata estelar, nos
montamos.

A tua cabeça é a rosa real, o cordeiro escuro, e as minhas coxas fremem
à  passagem do teu rebanho.

Nas omoplatas falta-me o vagar dos teus pulsos. O teu rosto sobre o
meu rosto na obscuridade rasga estes véus entre a matéria e o ânimo.

Moro no teu torso, perfume e falas. Conheço a tua língua e o teu
vagir-me nas entranhas como uma cidade contínua.

Vens como um cetáceo escuro sob gelos ao cristalino dual. Sob o fulgor
dos membros, sobre o marfim dos ossos, o nervo de oiro do desejo.

A tua cintura cintilante de água negra dobra, como um sino na
penumbra, o canto dos meus braços.

Que o meu irmão me beije e se beije no meu beiço como se fôramos a
flor de outra justiça.

Rescendemos juntos o odor da safra, lavra, rede aberta, aos peixes e ao
gado dos homens

O teu vulto esquivo contra as arcadas da noite e do meu crâneo, o teu
fonema fechado, lateral nos quadris do meu corpo que benzes e
levedas, o sal dos cílios húmidos e sons. O pudor, o poder, que cedem
a outra lei ou alto pão.

Ou olhos que se alagam uns dos outros como o mel das terras repara-
das, ou línguas que se afagam como raças, poldras soltas na planície

dos corpos e dos povos.

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