sábado, 4 de abril de 2015

UM CINEASTA DEMASIADO GRANDE


Descontados os levianos fervores dos meus verdes anos (era o tempo em que se lia o Sadoul, nunca partilhei a admiração com que alguns dos meus colegas envolviam a obra de Manuel de Oliveira, nem nunca soube tirar dela qualquer ensinamento. Num país em que a prática cinematográfica nunca deu frutos por aí além, sempre me quis parecer que as afinidades reivindicadas por alguns novos cineastas eram, consciente ou inconscientemente, uma forma de atenuar sobretudo a sua profunda solidão cultural, inventando a obra de um antepassado ilustre, ainda que exemplarmente frustrado por carências disto e daquilo. E já que andamos nesta vida só para arranjar sarilhos, também me parece que, não raras vezes, se serviram do nome e do prestígio de Manuel de Oliveira para fins pouco louváveis como, muito recentemente, num lamentável «documentário» sobre Sever do Vouga que, infelizmente, envolve outros nomes que não podem estar à mercê de empreendimentos daquele teor. Estou a pensar no Paulo Rocha, no Fernando Lopes e no Lopes Graça, e só não insisto nesse ponto por duas razões: porque me obriga a um longo desvio e porque me é penosos o simples facto de o mencionar.
(…)
Manuel de Oliveira faz, no contexto português, parte da pequena minoria de cineastas católicos (os outros são o Paulo Rocha e, numa escala bem mais modesta, o autor destas linhas) para quem o acto de filmar implica a consciência de uma transgressão. Filmar é uma violência do olhar, uma profanação do real que tem por objectico a restituição de uma imagem do sagrado, no sentido que Roger Caillois dá à palavra. Ora, essa imagem só pode ser traduzida em termos de arte, no que isso pressupõe de criação profundamente lúdica e profundamente ligada a um carácter religiosos e primitivo. (No meu ver, reside aqui a relutância destes cineastas em mostrar os seus filmes antes do acto da situação ser cumprido). Acontece, no entanto, que uma atitude dessa ordem se funda em valores supérfluos que precisamente se opõem aos valores de proveito engendrados pelo racionalismo positivista, não sendo por isso de espantar que, mau grado algumas episódicas consagrações por dever de ofício consagrador, este aristocrata que, muito saudavelmente, teima em se divertir como um doido à nossa custa regresse em breve ao torrão natal mais esquecido e incompreendido que nunca. O problema, de resto é só este: o país tem (inexplicavelmente um cineasta demasiado grande para o tamanho que tem. Portanto, das duas uma: ou alargam o território ou encurtam o cineasta, Como nos tempos que correm é difícil alargar um território, sugiro que se apequene o cineasta cortando-o às fatias e servindo-o frio ao público do Grande Auditório da Fundação Gulbenkian.
Resta dizer que, como todos os grandes e revolucionários filmes, também este tem o condão de desmascarar os imbecis e de propor uma lição de modernidade cinematográfica para quem a quiser entender.

João César Monteiro sobre o filme de Manoel Oliveira O Passado e o Presente em OsQue Vão Morrer Saúdam-te.

Legenda: imagem do filme Vale Abraão de Manoel de Oliveira

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