segunda-feira, 30 de abril de 2018

NÓS AMÁVAMOS MUITO E SABÍAMOS POUCO


A guerra de Espanha, aqui ao lado, vivida dia a dia e hora a hora com o ouvido colado aos apare­lhos de TSF, por causa das interferências meticulo­samente provocadas, por causa dos vizinhos (fos­sem eles quem fossem), com projectos ansiosos de ir lá ter («Partir./Partir para a pátria instável onde o grito salta das veias», versos meus de 38) e o re­morso de ficar. As notícias diárias dos bombardea­mentos, dos fuzilamentos, das aldeias destruídas, sem pão, sem armas. E o «no pasarón!». O não passarão vibrando no nosso desespero, ainda antes de gritado nas barricadas de Madrid, sentido em silêncio e lágrimas, neste país agrilhoado, esvaziado, com os amigos perseguidos, presos, torturados, muitos deles mortos não se sabia onde. Houve um tempo em que nem saber onde estavam se podia.
 Tudo isso foi raiz (e corpo) do neo-realismo. Do neo-realismo de que participei desde a hora antes do amanhecer, com o Joaquim Namorado, o Re­dol, o Namora, o Fonseca, o Carlos de Oliveira, muitos mais. Do neo-realismo que rapidamente se propagou e diferenciou. Que era e continua a ser motivo de confusões intencionais, involuntárias, talvez inevitáveis. Apesar de tudo o que, também eu, sobre ele escrevi e repeti. Dos estudos que al­guns lhe têm dedicado.
 Nós amávamos muito e sabíamos pouco. «A re­forma social» (e estética) «esbarrava na própria so­ciedade néscia que havia sido o caldo de cultura dos neo-realistas e também o [de mim] próprio», como bem diz um estudioso do movimento, ele próprio neo-realista, embora não da primeira va­ga. Líamos Barbusse, Gorki e Gladkov, os brasi­leiros, misturando Romain Rolland, Oscar Wilde, Tolstoi e Erich Maria Remarque, Panait Istrati e Malraux. Vagamente conhecíamos o Orpheu, pou­co melhor a própria Presença que tão juvenilmente combatíamos. Moralmente, estavam-nos vedadas grandes paixões futuras: o Proust, o Gide, Katherine Mansfield, tantos e tantos mais. Muitas vezes me espanta como, com tão pouca bagagem, podía­mos viajar até tão longe.
 A luta entre neo-realismo e surrealismo foi em parte um equívoco a que o nosso gueto forçosa­mente nos levou. Ao contrário do que aconteceu em França, o surrealismo em Portugal é posterior ao neo-realismo. Lá, muitos surrealistas, a começar por Aragon e Éluard, se tornaram comunistas e deram então à sua obra um cunho directamente social e político. Aqui, pelo contrário, foram os neo-realistas, não muitos na verdade, que se torna­ram surrealistas e se afastaram duma frente de combate que não lhes oferecia o espírito de renova­ção estética a que aspiravam. Aqui, ao contrário do que aconteceu em França, é a poesia de carácter directamente social que adoptará métodos criati­vos que só o surrealismo poderia fornecer-lhes. Não foi o que eu próprio fiz n' O Riso Dissonante, por exemplo, ou no Feu qui dort: «une pluie de taureaux est tombée sur la ville»? Dizer a verdade é bom.
 Entretanto, valerá a pena ao menos insistir em que: primeiro, nunca concordei com a designação de neo-realismo, que se deve a uma infeliz inspira­ção de momento do Joaquim Namorado, meu grande amigo até à morte; segundo, para mim, «neo-realismo» não era nem poderia ser uma outra maneira de, por razões de censura, dizer «realismo socialista»; terceiro, para mim ainda, o neo-realismo deveria ser a expressão estética duma vi­são marxista do mundo e, sendo esta tão complexa como se sabe (quem o sabe), aquele movimento — nunca «escola» — teria de desdobrar-se em diver­sas maneiras, gostos, soluções imprevisíveis — o que efectivamente aconteceu. O seu domínio seria o do «extremamente complexo conhecimento dia­léctico do homem» (Lenine). Complexo e dialécti­co, façam favor de tomar nota. Seria a voz duma classe em ascensão, de um mundo (um homem) necessariamente novo, que, como tal, teria de in­tegrar toda a herança do passado, incluindo a da classe a que se opunha. Aí estava a utopia.

Mário Dionísio em Autobiografia

OLHAR AS CAPAS



José Saramago: O Período Formativo

Horácio Costa
Capa: José Serrão
Editorial Caminho, Lisboa, Novembro de 1997

Duas actividades complementares à sua produção criativa foram exercidas por José Saramago no período formativo da sua carreira de forma mais ou menos constante: a de tradução e, menor em escala porém não em importância para este nosso estudo, a de crítica literária. Da primeira, vale dizer que foi através dela que o escritor muitas vezes completava o seu minguado salário como jornalista ou editor e que, por certos momentos, chegou mesmo a constituir a fonte principal dos seus ingressos financeiros – com toda a incerteza que isto implica, em se tratando de uma actividade de remuneração não controlada, e cuja demanda é desigual a depender do momento socioeconómico no qual é exercida. O estudo da sua actividade como tradutor permite-nos avançar, tentativamente, através de uma selecção e de uma classificação, ainda que rápidas, do material traduzido, em certos nexos do tradutor com o escritor, ou, mais simplesmente, sobre seu modus scribendi em algum momento dado da sua produção literária.

RECEITA DE MULHER


As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança,
qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize
elegantemente em azul,
como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso
que súbito tenha-se a
impressão de ver uma
garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só
encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas
que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso,
é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que
umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:
uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável.
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A
mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos
Ao abri-los ela não estará mais presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

Vinicius de Moraes em Antologia Poética

Legenda: Lauren Bacall

domingo, 29 de abril de 2018

QUOTIDIANOS


A minha vizinha do andar de baixo tem muita idade e vive sozinha.
Poucas vezes a vejo, porque nunca sai, não sobe nem desce escadas; porque eu saio e entro sempre em correria, porque o egoísmo adia a visita, o bom-dia, a planta que se encomendou no florista.
Estive um tempo fora. No regresso subia com as malas, e o estrondo sincopado de encontro aos degraus chamou a atenção da senhora que apareceu no patamar. Perante o seu contentamento de me ver tornei a sentir-me envergonhada.
«Sim, a sua vida… Gostava de vê-la mais vezes mas não faz mal. Sabe, bastam-me os seus passos embora cheguem aqui abafados pela alcatifa. Gosto tanto de os ouvir. A verdade é que tinha saudades do som dos seus passos lá em cima».

Isabel da Nóbrega em Quadratim-I

ESTADOS DE PERPLEXIDADE ANGUSTIOSA


António José Saraiva, ao longo da sua correspondência com Óscar Lopes , lamenta-se que o amigo lhe escreva tão pouco.
Na carta, datada de Paris a 23 de Março de Março de 1964, começa por escrever:

Recebi a tua carta via Suiça. Aliás simples postal escrito a correr. Sei que tens falta de tempo, mas essa não é a razão verdadeira de me escreveres pouco.

O final da carta é uma abordagem de «alguns problemas pessoais»:

«O meu contrato com o CNRS acaba impreterivelmente em Setembro. Até lá preciso de saber o que vou fazer. Tentei uma diligência a saber se poderei colocar-me na Universidade de Argel, Se falhar – que é o mais provável – terei de tentar o Brasil, porque tenho responsabilidades de família. Mas receio que indo para o Brasil lá fique. Os rapazes estão na adolescência os mais velhos, e arrisco-me a ter netos brasileiros. Talvez não me seja possível mais tarde refazer uma vida em Portugal. Por isso a ida para o Brasil quase me aterroriza. Este problema traz-me num estado de perplexidade angustiosa. Outro problema que continua a afligir-me é o da solidão moral e física. Isto faz com que eu fuja o mais possível do meu quarto, o que prejudica o meu trabalho. Tenho pensado muito nestes últimos tempos, mas tenho escrito pouco. Por  outro lado, para satisfazer as minhas obrigações com o CNRS meti-me num trabalho erudito e minuciosos sobre Vieira, que tem certo interesse, mas que não é o género de trabalho que propriamente me interessa. É fundamental para eu escrever estar metido numa polémica ideológica. Gosto de viver e falar no meio de gente. Evidentemente que não é em Paris que eu me sinto empenhado. Não o será também no Brasil, a não ser que eu deixe de pensar em Portugal, o que me parece impossível. Até agora sofro de todas as desvantagens de estar longe de Portugal, sem em troca ter achado outro meio de integração.

DÊEM O PRÉMIO A OUTRO!



A Frenesi Loja tem à venda (30 euros, portes incluídos) uma edição comemorativa dos dez anos do Prémio Fernando Pessoa, profusamente ilustrado a cor, encadernação editorial em tela gravada a ouro na pasta anterior e na lombada, com sobre capa impressa, folhas-de-guarda impressas.

«O grande interesse nesta publicação, que reúne fotos e entrevistas com os galardoados de uma década, reside no facto de testemunhar, num registo verdadeiramente patético, o embaraço dalguns membros do júri mais audazes quando, rumo a Cascais em demanda do nosso maior poeta vivo, Herberto Helder, portadores do “ouro” do Prémio Pessoa 1994, encontraram o caminho de volta na simplicidade inflexível da palavra de um pobre guardador do seu crisol: «Vocês não digam a ninguém e dêem o prémio a outro...»


«Em 1994, foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa pela sua obra que, segundo o júri, iluminava a língua portuguesa.

Uma pipa de massa para quem tinha uma reforma curta.

Mas Herberto Helder recusou a distinção.

António Alçada Baptista e Clara Ferreira Alves, em nome próprio e do Expresso, tentaram demovê-lo.

Conta o Alçada Baptista:

O Herberto estava na sala. Falou à Clara e depois a mim.

Eu disse, meio a brincar meio a sério:

 - Vimos numa difícil missão...

Ele, com toda a simplicidade dele, disse-me logo que não, calculando que era um prémio.

Não foi possível demovê-lo e sentimos que aquilo era tão fundo e tão importante para ele que não devíamos insistir. Ele disse:

- Vocês não digam a ninguém e dêem o prémio a outro...

- Não pode ser, o júri escolheu-te a ti, a decisão está tomada; respeitamos que digas que não...

Ele ainda acrescentou:

- Peço que sejam meus mandatários e digam ao júri que eu agradeço mas não posso aceitar.

Eu queria transmitir bem que não havia aqui nenhuma arrogância: a sua recusa não era contra ninguém. Era uma decisão do seu eu mais íntimo, que logo nos mereceu o maior respeito.

Eu só lhe disse:

- Eu já gostava de ti e vi agora que é possível ainda gostar mais.»

NADA ENTRE NÓS TEM O NOME DA PRESSA


Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,

se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós

o tempo desenha-se assim, devagar.
Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.

Maria do Rosário Pedreira em A Casa e o Cheiro dos Livros

sábado, 28 de abril de 2018

POSTAIS SEM SELO


Apesar de tudo, a vida vale a pena ser vivida. Só que os homens a podiam tornar bem menos dura.

Marguerite Yourcenar

Legenda: imagem Shorpy

SEM SABER COMO VAI ACABAR


O sonho é uma construção da inteligência, a que o construtor assiste sem saber como vai acabar.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

VELHAS MÚSICAS


Antes de arrancar para a Catedral, Canon de Pachelbel, um clássico que nunca me canso de ouvir.

OLHAR AS CAPAS


Relatório de Sombras ou a Memória das Palavras II

José Gomes Ferreira
Capa: Vitorino Martins
Moraes Editores, Lisboa, Setembro de 1980

Porque isso da velhice, se não me engano (naturalmente engano-me), não é propriamente o estado de liberdade ideal descrito por Platão. Por circunstâncias cuja descrição não vem ao caso, já comecei mesmo a fazer certas descobertas que me descoroçoaram.
Esta, por exemplo: os velhos perdem o prazer da solidão. Sofrem-na, resignados – o que é diferente. A alegria que ela tanto dá à gente nova, por riqueza interior, desvanece-se. Para os velhos – pelo menos para certos velhos – torna-se na antecâmara da morte, espécie de isolamento numa ilha de gelo que seca a imaginação e impede que se criem fantasmas novos. O recurso à ruminação do Passado – o efémero retorno – com para-se lá à felicidade da juventude, quando um moço se fecha à chave no quarto e apaga todas as luzes para pensar na bem-amada sem testemunhas, a sentir a fraternidade que é o supremo bem dos solitários.
Em resumo: os velhotes ainda se toleram e divertem quando são foleiros e irresponsáveis e principiam a perseguir as pequenas com graçolas tontas que elas ouvem com indulgência de assistir a um pôr-do-sol de cores incoerentes. Mas quando as artérias dos pobres bichos começam a petrificar, até apetece pedir a demissão de não sei quê.

RESTAM AS HORTAS


De toda a lavoura que já teve este lugar
restam as hortas, e não é por acaso:
são mais aconchegadas à aldeia
e por isso não exigem grandes caminhadas
nem excedem em muito as forças dos velhos
e, enfim, as couves e as batatas
estão pela hora da morte no mercado.

Restam pois as hortas. Tudo o resto,
searas e vinhas e olivais,
e tilintar de chocalhos nos lameiros,
e chiar de carros nas madrugadas de Julho
- só já muito longínquo, como se
Já noutra nebulosa

Como se alastrasse pela Terra Quente
a mais desoladora das charnecas,
a mais agreste e batida dos ventos.

Só já escombros.
Só já um espelho que se estilhaçou
e que, quando tento recompô-lo,
me faz rasgões na alma

A.M. Pires Cabral em Resumo: a poesia em 2013

sexta-feira, 27 de abril de 2018

POSTAIS SEM SELO


Em relação ao trabalhador intelectual passa-se uma coisa bem portuguesa, perante a qual não distingo regimes ou partidos. Em geral, só com fins políticos dão um pequeno passeio ao domingo com a cultura. Na segunda-feira já a esqueceram.

Raul de Carvalho citado por Serafim Ferreira em Entre o Silêncio e a Solidão

MARCADORES DE LIVROS

COM A ADMIRAÇÃO DE QUEM ESTAVA PRESENTE


Na primeira leitura que fiz das Poesias Completas de António Gedeão, Pedra Filosofal ficou logo assinalado como um das muitas poesias suas da minha preferência.
Quando naquela segunda-feira de Setembro de 1969, Manuel Freire cantou, no Programa ZIP-ZIP, a Pedra Filosofal, fiquei arrepiado.
António Gedeão, nas suas Memórias, expressa a ideia que foi Manuel Freire, musicando alguns dos seus poemas, permitiu que a sua poesia conseguisse um êxito generalizado e nunca imaginado.
Mas peguemos em algumas das passagens em que Gedeão aborda essa faceta da sua vida de poeta:

No ano de 1969 fui procurado pela Casa Valentim de Carvalho, importante produtor de discos, que me queria convidar para gravar um disco com poemas meus, ditos por mim. Em 28 de Março desse ano fui a Paço de Arcos aos respectivos estúdios, e aí disse sete poemas, à minha escolha. Tem graça que os disse todos de seguida sem ser necessária qualquer repetição. Conforme os disse à primeira, assim ficaram gravados com a admiração de quem estava presente. Não é costume ser assim. Devo dizer, na minha qualidade de ouvinte, que das dúzias de poemas meus que tenho ouvido dizer por outrem, é a minha dicção a que me agrada mais. Não há nisto nenhuma presunção. Isto quer dizer apenas que gosto mais de me ouvir a mim do que aos outros, ne recitação dos meus poemas.
O disco vendeu-se bem e a casa Valentim de Carvalho resolveu efectuar a gravação de um segundo disco, também dito por mim, de outros poemas. Em 21 de Março de 1971 voltei a Paço de Arcos e aí gravei o novo disco. Depois esperei. Esperei e a esperar terminou esse ano de 71. Entrámos em 72 até que no dia 10 de Março desse último ano, indo eu na rua, encontrei uma senhora conhecida que me disse já ter comprado aquele meu novo disco e, é claro, ter gostado muito. Ai, sim? Não sei de nada.
Fui então à Valemtim de carvalho a aí ao balcão disse à empregada que atendia os fregueses que eu era fulano de tal, que tinha gravado, naquela empresa, um disco meu e que não me tinham dado nenhum exemplar. Se ela não se importasse que fosse lá dentro ver se estava lá algum superior da casa, e lhe comunicasse o que se passava. A criatura foi lá dentro e tornou a aparecer com o disco na mão. Entregou-me, e eu, muito boa tarde, saí do estabelecimento.

OLHAR AS CAPAS


O Livro de Cesário Verde
Seguido de Algumas Poesias Dispersas

Cesário Verde
Edição revista por Cabral do Nascimento
Editorial Minerv, Lisboa s/d

Arrojos

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos «mignonnes» e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

POSTAIS SEM SELO


Um desejo irreprimível de cheirar os campos molhados.

Carlos de Oliveira em Uma Abelha na Chuva

NOTÍCIAS DO CIRCO


Volta a falar-se do Bloco central.
O primeiro-ministro diz que não.
A ver vamos, como diz o cego do costume.
Mas Mário Centeno tem andado a preparar o país para tempos agrestes.
Em Março falava de um quadro económico menos favorável.
No dia 13 de Abril voltou ao tema e na véspera do 25 de Abril repetiu a dose.

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


As realizadoras Catherine Gund e Daresha Kyi reuniram uma série de testemunhos e documentos, mais as canções e fizeram um documentário de Chavela a cantora da voz rouca e sofrida, voz única, e ninguém como ela cantou a solidão.

Este género de filmes costuma estar muito tempo em exibição.

O lixo cinematográfico, esse, prolonga-se por meses em qualquer sala da cidade.
É como os livros que interessam: alguns nem chegam às livrarias, outros estão um ou dois dias nos escaparates. Os Josés Rodrigues dos Santos eternizam-se nos diversos espaços das livrarias.

Chavela, é um filme biográfico a não perder.


De um texto publicado no suplemento Mais Artes da edição do Diário de Notícias de 7 de Abril:

Cantava como quem morre e punha a vida na voz. Chavela Vargas (1919--2012) nasceu na Costa Rica mas fugiu para o México ainda jovem e integrou a tradição musical ranchera do país, fazendo-se respeitar numa sociedade patriarcal. Usava calças e bebia tequila como os homens. Não se assumiu publicamente como lésbica até aos 81 anos, mas entre as suas muitas amantes conta-se Frida Khalo. Depois de uma fase marcada pelo alcoolismo, regressou aos palcos, desta vez do mundo, pela mão de Almodóvar, que a eternizou nas bandas sonoras dos seus filmes.
Foi antes desse retorno aos palcos que Catherine Gund a entrevistou, em 1992, como relata: "Quando conheci Chavela Vargas, e filmei a nossa interação, ela tinha 72 anos e toda uma vida de canto, tendo sofrido com a bebida durante muito tempo. Tornou-se uma espécie de reclusa. Filmá-la naquele momento significou realmente preservar algo da sua memória para a posteridade. Eu estava convencida de que a carreira dela estava completa." São essas filmagens que abrem o filme, mostrando uma mulher sem medo. "Quem é que faz um comeback com aquela idade?", espanta-se Daresha Kyi.
Quando lhes perguntamos como definem Chavela e o seu canto rouco e abismal, as respostas são poéticas. "Era uma sereia cantando das profundezas de um mar de emoção", diz Daresha. Já Catherine descreve a sensação: "Quando a música acaba ainda estou completamente imersa no seu crepúsculo. Não tenho a certeza se isso equivale a absolvição, sobrevivência, transformação ou tudo ao mesmo tempo, mas sei que a sua música me deixa transformada.


VELHOS RECORTES

Assim se fizeram as coisas...
Assim, uma rapaziada fixe meteu o socialismo numa gaveta...
Não mais de lá saiu...
Ou a suave transição democrática do país à beira-mar plantado...

OLHAR AS CAPAS


Poemas para a Revolução

José Carlos de Vasconcelos
Colecção Universidade do Povo nº 7
Capa: Dorindo de Carvalho
Diabril Editora, Lisboa, Julho de 1975

Acordo na Manhã de Abril

Acordo na manhã de Abril
acordo  na manhã de rosas
acordo e tenho uma face
- é mais do que um filho
É minha pátria que nasce

Acordo e tenho uma face
natural  à nossa medida
tão de terra e tão de povo
- é mais que uma nova vida
É uma vida num mundo novo

Acordo ma manhã de Abril
acordo na manhã de rosas
com a voz livre do meu país
- e berro sofro mordo canto
e choro choro de tão feliz

quarta-feira, 25 de abril de 2018

POSTAIS SEM SELO


«E hoje», perguntei. «Continuamos. Isto é como um rio: leva mais água, ou menos água, mas corre sempre. Não secamos.»

EI-LA A CIDADE


Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias durou a barbárie salazarenta/marcelista, o tempo do desprezo, como lhe chamou Mário Dionísio.

Éramos um país que vivia debaixo de um atraso sem medida, tempos terríveis que só quem neles viveu tem a justa medida – quem passa por elas é que sabe!

O avô senta o neto nos joelhos e conta: foi assim.

Acreditávamos.

Tão só.

Quem não viveu, esqueceu ou renunciou às delícias das ilusões desses grandes dias nunca vai conhecer o exacto perfume das flores.

A festa foi bonita, pá.

Manuel António Pina:

Durou, o sonho, só uma semana, mas esse é um património que ninguém nos tirará. Na tarde do 1º de maio, já nos confrontávamos uns com os outros.
De então para cá, tem sido o que se sabe. Carlyle escreveu que as revoluções são sonhadas por idealistas, realizadas por radicais, e que quem delas se aproveita são os oportunistas de todas as espécies.

Quarenta e quatro anos sobre a madrugada que esperávamos, lembrando Sophia, quando emergimos da noite e do silêncio.

Também escreveu José Saramago:

Nenhum dia é festivo por ter já nascido assim: seria igualzinho aos outros se não fossemos nós a «fazê-lo» diferente.

Ao longo destes anos, tenho vindo a ouvir os que, a partir de um certo tempo, sempre anunciarem que o 25 de Abril se tornaria num 5 de Outubro.

Nunca acreditei e ainda não vi a possibilidade de isso vir a acontecer.

Gente que pensa que a memória do 25 de Abril é algo difuso, que com o tempo se tornará insignificante, gente que advoga o silêncio como um argumento.

Serenamente vos digo:

Não há nenhum 25 de Abril em que não me venha à memória, o 1º poema de Canto e Lamentação na Cidade Ocupada, incluído em  A Invenção do Amor e Outros Poemas, de Daniel Filipe lido, relido vezes sem conta, nos tais tempos difíceis:

 Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma

em praças ruas becos boîtes e monumentos

Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote

Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria

e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone

Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida

esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor

Legenda: fotografia de Eduardo Gageiro

O 25 DO PACHECO


Estou na cama de manhã e aproveito para apontar na Agenda o tempo que passa. Tinha ficado na véspera em casa a rever provas. O puto fora para o liceu. Resolvo ir à rua beber uma cerveja e continuar a revisão. Ao pé do chafariz, o barbeiro atira com esta: «então, o Marcello e o Thomaz lá foram ao ar...» Não percebo logo. Nem acredito como. Mas ele confirma: a Emissora Nacional não funciona, só o Rádio Clube Português é que dá música e de vez em quando comunicados breves. Já mais convencido, convido-o logo a festejar na tasca da Laurentina que era para onde eu ia. E depois, ainda duvidoso, vou com ele à barbearia a ver se oiço algum comunicado. Música ligeira, sem nada de marcial. Canções populares portuguesas, pouco mais. (Até a Amália, parece-me!). Mas passados minutos um comunicado do Comando das Forças Armadas. Aí, adquiro a certeza que é, deverá ser a repetição do golpe das Caldas, mas com outra amplitude. Refere que o público tem ocorrido às lojas, em tentativas de açambarcamento, e manda fechar o comércio. Aconselha a população a manter-se nas suas casas e as forças militares e militarizadas a recolherem aos quartéis e não oferecerem resistência à tropa. A coisa é grave. Parece que não há comboios e para lá de Sete Rios não se passa. Tenho algum dinheiro e resolvo logo ir ver (foi o melhor que fiz: ver para crer). Desço acelerado e vou a casa do Fernando Paços, perguntar se ele sabe alguma coisa. Se sabe não diz. Mas confirma. Acompanho-o à farmácia de Queluz Ocidental e depois (ele aconselha-me que não vá a Lisboa, pois não conseguirei passar – mas eu conheço outro sítio para entrar, ou sair, da minha terra e caminho acelerado. Muitos carros, em fuga discreta?) para cá. Em Queluz, já vejo lojas fechadas, outras a fechar à pressa e uma data de tontos a abastecerem-se para o ano todo... oiço que um tal comprou mais de cem pães. Rica açorda (ou negócio) deve ter feito com eles. Cafés fechados. Há comboios. Meto-me num para a Amadora, depois sigo a pé. No Bairro do Bosque (sempre o intenso movimento de carros a saírem), ainda consigo meter um copo. Não há jornais. Rostos, com as janelas fechadas, assomem entre cortinas. Tudo me dá a ideia de receio (mas em Queluz vi alguns magalas a planar, o que me deixou intrigado). Venho a pé até às portas de Benfica e o ambiente é o mesmo: fila de carros a safarem-se, comércio encerrado, mulheres com sacos de plástico cheios, tensão. Meto-me num autocarro da Carris, de Benfica para o Chile e fico-me um tanto a rir do Paços, que em Lisboa e a andar para o centro já eu vou. No Chile, só uma taberna aberta: bebo mais um copo, estou nas lonas. Animação. Um tipo ao meu lado compra oito maços de Português Suave, também está a açambarcar ou a fumar aquilo diariamente habilita-se a um cancro nos pulmões em beleza e rápido. Aparece gente com jornais (A Capital) e sei que estão a vender para os lados do Império. Vou logo lá, sento-me num degrau e sei as primeiras notícias. Tá bem! Resolvo ir a casa do Henrique, ver se ele estará. Na Carlos Mardel, uma senhora num 1º andar pergunta-me onde vendem jornais. Digo e ofereço-lhe o meu. O marido, que vinha à rua, fica com ele e eu fico reduzido a 30$00. Começo com sede e angústias. Estou em jejum e já andei um bom bocado. Penso ainda ir ao Manaças (António) mas desde a última vez, desde a nossa última conversa, ele não me está a apetecer. E depois, o importante deve estar a acontecer na Baixa. Enfio ao Montecarlo (fechadíssimo) mas consigo topar um tipo a bater à porta da Mourisca (também fechada) e entrar. É que há gente. Vou, bato, o Costa Loiro está a forrar vidros por dentro com papel, talvez com receio dalgum obus. Peço-lhe vintes e ele despacha-me. Meto à Rua Viriato e vou até ao quartel de Santa Marta (todas as tascas fechadas até ali). Dá-me vontade de rir ver os cabeças de nabo reunidos lá dentro, a falarem uns com os outros (é que obedeceram às ordens?). Mas logo ao lado há uma tasca restaurante, porta meio aberta, com gente e muito movimento (guardas a beber, outro a telefonar para casa e sossegar a mulher (?), diz que não há azar). Bebo uma Sagres e como uma sandes. E avanço para a linha de fogo, que não sei onde é. Metros andados, ouvem-se ao longe tiros e rajadas de metralhadora. Tipos que fogem. Mas onde será o tiroteio? Como a coisa parou, continuo a andar. Até que encontro, já não sei onde, o Almeida Santos e um tipo que é revisor no Diário de Lisboa ou Popular, já não sei. Metemo-nos num táxi que sobe pela Calçada do Carmo. Mas logo populares avisam (ah, entretanto, perto do Tivoli, já tinha comprado um Diário de Notícias, com mais informes) que a rua está bloqueada. O carro faz marcha-atrás e mete (por onde?) para o Bairro Alto. Bebemos não sei o quê numa tasca, o revisor vai à vida, o Almeida Santos pira-se e eu avanço para os lados do Carmo. Na Rua da Misericórdia, muita gente, tropa e um tanque de respeito. Da janela da Redacção da República, o Vítor Direito e o Afonso Praça (aquele grita-me: «estás muito bonito hoje!», eu levava o sujíssimo albornoz que me deu o Artur), noutra varanda o Álvaro Belo Marques, a quem pergunto: «como é que se entra para aí?», porque a porta da escada da República está fechada. «Vai pelas traseiras!». Vou mas também está fechada e logo à esquina aparece um vendedor com a última da República. É um verdadeiro assalto. Aí fico a saber dos chefes (Costa Gomes e Spínola) e o alvoroço é enorme. Já não sei bem: se vim ao Rossio, se de repente notei uma grande correria para o Terreiro do Paço. Sem perceber nada do que se passa, sigo a onda. No Terreiro do Paço, começa a chover. Há correrias e encontro uma rapariga que me conhece muito bem mas não topo logo. É a Maria João, a engenheira química, amiga do Henrique, com outro rapaz. Ficámos abrigados da chuva debaixo das arcadas, depois convenço-os a irem beber um copo ao Terreiro do Trigo (Campo das Cebolas?), não sei já se estava aberto se não. Ela tem o carro no Camões e para aí vamos. Mas o Chiado está cheio de gente, que quer assaltar a Pide. Já não sei se ouvi tiros. Vi ainda as (uma?) ambulâncias, depois quase à porta da Brasileira um rapaz ou homem com a mão cheia de sangue (seco?), que tinha agarrado num rapaz ou rapariga. Começam a chegar fuzileiros, há mais correrias, a Maria João e o rapaz perderam-se de mim. Cheira-me que já chega. Agarro um táxi e arranco para casa da Ção. Pela TV vi depois o resto. Foi bonito e foi rápido. Já posso morrer mais descansadinho.

Luiz Pacheco em Diário Remendado

Legenda: pormenor da capa de Diário Remendado

RAZÕES A QUE NÃO PODIA FUGIR


Retirou-se Salvador, houve depois um longo silêncio, parecia menos fácil falar com toda esta luz, então Marcenda disse, Se não é abuso da minha parte, posso perguntar-lhe por que está a viver há um mês no hotel, Ainda não me resolvi a procurar casa, aliás não sei se ficarei em Portugal, talvez acabe por voltar para o Rio de Janeiro, Viveu lá dezasseis anos, disse o Salvador, por que foi que resolveu regressar, Saudades da terra, Em pouco tempo as matou, se já fala em partir outra vez, Não é bem assim, quando resolvi embarcar para Lisboa parecia-me que tinha razões a que não podia fugir, questões importantíssimas a tratar cá, E agora, Agora, suspendeu a frase, ficou a olhar o espelho na sua frente, Agora vejo-me como o elefante que sente aproximar-se a hora de morrer e começa a caminhar para o lugar aonde tem de levar a sua morte, Se regressar ao Brasil e de lá não voltar nunca mais, esse será também o lugar onde o elefante foi morrer, Quando alguém emigra, pensa no país onde talvez morra como país onde terá vida, é esta a diferença, Talvez que quando eu vier a Lisboa, daqui por um mês, já não o encontre, Posso ter arranjado casa para habitar, consultório, hábitos, Ou ter regressado ao Rio de Janeiro, Logo o saberá, o nosso Salvador lhe dará a notícia, Virei, para não perder a esperança, Ainda estarei por aqui, se não a tiver perdido.


Legenda: fotografia tirada do blogue Restos de Colecção.

OLHAR AS CAPAS


O Dia da Liberdade

Coordenação: Pedro Lauret
Verso da História, Vila do Conde, Abril de 2015

Era uma dança de fantasmas, um jogo de sombras, um epílogo patético para um poder que se transformara na sua aparência. Nem Marcelo Caetano, nem os seus generais mandavam já nas Forças Armadas. Para dizer a verdade, Spínola também não. A conspiração dos capitães fizera da hierarquia uma cabeça sem corpo e ia evidenciar que a tropa era ao MFA que obedecia.
A 16 de março, reagindo intempestivamente ao saneamento dos faltosos à Brigada do Reumático, foi a precipitação. Nem assim o regime conseguiu impedir ou desarticular o inexorável. A 25 de Abril foi a precisão. A falência da transição dava lugar à rotura militar e à revolução.

De um texto de Fernando Rosas.

REVOLUÇÃO


Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação


Sophia de Mello Breyner Andresen de O Nome das Coisas em Cem Poemas de Sophia

Legenda: pintura de Vieira da Silva

CRAVOS FORAM LANÇADOS DAS FRISAS


CRAVOS E VERDI


Nos últimos anos da ditadura, o Teatro São Carlos estabeleceu uma parceria com o Coliseu dos Recreios de modo a que as óperas que eram representadas no São Carlos também pudessem ser vistas na velha sala das Portas de Santo Antão.

Era a possibilidade de um vasto leque da população, sem dinheiro, nem fraque, nem jóias para frequentar São Carlos, pudessem usufruir desses espectáculos, como que dando seguimento à célebre frase de António Silva de que a ópera é música para operários.

Quando, nessa noite,  24 de Abril de 1974, perto de cinco mil pessoas aplaudiram freneticamente os artistas, com Alfredo Kraus e Joan Sutherland à frente do elenco, que representaram La Traviatta de Verdi, já as senhas do Movimento das Forças Armadas tinham sido transmitidas pela rádio.

A reportagem do Diário de Notícias dava conta que, no meio das ovações intermináveis, cravos foram lançados das frisas.

Regressando a suas casas, desconheciam que esse começo de 25 de Abril não era mais um dia do calendário, um dia como outro qualquer.

Um regime decrépito, que nos massacrava os ouvidos com afirmações de coragem e heroicidade, que se as forças do mal atentassem contra a  ordem estabelecida, vinham  para as ruas dar o peito às balas.

Em escassas horas, o senil regime esfrangalhou-se.

Não soltaram um pio.

Como disse o Hélder: foi um ar que lhes deu.

A partir desse dia, protagonistas de uma grande esperança, nem nos pesadelos mais negros, admitimos que viríamos a ser invadidos por um desencanto sem nome.

Aconteceu!

Encharca-nos os dias.

Mas é bom não esquecer que há coisas que não têm fim: a esperança num mundo melhor, por exemplo, e a luta por consegui-lo. 


FALTÁMOS POR MOTIVO IMPREVISTO

Vezes sem conta, tentei arranjar bilhetes para ir ver as récitas das óperas que do São Carlos desciam até ao Coliseu, mas nunca consegui.


Sabia que os bilhetes eram distribuídos por aqui e por ali e os poucos que restavam eram postos à venda mas desapareciam num ápice.

Pela leitura da Alvorada de Abril do Otelo Saraiva de Carvalho fiquei a saber que Secção de Actividades Culturais e Recreativas da Academia Militar era uma das entidades a quem eram distribuídos bilhetes.

Aliás, por mera curiosidade, vale a pena recordar, em vésperas do 25 de Abril, as mirabolâncias operáticas do Otelo.

Otelo diz à mulher que chegou a hora, e se ela, no rádio, ouvir os sinais, é porque tudo está acorrer bem.

A mulher pergunta-lhe o que acontecerá se não ouvir os sinais.

Otelo responde-lhe:

Então, não sei ainda o que me poderá acontecer. Presumo que serei demitido, entregue à PIDE, passado a civil e vá aboborar por uns anos largos em Caxias ou, quem sabe, faça uma viagem só com bilhete de ida para o Tarrafal. Uma coisa te garanto: nunca mais farei guerra nenhuma no Ultramar.

E adianta:

O gracejo final fora chocho. Tinha a sensação de que o panorama se apresentava negro. Tentei dar-lhe uma pincelada de cor:
- Mas não te apoquentes com nada disso nem tenhas pensamentos desse género. Porque eu tenho a certeza de que, em poucas horas, ganharemos esta guerra. Dominamos quase todas as unidades do País, a malta está com uma gana formidável, temos a nosso favor o efeito surpresa. É canja!
Ela quis também dar ao ambiente um pequeno toque de humor:
- Queres então dizer com isso que amanhã não vamos à ópera?
Tinha-me esquecido completamente do assunto. Comprara bilhetes para a Traviata, que se cantava na noite de 24 no Coliseu dos Recreios, aproveitando o preço mais baixo que nos era facultado através da Secção de Actividades Culturais e Recreativas da Academia Militar.
- Olha, guarda-os para recordação. É claro que não vamos.
Com o permanente espírito de economia caseira retorquiu:
- Leva-os antes contigo e procura entregá-los amanhã na Academia. Pode ser que devolvam o dinheiro.
- Não vou fazer isso. Entregá-los agora depois de tanto os ter pedido, dizendo que já não me interessa, pode levantar qualquer suspeita. Paciência. Outra vez virá. Além disso, já vimos a Traviata do alto do galinheiro do São Carlos.
Ainda hoje tenho comigo esses bilhetes. No sobrescrito timbrado da Academia Militar dentro do qual mos entregaram, minha mulher inscreveria mais tarde a frase: "Faltámos por motivo imprevisto".

terça-feira, 24 de abril de 2018

POSTAIS SEM SELO


De resto, o camaleão não muda de cor uma vez só.
Mudar de cor é a própria natureza do camaleão.

CADA UM ESCOLHE O CAMINHO QUE QUER


Carta, sem data, de Mário-Henrique Leiria para a doce e maravilhosa Jezebel:

Chegou-me a tua carta ontem, tal como o teu desespero e a tua dúvida. Porquê, querida?
Afinal, sabes tão bem como eu que cada um escolhe o caminho que quer. Há caminhos que levam à torta de chocolate e outros que levam ao inferno. Quanto a mim, acho os segundos mais excitantes; pelo menos lá é quente e há gin.
Escuta, querida.
Não deves estar tão desesperada e tão duvidosa, até porque sabes perfeitamente que, se deixasses para trás os filhotes e o companheiro, ias passar a vida com tremendos casos de consciência. E isso era pior.
Claro que te explico isto com a normal e bruta indiferença que todo o mundo afrma existir em mim. Mas aí está: ei sou bruto e indiferente, tu não. A ti tudo te magoa e fere, a mim nada me atinge, como de costume.
Olha.
Gosto tanto de ti que até me parece que fui injusto quando afirmei que não tinha coragem para abandonar tudo e vir ter comigo. Coragem tens, e enorme. Só que não podes (não deves) fazê-lo, senão ias destruir-te. E, afinal, eu não quero a destruição de ninguém. Parece mentira, mas é verdade.

OUVINDO BEETHOVEN


Venham leis e homens de balanças,
Mandamentos daquém e dalém mundo,
Venham ordens, decretos e vinganças,
Desça o juiz em nós até ao fundo.
Nos cruzamentos todos da cidade,
Brilhe, vermelha, a luz inquisidora,
Risquem no chão os dentes da vaidade
E mandem que os lavemos a vassoura.
A quantas mãos existam, peçam dedos,
Para sujar nas fichas dos arquivos,
Não respeitem mistérios nem segredos,
Que é natural nos homens serem esquivos.
Ponham livros de ponto em toda a parte,
Relógios a marcar a hora exacta,
Não aceitem nem votem noutra arte
Que a prosa de registo, o verso data.
Mas quando nos julgarem bem seguros,
Cercados de bastões e fortalezas,
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.

José Saramago em Os Poemas Possíveis

Nota do Editor: Manuel Freire musicou este poema. Ouvir a canção aqui.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

POSTAIS SEM SELO


Nem miragem, nem oásis, nem fortaleza de certezas, nem mar de angústias. Talvez um marco, o maior, o mais luminoso, nesta caminhada que é a vida vivida com os outros, sobretudo com os que nesse dia e nos seguintes se beijaram na rua, se disseram «tu» sem se conhecer e hoje ainda, quando ao domingo de manhã compram cravos para levar para casa não sabem comprá-los de outra cor que vermelhos.

Autor desconhecido

Legenda: fotografia de Alfredo Cunha

VELHAS CANÇÕES


Erguer a Voz e Cantar

Letra e música de António Macedo

Canta canta amigo canta
vem cantar a nossa canção
tu sozinho não és nada
juntos temos o mundo na mão

Erguer a voz e cantar
é força de quem é novo
viver sempre a esperar
fraqueza de quem é povo
Viver em casa de tábuas
à espera dum novo dia
enquanto a terra engole
a tua antiga alegri


O teu corpo é um barco
que não tem leme nem velas
a tua vida é uma casa
sem portas e sem janelas
Não vás ao sabor do vento
aprende a canção da esperança
vem semear tempestades
se queres colher a bonança


DE QUE METAL MEU CORAÇÃO É FEITO


Encontrar-me contigo não me basta
mas sim que me conheças. Eis aqui
a minha casa. Entra.
Vê como se está nela
e, nela, como somos.

Aqui nenhum irmão se calunia
nem a mentira manda. O homem falso
não se sente aqui bem. Cada manhã
fazemos da Nação o julgamento.

Tu saberás depois, ao encontrar-me,
de que metal meu coração é feito.

Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

GIRASSÓIS


Adormecer sobre a profusão dos girassóis, pensando nos flancos menos expostos de outro corpo. Várias foram as negligências do olhar, bem pouco curioso para outra coisa que não fosse a nudez da terra, às vezes muito jovem, outras, fatigada. O desejo, só o desejo impede a perversão da alegria. E destas sílabas.

Eugénio de Andrade em Memória Doutro Rio

domingo, 22 de abril de 2018

POSTAIS SEM SELO


Acreditávamos – era isso. «Porque há-de haver um futuro melhor» (como escrevíamos em dedicatórias nos livros oferecidos), porque era preciso conquistá-lo… e era possível.


Legenda: fotografia de Eduardo Gageiro

VELHAS MÚSICAS


ENCONTREI GENTE QUE SÓ CONHECIA DOS ROMANCES DE GORKI


Na Faculdade, pois, a política ilegal e meio-legal: eleições para delegados ao Senado Universi­tário (pela última vez), assembleias para a criação de uma Associação de Estudantes, que não havia e continuou a não haver, protestos contra a expulsão do Prof. Rodrigues Lapa. Ali conheci, enfim, aque­la que seria a minha companheira para sempre, nos bons e nos maus momentos. E nos péssimos também. Como o da grave doença revelada dezoito dias depois do nosso casamento (sangue no chão de tanta felicidade) e que durou três longuíssimos anos. Ela mantinha a casa, ela me inventava a es­perança. Misteriosamente. Alegremente, se assim se pode dizer. Coração mais cabeça e muita dedica­ção, eis de onde vêm os milagres.
 Mas voltando ainda à Faculdade. Não sabia on­de começava e onde acabava o amor, a luta pela li­berdade e pela transformação do mundo, a criação poética. Engolia o Altolaguirre, o Emilio Prados, o Lorca muito menos (nunca soube explicar isto, te­nha embora um poema que parece inspiradíssimo num dele mas não é: desconhecia ainda o belíssimo «eran las cinco en punto de la tarde»), o Rafael Alberti, mais que todos talvez. Sonhava declamar, como ele, um grande poema na frente de combate. A minha convicção era que versos de tal modo declamados (mas tinham de ser bons, era o que já pensava) fariam recuar os tanques do inimigo, quebrar grades de cadeias, erguer bandeiras com multidões de esfarrapados atrás delas. Armazenar os explosivos. Pegar fogo ao rastilho. Vieram-me dizer: «Foste falado nos interrogatórios desta noite. Põe-te a andar».
 Desapareci de Lisboa até serem libertados os in­terrogados dessa noite, meti-me no Alentejo, en­contrei gente que só conhecia dos romances de Gorki. Tratavam-me como um irmão, davam-me a chave da própria casa, «para se precisares, de noite». E não eram operários nem rurais. Um tra­balhava numa farmácia, outro nos Caminhos de Ferro, outro num escritório. Chamava-se este Mar­quês. Por meu intermédio entrou na actividade clandestina e, quem o suporia então?, seria morto anos mais tarde nas torturas da PIDE.
 Quantas horas tinha cada dia? Quantos éramos ao todo? Impossível sabê-lo. Sabíamos, sim, que a situação portuguesa não se podia suportar (e trinta e muitos anos mais a suportámos), que ela se in­tegrava, numa situação internacional a nossos olhos de leitura fácil, que obrigava a tomar e a fa­zer tomar partido. E que a única esperança brilha­va, muito longe, nesta frase do autor de Tomás Gordeiev. «Nasce um novo sol no coração do Ho­mem». Frase que forçosamente se confundia, para muitos de nós, com um país imenso, onde houvera a maior Revolução do nosso tempo, raivosamente defendido de múltiplas e simultâneas tentativas de invasão, heroicamente resistindo à fome, à neve, à falta de quadros superiores: «Proletários de todos os países, uni-vos!» País sobre o qual muito líamos e falávamos, sobre o qual afinal pouco sabíamos e era, seria o centro de tudo durante muitos anos.
 Ou se mudava o Homem, ou não se mudava nada. Era o que pensava então, é o que penso ho­je. Os versos do meu livro Poemas (36 a 38) disto falavam, os de Terceira Idade (82), também. E o mais que escrevi. Escrever é outra coisa («uma coi­sa é ver, outra pintar», Picasso), mas relaciona-se com tudo.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Máximo Gorki