quarta-feira, 25 de abril de 2018

EI-LA A CIDADE


Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias durou a barbárie salazarenta/marcelista, o tempo do desprezo, como lhe chamou Mário Dionísio.

Éramos um país que vivia debaixo de um atraso sem medida, tempos terríveis que só quem neles viveu tem a justa medida – quem passa por elas é que sabe!

O avô senta o neto nos joelhos e conta: foi assim.

Acreditávamos.

Tão só.

Quem não viveu, esqueceu ou renunciou às delícias das ilusões desses grandes dias nunca vai conhecer o exacto perfume das flores.

A festa foi bonita, pá.

Manuel António Pina:

Durou, o sonho, só uma semana, mas esse é um património que ninguém nos tirará. Na tarde do 1º de maio, já nos confrontávamos uns com os outros.
De então para cá, tem sido o que se sabe. Carlyle escreveu que as revoluções são sonhadas por idealistas, realizadas por radicais, e que quem delas se aproveita são os oportunistas de todas as espécies.

Quarenta e quatro anos sobre a madrugada que esperávamos, lembrando Sophia, quando emergimos da noite e do silêncio.

Também escreveu José Saramago:

Nenhum dia é festivo por ter já nascido assim: seria igualzinho aos outros se não fossemos nós a «fazê-lo» diferente.

Ao longo destes anos, tenho vindo a ouvir os que, a partir de um certo tempo, sempre anunciarem que o 25 de Abril se tornaria num 5 de Outubro.

Nunca acreditei e ainda não vi a possibilidade de isso vir a acontecer.

Gente que pensa que a memória do 25 de Abril é algo difuso, que com o tempo se tornará insignificante, gente que advoga o silêncio como um argumento.

Serenamente vos digo:

Não há nenhum 25 de Abril em que não me venha à memória, o 1º poema de Canto e Lamentação na Cidade Ocupada, incluído em  A Invenção do Amor e Outros Poemas, de Daniel Filipe lido, relido vezes sem conta, nos tais tempos difíceis:

 Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma

em praças ruas becos boîtes e monumentos

Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote

Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria

e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone

Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida

esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor

Legenda: fotografia de Eduardo Gageiro

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