sábado, 30 de setembro de 2023

POSTAIS SEM SELO


«Li que querem transladar Eça de Queiroz para o Panteão Nacional e que parte da família é contra. Dado o estado das artes e não sendo nada comigo, só posso reproduzir a frase de um vizinho a propósito de um outro que tinha a estranha mania de se trancar em casa: “Deixem o homem sossegado!”»

Ana Cristina Leonardo de uma crónica no Público

CONVERSANDO


Ninguém me perguntou mas se o fizessem responderia que não concordo com a trasladação dos restos mortais de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional.

Eça, numa carta a Pinheiro Chagas, afirmou-se que era «apenas um pobre homem da Póvoa do Varzim.»

E um tal dito «pobre homem», gostará mais de continuar na tranquilidade de uma serra que ele proclamou tranquila.

Eça de Queiroz morreu em 16 de agosto de 1900 em Neuilly-sur-Seine. A 16 de Setembro chegaram a Lisboa os seus restos mortais que ficaram depositados em jazigo que pertencia à família Resendes. Aí ficaram até Setembro de 1989 quando foram transportados para um jazigo de família, em Tormes, Baião, no cemitério de Santa Cruz do Douro.

«Sacudi violentamente Jacinto:

— Acorda, homem, que estás na tua terra!

Ele desembrulhou os pés do meu paletó, cofiou o bigode, e veio sem pressa, á vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.

— Então é Portugal, hein?... Cheira bem.

— Está claro que cheira bem, animal!

A sineta tilintou languidamente. E o comboio deslisou, com descanso, como se passeasse para seu regalo sobre as duas fitas de aço, assobiando e gozando a beleza da terra e do céu.

O meu Príncipe alargava os braços, desolado:

— E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gota de água-de-colónia!... Entro em Portugal, imundo!

— Na Régua há uma demora, temos tempo de chamar o Grilo, reaver os nossos confortos... Olha para o rio!

Rolvamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco lento carregado de pipas. Para além, outros socalcos, d’um verde pálido de reseda, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundancia do azul. Jacinto acariciava os pêlos corredios do bigode:

— O Douro, hem?... É interessante, tem grandeza. Mas agora é que eu estou com uma fome, Zé Fernandes!»

A Cidade e as Serras, página 118, edição do Círculo de Leitores, Setembro 1984

E faltava um tempinho para…

«Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que Suas Incelências lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar... Jacinto ocupou a sede ancestral- e durante momentos ( de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou- e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: - Está bom!

Estava preciso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo

- Também lá volto! – exclamava Jacinto com uma convicção imensa. ~É que estou com uma fome… Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.

Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!... Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram procura os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
-Óptimo!... Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia!

E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio…

- Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!

O homem óptimo sorria, inteiramente desanuviado:

— Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até suas Incelências se riam... Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!»

A Cidade e as Serras, página 131, edição do Círculo de Leitores, Setembro 1984

Tormes.

Deixar Tormes para a frieza das paredes de um Panteão?

Ninguém me perguntou mas…

«Em fila começámos a subir para a serra. A tarde adoçava o seu esplendor de Estio. Uma aragem trazia, como ofertados, perfumes de flores silvestres. As ramagens moviam, com um aceno de doce acolhimento, as suas folhas vivas e reluzentes. Toda a passarinhada cantava, num alvoroço de alegria e de louvor. As águas correntes, saltantes, luzidias, despediam um brilho mais vivo. Numa pressa mais animada. Janelas distantes de casas amáveis flamejavam com um fulgor de ouro. A serra toda se ofertava, na sua beleza eterna e verdadeira.»

A Cidade e as Serras, página 230, edição do Círculo de Leitores, Setembro 1984.

Legenda: Casa de Tormes, fotografia da Fundação Eça de Queiroz.

A TRASLADAÇÃO DE EÇA PARA O PANTEÃO NACIONAL


Câmara Reys, num livrinho sobre Eça de Queiroz, escreve:

«Eu vi o enterro de Eça de Queirós, ao passar sob o Arco da Rua Augusta, e soube depois que Fialho saíra no Rossio, da porta da Mónaco, a comer um pãozinho de sanduiche, e rir, para ver desfilar o magro, modestíssimo cortejo, tendo forjado, com felinas delícias, o artigo publicado no Portugal-Brasil, o célebre artigo que começa por um verdadeiro uivo de chacal: “Último duma irmandade de tuberculosos, que se foi mais ou menos elegantemente para as borolências do túmulo…”».

Sobre a trasladação de Eça para o Panteão, sirvo-me de um artigo, assinado por Bárbara Reis, e publicado no Público de 25 de Setembro:

«Após um impasse de quatro dias, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu esta segunda-feira que não há razão para travar a trasladação dos restos mortais do escritor José Maria Eça de Queiroz para o Panteão Nacional, mas a decisão ainda não é definitiva e por isso será marcada nova data para a cerimónia.


No despacho, o juiz Adriano Cunha não dá razão aos seis bisnetos que apresentaram uma providência cautelar para travar a trasladação, dizendo que eles são a minoria e que a maioria dos bisnetos é favorável. O juiz disse também que não é possível apurar nada escrito de Eça de Queiroz sobre a sua vontade quanto ao lugar onde queria ficar sepultado.


Há 22 bisnetos de Eça de Queiroz vivos: seis estão contra, 13 estão a favor e três não tomaram posição. Os seis contra entregaram, na semana passada, uma providência cautelar para impedir a trasladação. No requerimento, pediram também o “decretamento provisório”, uma urgência dentro da urgência. A decisão desta segunda-feira não é a final, é apenas a resposta ao pedido de urgência, que tem um prazo de 48 horas.»

Legenda: Estátua de Eça de Queiroz, da autoria de Teixeira Lopes, no Largo Barão de Quintela, em Lisboa.

OLHAR AS CAPAS


As Questões Morais e Sociais na Literatura

II – Eça de Queirós

Câmara Reys

Seara Nova Editores, Lisboa 1940

No Porto ainda, Eça estuda no colégio da Lapa, do professor Ramalho, pai de Ramalho Ortigão, mais velho alguns anos que Eça de Queirós, e que leccionava na escola paterna. Começa de aí um conhecimento e uma amizade que durariam até à morte. Ramalho seria o colaborador do Mistério da Estrada de Sintra e das Farpas, o representante em Lisboa, do amigo exilado nos consulados de Cuba, New-Castle, Bristol e Paris, o padrinho de casamento, o último companheiro na viagem a Glion, na Suiça, menos dum mês antes da morte de Eça.

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

NOTÍCIAS DO CIRCO

 A minha arte tem força para estar diante da dos grandes artistas.

Joana Vasconcelos

Joana é como Cavaco, volta e meia, apresenta-se como a maior de Portugal... e arredores...

Haja paciência!...

VELHOS RECORTES


Recorte encontrado no Aden- Arabia de Paul Nizan.

O recorte é uma citação do Diário de Lisboa publicada pelo «Comércio do Funchal», «o jornal cor-de-rosa», dirigido por Vicente Jorge Silva.

A data do Comércio do Funchal é 14 de Janeiro de 1968.

OLHAR AS CAPAS


Aden-Arábia

Paul Nizan

Introdução de Jean-Paul Sartre

Tradução: José Borrego

Colecção Tempos Actuais nº 1

Editorial Estampa, Lisboa, Dezembro de 1967

Eu tinha vinte anos e não permitia a ninguém que dissesse ser essa a mais bela idade da vida.
Tudo ameaça com a ruína um jovem: o amor, as ideias, a perda da família, o ingresso entre os grandes. É muito duro obter a sua parte no mundo.

THE CATS WILL KNOW

Ainda cairá a chuva

sobre tuas doces lajes.

Uma chuva ligeira

Como um sopro ou um passo.

Ainda a brisa e a alba

florirão ligeiras

como sob o teu peso

quando regressares.

Entre flores e parapeitos

os gatos saberão.

 

Haverá outros dias.

Haverá outras vozes.

Sorrirás sozinha.

Os gatos saberão.

Escutarás palavras antigas,

palavras cansadas e vãs

como os vestidos espojados

das festas passadas.

 

Farás gestos tu também.

Responderás palavras –

rosto de Primavera

farás gestos tu também.

 

Os gatos saberão,

rosto de primavera

e a chuva ligeira,

a alba cor de jacinto,

que dilaceram o coração

de quem já não te espera,

são o triste sorriso

que sorris sozinha.

Haverá outros dias,

outras vozes e despertares.

Sofreremos na alba

rosto de Primavera.

Cesare Pavese em Virá a Morte e Terá os Teus Olhos

 

 

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

POSTAIS SEM SELO


A tristeza é um vício.

Julian Barnes O Papagaio de Flaubert

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da imagem.

OLHAR AS CAPAS


Eça de Queiroz no Centenário do Seu Nascimento

Diversos autores

S.N.I. – Secretariado Nacional da Informação, Lisboa, Outubro de 1950

Em 1945 o S.N.I. resolveu celebrar o primeiro centenário do nascimento de Eça de Queiroz e, entre outras iniciativas, publicar, em livro, ensaios e conferências de nacionais e estrangeiros que, a convite do S.N.I., tinham, então, deste modo, contribuído para o conhecimento e interpretação da figura do escritor. Eis a origem e razão do presente volume que circunstâncias várias só agora permitiram  que saísse dos prelos.

O NÚMERO QUATRO

O número quatro feito coisa
ou a coisa pelo quatro quadrada,
seja espaço, quadrúpede, mesa,
está racional em suas patas;
está plantada, à margem e acima
de tudo o que tentar abalá-la,
imóvel ao vento, terremotos,
no mar maré ou no mar ressaca.
Só o tempo que ama o ímpar instável
pode contra essa coisa ao passá-la:
mas a roda, criatura do tempo,
é uma coisa em quatro, desgastada.


João Cabral de Melo Neto 


quarta-feira, 27 de setembro de 2023

BLOGUEANDO POR AÍ

«Cristiano Ronaldo. O que esperavam? Nascido no meio da miséria, viu-se ainda puto com milhões nas mãos. Endeusado da ralé às elites, foi feito herói nacional por ser um atleta de excepção. No mundo em que vivemos, nenhum cientista de excepção alcançaria tamanho estatuto. Quem carrega aos ombros esta gente é o povo, os governos vão atrás para ficarem bem na selfie com as massas. Ronaldo não tem culpa nenhuma de ser bimbo, é novo-rico natural da parvenulândia. Na minha terra chamam-se saloios endinheirados, adoram exibir casas com piscina, circular em carros topo de gama, fazer férias em resorts, tirar fotografias ao marisco em que se lambuzam nos restaurantes. Muito pior do que ele são todos quantos o endeusam, exigindo de um jogador da bola o que não exigem a si mesmos: dignidade, verticalidade, a nobreza de carácter que nos livra de sermos hipócritas.»

De Antologia do Esquecimento

OLHAR AS CAPAS


A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson Através da Suécia

Selma Lagerlof

Tradução: Maria de Castro Henriques Osswald

Editora Educação Nacional – António Figueirinhas, Porto 1936

Era uma vez um rapaz de cerca de catorze anos, alto, desengonçado, de cabelos fulvos como estrigas. Não se pode dizer que fosse grande coisa. As suas ocupações favoritas eram comer e beber; e também gostava de pregar a sua partida.

Um domingo, de manhã, os pais preparavam-se para ir à missa; em mangas de camisa, a cavalo numa das esquinas da mesa, estava todo satisfeito por os ver sair e pensava na delícia de ser senhor de si durante algumas horas: «Agora é que fico à vontade para ir buscar a espingarda do meu pai», pensava com os seus botões, «e disparar dois ou três tiros sem que ninguém dê por isso.»

Parece que o pai lhe adivinhou os projectos, porque à saída parou na soleira da porta e disse:

— Já que não queres vir connosco à igreja, podes ao menos entreter-te a ler em casa o texto da Escritura. Prometes fazer isso?

 — Sim, se é essa a sua vontade... Pensava, porém, ler só o que muito bem lhe agradasse.

A mãe nunca fora tão pronta; num abrir e fechar de olhos, dirigiu-se à pequena prateleira pregada na parede, procurou a bíblia, pô-la sobre a mesa que estava em frente da janela, e abriu-a no sítio do evangelho do dia. Depois aproximou da mesa a grande cadeira de braços, comprada no ano anterior no leilão da casa presbitério de Vemmenhög e onde, habitualmente só o pai tinha o direito de sentar-se.

O rapaz entretinha-se a pensar que não valia a pena a mãe ter tanta canseira com tantos preparativos, porque decerto só leria uma ou duas páginas. Mas o pai, que parecia adivinhar- -lhe as intenções, disse-lhe com severidade:

— Vê lá se lês com toda a atenção; olha que, quando voltarmos, hás-de explicar-me, página por página, o que leste, pobre de ti se não me responderes!

E a mãe acrescentou:

 — A prática consta de catorze páginas e meia. Se queres acabar a tempo, seria conveniente começares já.

CASA DA ACHADA


Eduarda Dionísio deixou-nos em Maio deste ano.

«É impossível dizer em poucas palavras o que foi e o que fez esta mulher extraordinária. A Eduarda gostava que as coisas fossem úteis, protestava contra o desperdício de materiais, de esforços e ideias. Todo o seu trabalho associativo tem a ver com quebra de barreiras: entre leigos e os especialistas, entre amadores e profissionais e entre classes sociais diferentes. Derrubar as barreiras, também, entre o pensar e o fazer, propondo sempre que juntássemos acção e pensamento, mãos e cabeça. “Viva a liberdade, dentro e fora da cabeça”, dizia uma camisola feita na Abril em Maio, associação onde circulavam ideias, objectos, textos, filmes, artes e artesanatos contra as lógicas culturais mercantis. Fazedora incansável em mil disciplinas diferentes (escrever, ensinar, pintar, fazer artes gráficas, editar, intervir, investigar…), a Eduarda valorizava os saberes-fazer, as técnicas, as sabedorias que extravasam os currículos académicos, as formas diferentes de nos relacionarmos como seres humanos, de viver e pensar o mundo (livremente!) e as possibilidades de o transformar. Outra barreira ainda a superar: ser capaz de alargar as fronteiras do possível, contra o “sempre foi assim”, coisa que ela combateu com todas as suas forças. Porque pensava que tudo podia ser de outra forma. Por isso fez amizades pelo mundo inteiro com gente que partilhava, de uma forma ou de outra, esta atitude crítica, solidária, transformadora.»

Do site da Casa da Achada

A Casa da Achada comemora o seu 14º aniversário.

UM SOSSEGO MAIS LARGO

Um sossego mais largo
Que o esquecimento dos homens
Me seja a morte
Como um veleiro abandonado
No silêncio do mar;
Como, antes do Tempo,
Como, depois do Tempo,
O não haver ninguém para o contar

Como não ter existido
Me seja a morte!
Mas não já…

Reinaldo Ferreira em Poemas

terça-feira, 26 de setembro de 2023

POSTAIS SEM SELO


Um homem é mais homem pelas coisas que cala do que pelas coisas que diz.

Albert Camus em O Mito de Sísifo

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da imagem.

OLHAR AS CAPAS


Antero de Quental

Victor de Sá

Capa: A. Campos Matos

Edição do Autor, Braga, 1963

Antero de Quental. A austeridade, a força moral que irradia do seu viver. A auréola de santo com que Eça o consagrou. O rebelde. O apostrofador dos poderosos da terra. O pregador da «revolução». O derrubador de ídolos. O apóstolo de uma sociedade. O republicano. O socialista. O militante. O doutrinador. O filósofo. O místico. O dramatismo de uma existência. A transcendência metafísica dos seus sonetos. O desespero de um suicídio… 

OLHARES




Em Constança, na Segunda-Feira de Pascoela, realiza-se uma procisão fluvial.

Colaboração de Aida Santos

BICICLETAS

Por muito tempo amarei casas que existam apenas
para guardar uma bicicleta ou os remos de um bote
As casas interessantes não têm pretensão nenhuma
Estão perto de nós na hora necessária
mas a qualquer momento
com mais clareza
afastam-se das certezas que perdemos
e da imensidão que se avista de lá

Um velho provérbio diz:
Se deres um passo atrás, talvez te coloques a tempo
de uma estação clemente

José Tolentino Mendonça

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

POSTAIS SEM SELO


O inútil é o útil que pacientemente espera.

Luís Veiga Leitão

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da imagem.

OLHAR AS CAPAS


Onde a Noite se Acaba

José Rodrigues Miguéis

Capa: Luís Filipe Abreu

Colecção Latitude nº 39

Editorial Estúdios Cor, Lisboa, Junho de 1960

A regressar das visitas, nessa tarde, a boa Bridget foi encontrar o professor Ch. Brown já em estado de rigidez cadavérica. As janelas estavam abertas, a casa arrefecera, o gato fugira, a caixa tibetana estava hermeticamente fechada, o vento levara talvez o papelinho cor-de-rosa. E a polícia de Scotland Yard nunca pôde solver o mistério daquele minúsculo anel de cabelo loiro, encontrado entre os dedos crispados do professor Ch. Brown, Ph. D,. B.A.

RETRATOS SOLTOS


Não conheci pessoalmente Luís Veiga Leitão, mas Marta Cristina Araújo, que com ele privou, falou-me da sua extrema sensibilidade, da sua cultura, da sua luta política contra o fascismos, dos maravilhosos desenhos, com que ilustrou alguns dos seus livros.

Daniel Filipe tem um bonito texto sobre os cafés do Porto e segundo o jornalista Germano Silva, o café que Daniel Filipe invoca nessa crónica, é o Café Rialto, que já não existe. Ficava na Praça D. João I  e uma das tertúlias reunia o Daniel Filipe, o Egito Gonçalves, o Papiniano Carlos, o Luís Veiga Leitão, o António Rebordão Navarro, às vezes o José Augusto Seabra. Mantinham na altura uma colecção de poesia: Notícias do Bloqueio.

Na Biblioteca da Casa havia pouquíssimos livros de poesia: Bocage, Luís de Camões, José Régio, Cardoso Marta, pouco mais.

Os poetas que nos impingiam nas Selectas Literárias, por onde estudei, eram uma treta. Falei ao meu pai sobre a necessidade de alargar horizontes que falassem de futuro, amanhãs, revolta, liberdade, esperança, luta, paz.

Pôs-se em campo e sugeriram-lhe os diversos poetas da Colecção Poetas de Hoje editada pela Portugália.

Foi aí que, entre outros, conheci Luís Veiga Leitão, o nº 16 da Colecção, Ciclo de Pedras, com prefácio de Fernando Guimarães.

O poema que hoje se publica pertence a Noite de Pedra.

Em 30 de Março de 1952 Luís Veiga Leitão foi preso pela PIDE e ficou em Caxias cerca de um ano. Na cela 13 do Aljube, incomunicável, iniciou a redacção mental dos poemas que memorizava, dizendo-os repetidas vezes em voz alta e foi-os guardando na memória, os guardas a ouvi-lo chegaram a pensar que estava louco. Veiga Leitão considerou esses poemas, ao todo 20 poemas, um diário de prisão, e um itinerário das cadeias por onde passou: Pide do Porto, Aljube e Caxias. Viria a publicá-los em 1955 num livro com o título Noite de Pedra - imagens da noite fascista e que foi apreendido e proibido pela censura.

Este livro contém outros dois lindíssimos poemas: A Uma Bicicleta Desenhada na Cela e Manhã.

A UMA BICICLETA DESENHADA NA CELA


Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste.

Aqui,
onde o dia é mal nascido,
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido...

Bem haja a mão que te criou!

Olhos montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.

MANHÃ

-Bom dia. Diz-me um guarda.
Eu não ouço...apenas olho
das chaves o grande molho
parindo um riso na farda.

Vómito insuportável de ironia
Bom dia, porquê bom dia?

Olhe, senhor guarda
(no fundo a minha boca rugia)
aqui é noite, ninguém mora,
deite esse bom dia lá fora
porque lá fora é que é dia!

Eduardo Guerra Carneiro em Homenagens, do seu livro Contra a Corrente, inclui  um poema dedicado Luís Veiga Leitão.

Luís Veiga Leitão é o pseudónimo de Luís Maria Leitão que nasceu em Moimenta da Beira a 27 de Maio de 1912 e morreu em Niteroi a 9 de Outubro de 1987, onde se encontrava de visita a convite do presidente José Sarney. Tinha 75 anos.

Foi escriturário da 7.ª Brigada Cadastral da Federação dos Vinicultores da Região do Douro, mas foi demitido por ser contra o regime salazarista. Foi delegado de informação médica de vários laboratórios farmacêuticos.

Para além de poesia, escreveu crónicas de viagens e de costumes. Foi também artista plástico, dedicando-se ao desenho.

Talvez seja possível encontar os seus livros em feiras de oacasião ou alfarrabistas mas, em Setembro de 2005, a Editora Asa publicou a Poesia Completa de Luís Veiga Leitão.

Um poeta a (re)descobrir.

Legenda: Auto-Retrato de Luís Veiga Leitão.

CARTA

Lanço as palavras ao papel
como pescador calmo
lança os barcos ao rio.
Só no fundo, no fundo inviolado,
contraio e espalmo
as minhas mãos, mãos de afogado
morrendo à sede.

- Meu amor estou bem –

Quanto te escrevo,
ponho os olhos no teu retrato
pendurado nos ferros da minha cama

para que as palavras tenham o sabor exacto
de quem me ouve,
de quem me fala,
de quem me chama.

«Meu amor estou bem» –

Ontem vi a Primavera
numa flor cortada dos jardins.
Hoje, tenho nos ombros uma pedra
e um punhal nos rins.

«Meu amor estou bem»–

Se a morte vier, querida amiga,
à minha beira, sem ninguém,
hei-de pedir-lhe que te diga:

«Meu amor estou bem»

Luís Veiga Leitão de Noite de Pedra em Ciclo de Pedras

domingo, 24 de setembro de 2023

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 O falar-se, hoje, de Maria João Pires, permite-nos entrar pelo  2º volume de O Caderno e relembrar o que José Saramago escreveu, página 242, em Novembro de 2009, sobre Maria João Pires:

«Maria João Pires não teve muita sorte com o país em que nasceu. Sessenta anos de carreira (e que extraordinária carreira a sua) justificariam uma homenagem de âmbito nacional capaz de expressar a nossa gratidão por pisarmos o mesmo chão e respirarmos o mesmo ar. Não será assim, pelos vistos, ainda que não lhe venham a faltar na terra portuguesa outras manifestações de admiração e respeito. Foi em casa de uns amigos que a ouvi pela primeira vez, quando ela não passava de uma adolescente que, com o seu frágil corpo, mal parecia haver saído da infância, e que me fez temer se os braços e as mãos lhe chegariam para enfrentar-se ao gigantesco teclado. O piano familiar, vertical, talvez não estivesse em perfeito estado de afinação, mas as primeiras notas saltaram límpidas, cristalinas, dando-me a sensação, não de serem a mera consequência do choque dos martelos com as cordas, mas de haverem brotado directamente dos dedos da própria pianista. Foi o meu baptismo na arte de Maria João Pires. Depois, ao longo dos anos, sempre que ela, já viajante emérita, aparecia por Lisboa a dar os seus recitais, eu lá estava, rogando às potestades celestes que a protegessem do mau-olhado, de um simples sopro de ar que a perturbasse. Talvez por efeito das minhas petições e do crédito que tenho no céu, todos os concertos e recitais de Maria João Pires a que assisti chegaram felizmente ao seu termo. Desta vez, por razões de distância e também de saúde, não poderei estar presente, dar palmas e beijar as suas mãos tão cheias de música, de humanidade, de beleza. Por tudo o que me fez ouvir e sentir, Maria João, obrigado.» 

MÚSICA PELA MANHÃ


A pianista Maria João Pires cancelou a sua digressão sul-americana por motivos de saúde e uma recomendação médica de não fazer longas viagens, adiantou o Teatro Colón de Buenos Aires, onde a artista portuguesa tinha previsto realizar dois concertos no início de Outubro.


NOTÍCIAS DO CIRCO

 

Um sexto dos bebés nascidos em 2022 são filhos de mães estrangeiras. O impacto crescente do peso das mulheres estrangeiras que têm filhos em Portugal tem ajudado a contrabalançar a quebra da natalidade das portuguesas.

Um estudo encomendado pelo Conselho Económico e Social, sobre o perfil dos utilizadores de "raspadinhas" e níveis de doenças associadas a este tipo de jogo, revela que, em Portugal, “os problemas de jogo com 'raspadinhas' podem afectar 1,21% da população adulta”. Ou seja, as "raspadinhas" implicam problemas de jogo para cerca de 100 mil cidadãos, e 30 mil dessas pessoas “quase de certeza têm doença instalada, ou seja, perturbação de jogo patológico.

Com a fome no mundo a chegar a 735 milhões de pessoas, a insegurança alimentar a espalhar-se por todo o planeta e o propalado objetivo de eliminar esse problema até 2030 a transformar-se numa trágica anedota...

Portugal é o terceiro país europeu que perdeu mais ferrovia: 460 quilómetros e um estudo mostra que Portugal investiu mais do triplo na construção de estradas, entre 1995 e 2018, do que na ferrovia. Mais de 100 mil pessoas perderam acesso a comboios.
Novos casos de Covid-19 têm vindo a subir mas as autoridades dizem não existir motivo para alarme.

Portugal está com uma média diária de dez óbitos por covid-19 e entre 200 a 300 novos casos, números que representam "uma grande subestimação", porque a maioria dos infetados já não reporta a situação.

Legenda: imagem Shorpy

sábado, 23 de setembro de 2023

MÚSICA PELA MANHÃ


 O Pina falou de When I'm Sixty-Four.

Será que era a canção dos Beatles que o Eduardo Guerra Carneiro ouvia naquela noite na Rua Josefa de Óbidos?

Seja o que for, é agradável entrar pela manhã a trauteá-la.

OS ITINERÁRIOS DO EDUARDO


O caderninho de capa vermelha, Isto Anda Tudo Ligado continua a alimentar  estes Percursos.

«Antes de tudo, no meio de tudo, para além de tudo, o som de um long-play dos Beatles ouvido religiosa e solitariamente na rua Dona Luísa de Gusmão, à noite.»

Por este texto ficam perguntas: dos seus itinerários em que vila ou cidade fica a Rua Dona Luísa de Gusmão, que disco dos Beatles ouvia o Eduardo?

Quanto ao disco arrisca-se  o Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band, um dos grandes discos  dos rapazes de Liverpool.

Quando eu tiver sessenta e quatro anos e de repente uma sombra pairando sobre nós.

E por esse disco um pedacinho de uma crónica do Manuel António Pina que falhou o dia em que Paul McCartey fez 64 anos, um domingo, andou pelos armários e não encontrou o vinilzinho, «talvez se tenha desvanecido para sempre num fundo e longínquo lugar, de mim ou da casa, onde não me é dado alcançar.»:

«No entanto, na minha cabeça (e, principalmente, no meu coração) ouço ainda, talvez mais nitidamente que nunca, agora que eu próprio sou (quase…) «sixty four» e que também eu fui «envelhecendo» e «perdendo cabelo»): Will you still need me, /Will you setill feed me, /When I’m Sixty-four?» Como o Sergeant Peppers todos de algum modo somos «corações solitários» e todos temos algures, dentro de nós, uma banda melancólica tocando velhas canções. Cantarolamos de novo «When I’m ixty-four» e «suddendly/there’s a shadow hanging over us», e descobrimos que o que estamos a cantar é de facto «Yesterday».

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

OS GATOS DO MANUEL ANTÓNIO PINA


Nos terríveis dias de calor infernal deste Verão, Ana Cristina Leonardo chegou, numa crónica no Público, a desabafar: «Em suma, como dizia, e sem querer enganar ninguém, escrever está a ser muito difícil.»

Também senti as terríveis dificuldades e reparo, agora, que nem sequer referi  a homenagem que a Feira do Livro do Porto dedicou ao Manuel António Pina, uma homenagem justa e como por lá foi dito, a lembrança dos muitos Pinas que há em Pina.

Nos 10 anos após a sua morte Manuel António Pina juntou-se a um leque de autores já anteriormente homenageados como, entre outros, Ana Luísa Amaral, Vasco Graça Moura, Agustina Bessa-Luís, Mário Cláudio, Sophia de Mello Breyner Andresen,  José Mário Branco, com a atribuição de uma tília nos Jardins do Palácio de Cristal.

Manuel António Pina viveu sempre entre livros, papéis e gatos.

Leio agora que Ana Pina, uma das suas filhas vendeu o certificado do Prémio Camões conquistado pelo pai para ajudar a pagar as despesas dos gatos, empréstimos e a renda de casa.

A família de Manuel António Pina pretendia dar os gatos para adoção, mas Ana Pina, que é também escritora e activista dos direitos dos animais não aceitou esta decisão e já lançou um apelo e uma angariação de fundos.

«Já tive de vender a minha casa e o meu carro e o próprio certificado do prémio do meu pai para garantir o bem-estar dos animais», afirma Ana Pina, acrescentando que sabe que tomou a decisão certa, uma vez que o pai também era um amante de gatos.

Uma história triste a que me faltam outros pormenores, principalmente da restante família de António Manuel Pina, e nestes tempos conturbados de «fakes news», todos os cuidados são necessários.

Mas não resisto em copiar a crónica «Onde se Fala de Gatos e de Homens», publicada no Jornal de Notícias de 9 de Novembro de 2005, que reproduzo da página 253 de Crónica Saudade da Literatura:

«Os meus gatos dormem durante a maior parte do dia (e, obviamente, durante a noite toda). Suspeito que os gatos têm um segredo, que conhecem uma porta para um mundo coincidente e feliz, por onde só se passa sonhando. Um mundo criado como Deus terá criado o nosso humano mundo, à sua desmesurada imagem. Porque os que sonham são deuses criadores. Os gatos sonham dormindo, os homens sonham fazendo perguntas e procurando respostas.

Mas os meus gatos dormem e sonham porque não têm fome. Teriam, se precisassem de procurar comida, tempo para sonhar? Acontece talvez assim com os homens. Como se o espírito criador fosse, afinal, prisioneiro do estômago. Talvez, então, a mesquinhez de propósitos da nossa vida colectiva radique, como nos querem fazer crer, no défice, e talvez o cumprimento das normas do pacto de estabilidade seja o único sonho que nos é hoje permitido.

E, contudo, dir-se-ia (e isto é algo que escapa aos economistas) que é o sonho, mais do que a balança de pagamentos, que alimenta a vida, e que os povos, como os homens, precisam de mais do que de números. Os próprios números têm (os economistas não o sabem porque a sua ciência dos números é uma ciência de escravos) o poder desrazoável de, não apenas repetir, mas sonhar o mundo.

Há anos que somos governados por economistas e o resultado está à vista. Talvez seja chegada a altura de ser a política (e o sonho) a dirigir a economia e não a economia a dirigir a política. Jesus Cristo «não sabia nada de finanças, / nem consta que tivesse biblioteca», e o seu sonho, no entanto, continua a mover o mundo.»

CONTRIBUTO PARA AS ESTATÍSTICAS

Em cem pessoas,


sabedoras de tudo melhor —

cinquenta e duas;

 

inseguras de cada passo —

quase todo o resto;

 

prontas para ajudar,

desde que não demore muito —

quarenta e nove;

 

sempre boas,

porque não conseguem de outra forma —

quatro, talvez cinco;

 

dispostas a admirar sem inveja —

dezoito;

 

constantemente receosas

de algo ou alguém —

setenta e sete;

 

aptas para a felicidade —

vinte e tal, quando muito;

 

individualmente inofensivas,

em grupo ameaçadoras —

mais de metade, com certeza;

 

cruéis,

por força das circunstâncias —

é melhor não sabê-lo,

nem aproximadamente;

 

com trancas na porta depois da casa roubada —

quase tantas como

aquelas que as têm, antes da casa roubada;

 

não levando nada da vida a não ser coisas —

quarenta,

embora preferisse estar enganada;

 

agachadas, doloridas

e sem lanterna no escuro —

oitenta e três,

mais tarde ou mais cedo;

 

dignas de compaixão —

noventa e nove;

 

mortais —

cem em cem.

Número, até agora, não sujeito a alterações.

Wislawa Szymborska em Instante