sábado, 9 de setembro de 2023

CONVERSANDO


Volta e meia, para ocupar pequenos pedaços de tempo, pego num livro e começo a reler.

Peguei em Um Anjo no Trapézio, do Manuel da Fonseca, e na página 45, reencontro este parágrafo, por sinal, devidamente sublinhado, bem esgalhado que está:

 «Vindo do lado da Cordoaria, a rua é estreita como um beco. Alarga à medida que desce. Mas continua sempre estreita, angustiada, exígua. Fora e dentro das casas, nos quartos divididos por tabiques, nos corredores. Até nas janelinhas de sacada, bonitas à sua maneira, mas onde mal se cabe.
É preciso falar, sair das casas, senão sufoca-se. É preciso viver à vista da rua. Contar tudo, em grupos, pelas tabernas ou de longe, de porta para porta, de janela para janela. Desabafar, senão cometem-se crimes. Gritar o que se fez ou anda a pensar fazer. O que se viu ou ouviu. Tudo. Principalmente acontecimentos da vida íntima. Nossa ou alheia.
Velhos como a rua, de pé, no minúsculo degrau que faz de passeio, os barbeiros analisam os factos, criticam. Os diálogos refilam de uma vivacidade crua e mordaz. A ninguém, homem, mulher ou criança, nenhuma palavra é vedada. Obscena, cruel, satírica, odiosa, desde que sirva usa-se de voz corrente e simples.»

Não foi um livro feliz do Manuel da Fonseca, apesar de em certas páginas encontrarmos o seu selo:

Relembremos o que aqui já foi escrito sobre o livro:

«Numa entrevista a Maria Teresa Horta publicada em A Capital de 20 de Junho de 1968 disse Manuel da Fonseca:

«Pouco depois de “Cerromaior”, escrevi um romance. Duzentas e tal páginas. Um sujeito que o leu, gostou. Eu não. Nem o publiquei. Agora, que já tinha “esquecido” o tal romance inédito, mas não as pessoas, nem os acontecimentos, dei-me à escrita, e as duzentas e tantas páginas ficaram reduzidas a quarente e nove. O título do conto é o mesmo do romance “Um Anjo no Trapézio”.»

O livro foi muito mal recebido pela crítica.

Alice Vassalo Pereira escreveu no “Jornal do Fundão” de 28 de Julho de 1968:

«Manuel da Fonseca publica pouco. Sabemos isso. Temos dele meia dúzia de livros, e um longo silêncio de cerca de dez anos entre a publicação do último – “Seara de Vento” – e a de “Um Anjo no Trapézio” que surge agora nas nossas mãos. Um longo silêncio apenas povoado, de vez em quando de reedições e trabalhos dispersos por jornais. “Um Anjo no Trapézio” é a palavra de quebrar o silêncio.

Mas (infelizmente) para certos casos o silêncio continua a ser de oiro. E por vezes (agora) a palavra nem de pedra é…»

José Gomes Ferreira, nos seus “Dias Comuns”, 5º volume, no dia 14 de Junho de 1968 escreve esta entrada:

«O Manuel da Fonseca publicou um livro novo: “O Anjo no Trapézio.

Ainda não o li, mas gelou toda a gente.

O João José Cochofel:

- É muito mau… Com as palavras derretidas.

O Augusto Abelaira, a medo, com a delicadeza natural de não dizer mal dos ausentes:

- “O Fogo e as Cinzas” é um livro formidável.

O Carlos de Oliveira sacode a cabeça apavorado com esta verificação:

É terrível! Pode perder-se o talento!

Desgosto de família.

Damos os pêsames uns aos outros. Sinceros.»

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