segunda-feira, 31 de outubro de 2022

SARAMAGUEANDO

Amanhã começa Novembro.

Há 100 anos, a 16 de Novembro - e não no dia 18, como consta na Conservatória do Registo Civil – às 14.00 horas, nasce José Saramago.

«Nasci numa família de camponeses sem terra, em Azinhaga, uma pequena povoação situada na província do Ribatejo, na margem direita do Rio Almonda, a uns cem quilómetros a nordeste de Lisboa.. Meus pais chamavam-se José de Sousa e Maria da Piedade. José de Sousa teria sido também o meu nome se o funcionário, não lhe tivesse acrescentado a alcunha por que a família de meu pai era conhecida na aldeia: Saramago.»

A partir de amanhã, e durante todo o mês de Novembro, o dia por aqui começará com um poema de José Saramago e fechará com um Postal Sem Selo que incluirá uma frase do autor e pelo meio existirão Sublinhados.

 

SARAMAGO

 

Nome científico: Raphanus raphanistrum

Sinonímias: Raphanus microcarpus, Raphanus raphanistrum subsp. Microcarpus

Nomes comuns: Saramago, Labresto-branco, Cabresto, Ineixa, Rábão, Rábão-bravo, Rábão-silvestre

Família: Brassicaceae (Cruciferae)

O saramago é uma planta herbácea anual com a raiz muito dividida e grossa. O seu caule é ereto com ramos ascendentes, possuindo, na base, pelos compridos, rígidos e afastados e apresentando-se depois sem pelos até ao ápice. As suas folhas são alternadas, pecioladas, com margens irregularmente serreadas a onduladas e de textura áspera, encontrando-se suspensas num caule delicado. As suas inflorescências são cachos que podem apresentar entre 10 a 25 flores, compostas por 4 pétalas dispostas em cruz, branco-amareladas com estrias arroxeadas ou azuladas. A sua floração ocorre, normalmente, de abril a novembro. O seu fruto é alongado, ascendente, reto ou curvo, apresentando uma coloração verde quando jovem e acastanhada quando maduro.

Esta planta é espontânea e muito frequente em Portugal, é resistente e pode ser encontrada em campos cultivados, terrenos incultos, pousios e searas. É considerada a “erva dos campos e pastagens” e uma “erva-daninha” em várias culturas.

 (Infopédia)

«O saramago é uma planta. Nos tempos da minha infância e antes, as pessoas da minha aldeia, em épocas de crises, comiam saramagos.»

José Saramago

Legenda: Saramago. Fotografia de Francisco Clamote no blogue Plantas:Beleza e Diversidade.

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 Os leitores vistos pelo escritor Saramago:

 «Pergunto-me se o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que é o autor. O romance é uma mascara que oculta e ao mesmo tempo revela os traços do romancista. Se a pessoa que o romancista é não interessa, o romance não pode interessar. O leitor não lê o romance, lê o romancista.»

 Cadernos de Lanzarote,  Volume II, página 60.

 «Quem lê, lê para quê? Para encontrar, ou para encontrar-se.? Quando o leitor assoma à entrada de um livro, é para conhecê-lo ou para se se reconhecer a si mesmo nele?»

 Último Caderno de Lanzarote, página 250

 «Uma leitora alemã, Maria Schwenn, de Offenbach, escreveu-me para dizer que ao ler em o Evangelho segundo Jesus Cristo a frase: «Homens, perdoai-lhes porque ele não sabe o que fez», sentiu desejo de imitar o Raimundo Silva da História do Cerco de Lisboa, mudando de lugar o não, para ficar assim: «Homens, não lhe perdoeis, porque ele sabe o que fez.» Como se verifica. Maria Schwenn foi muito mais longe do que eu, pondo na boca de Jesus as palavras que são provavelmente a conclusão lógica do romance e a que o autor não se atreveu, ou, melhor dizendo, nem tal lhe passou pela cabeça. Não há dúvida de que certos leitores, de tão bons que são, dariam escritores ótimos, capazes realmente de descer ao fundo das coisas. A partir de agora, remate cada leitor o livro como melhor lhe parecer».

Último Caderno de Lanzarote, página 83

 «O que o autor vai narrando nos seus livros, é, tão-somente, a sua história pessoal. Não o relato da sua vida, não a sua biografia linearmente contada, quantas vezes anódina, quantas vezes desinteressantes, mas uma ou outra, a vida labiríntica, a vida profunda, aquela que dificilmente ele ousaria ou saberia contar com o seu próprio nome.»

Último Caderno de Lanzarote, página 253

DEUS NOS LÍRIOS

                                                          para a minha mãe

sinto deus, todas as noites, nos lírios

de Monet. olham para mim,
por esta sombra incerta que morre
aos poucos comigo, cobrem
de seiva viva a escuridão da casa
e afastam os demónios
que se escondem nas frestas do sono.

pela manhã, junto as pétalas tenras
caídas no lençol, e rezo baixinho,
com os pardais, um verso branco.

Renata Correia Botelho

domingo, 30 de outubro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 José Saramago não gostava do Natal. Tão pouco de festas de aniversário.

Talvez reflexo de uma infância e de uma adolescência muito difíceis, o Natal, para Saramago, não foi um toque de mágica. 

Deixou, em A Bagagem do Viajante algo a que chamou Natalmente Crónica; «para incréus empedernidos como eu, o caso não tem assim tanta importância: é mais uma das trezentas mil datas assinaladas de que se servem inteligentemente as religiões para aferventar crenças que no passar do tempo se tornariam letra morta e água chilra.» 


Disse uma  em Madrid que «O Natal é uma Borbulha Consumista que nos Separa do Apocalipse, e de uma maneira seca, quase definitiva, finalizou um poema: É dia de Natal. Nada acontece».

 A um jornalista do Público, que lhe perguntou como gostaria de ser recordado, Saramago respondeu:

«Gostaria de ser recordado como o escritor que criou a personagem do cão das lágrimas, no “Ensaio sobre a cegueira”. É um dos momentos mais belos que fiz até hoje como escritor. Se no futuro puder ser recordado como “aquele tipo que fez aquela coisa do cão que bebeu as lágrimas da mulher” ficarei contente.»

No dia 25 de Dezembro, em Lanzarote, sobre os seus cães

«Há cerca de um mês apareceu-nos aqui outro cão, uma cadela terrier de Yorkshire, de raça pura. Não sabemos donde veio, até agora não apareceram a reclamá-la, apesar de termos informado imediatamente a polícia e a associação protectora de animais. Pepe começou por recebê-la com desconfiança, perplexo diante do tamanho diminuto da intrusa, depois confundido com as liberdades e descaros que ele desde logo passou a permitir-se, como se a casa fosse sua. Agora começa a olhá-la com um ar que eu classificaria de resignada benevolência, suponho que disposto a esperar que ele venha a tornar-se naquilo que já é: um cão sério, maduro, ciente do seu papel de guarda e protector da família. Ora, disse Marga, a veterinária, que a cadelinha ainda não fez um ano, portanto Pepe terá de esperar… Ou não. Algo me diz que a cadela não ficará connosco. Mais dia menos dia aparecem-nos aí os donos: um bichinho destes vale cento e cinquenta contos, não é nenhum desperdício. Esse não foi o caso de Pepe, evidente produto de uma irregularidade de acasalamento, Pepe, quando nos apareceu, era um cão infeliz, abandonado. Esta fulana não, impertinente, irresponsável, ou se perdeu, ou fugiu. E tanto se lhe dá que os donos chorem o dinheiro perdido e o amor transviado, o que ela quer é que lhe cocem a barriga.»

Cadernos de Lanzarote, Volume II, página 264.

DITOS & REDITOS


A vida pode ser um lugar bem estranho.

Não devemos recusar o que nos é oferecido.

A pior miséria é sempre a de espirito.

Está tudo bem assim e não podia ser de outra forma.

Conhecer as coisas da vida.

Confundir a beira da estrada com a Estrada da Beira.

Quando as coisas começam a descarrilar, vai tudo a eito.

Para sobreviver, há que aprender.

sábado, 29 de outubro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 Ia arrumar o livro na estante mas ocorreu-me que ainda há, pelo menos, uma crónica que merece a sua transcrição. Mas, claro que o importante é ler o livro. Durante a sua leitura pode verificar-se como, aqui e ali, já se encontram sinais do que viria a ser a extraordinária escrita de José Saramago. Algo que lhe deu um Nobel e faz dele um dos mais importantes escritores de língua portuguesa. Uma subida a pulso, sobre pedras e pedrinhas, e um jornal que em 1992, e ainda faltavam seis anos para o Nobel, «escreveu que o meu triunfo internacional se devia ao Partido Comunista e a Pilar. Isso está escrito. Coitado do Partido, que nem sequer me deu emprego quando em 1975 fiquei sem trabalho.»

A INVEJA É CEGA, concluiu Saramago conversando com Juan Arias.

A crónica intitula-se As Palavras e tem uma forte frase final: «AS PALAVRAS BOAS E MÁS. O TRIGO E O JOIO. MAS SÓ O TRIGO DÁ PÃO.»

 

«As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.

E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até o prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou se dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão – e por essa via entram na imortalidade do Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente da junta afixa o discurso que abriu a torneira do marco fontanário. E as palavras escorrem tão fluidas como o «precioso líquido». Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares.

Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra é erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra não mostra. A palavra disfarça.

Daí que seja urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que vale o silêncio do ato.

Há, também, o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.»

 

Legenda: fotografia do El País

WILLIAM CHRISTOPHER HANDY (FATHER OF THE BLUES…?)


Ao contrário do que sucedeu no último texto que vos enviei, em que a interrogação não era de minha responsabilidade, aqui é-o, inteiramente.

Por uma questão de coerência, não poderia deixar de a fazer…

Se gastei o meu latim a explicar-vos que a origem do Blues era impossível de determinar, como é que poderia vir agora aqui  apresentar-vos alguém como sendo o seu Pai…? Se não se pode garantir com toda a certeza nem onde, nem quando, nem como nasceu o “filho”, que legitimidade teria eu para vos apresentar o pai…?

No entanto, nada disso impediu W. C. Handy, como ficou conhecido na gíria, de publicar em 1941 uma autobiografia, à qual deu, precisamente, esse nome: “Father of the Blues”.

Este autoproclamado título deverá ser interpretado em sentido figurado, mais numa ótica de “divulgador” do Blues e não de seu “criador”.

Mas já lá iremos…


William Handy nasceu em Florence, no Alabama, em 1873, filho de um fanático pregador Metodista que considerava como “música do diabo” todo e qualquer tipo de música que não tivesse uma natureza religiosa.

Mal imaginaria ele o filho que iria ter…

Desde muito cedo que o jovem Handy mostrou apetência por música, mas não propriamente a religiosa.

Começou por aprender violino, depois órgão e, mais tarde, fixar-se-ia no trompete.

Também desde muito cedo, às escondidas de seu pai, começou a tocar em agrupamentos musicais e a atuar em variados tipos de eventos, quase todos de duvidosa natureza religiosa...

Em 1892, com apenas 19 anos de idade, concorreu a um lugar de professor de música em Birmingham, na futura Universidade de Alabama. Ganhou-o com facilidade, mas acabou por recusar o lugar devido à parca remuneração que lhe propuseram. Viria a aceitar o mesmo lugar dez anos mais tarde, com melhor pagamento, mas a experiência não duraria mais de dois anos por Handy se recusar a ministrar o ensino musical demasiado “clássico” que lhe era imposto.

Em 1893 estava em Indiana, onde formou um quarteto de metais chamado “Lauzeta Quartet”, com o qual tocou por ocasião da Exposição Universal de Chicago

Em 1896, com 23 anos, torna-se líder de uma nova banda, os “Mahara’s Colored Minstrels”, com a qual, durante os sete anos que se seguiram, percorreu por diversas vezes todos os Estados Unidos e atuou também no Canadá, no México e em Cuba.

Em 1903, procurando para si e para a sua Família uma vida mais pacata, estabeleceu-se durante seis anos em Clarksdale, no Mississippi, num local que é hoje recordado através desta placa que vos mostro. Aí formou uma banda de “Ragtime” chamada “The Kinights of Pythias”, com a qual percorreu toda a região.

Foi nesse período de seis anos que passou no Mississippi que Handy, deslocando-se frequentemente pelas grandes plantações do Delta, se familiarizou com o tipo de música que aí estava a nascer e que viria a ser, mais tarde, apelidada de Blues. E foi numa pequena estação ferroviária de Tutwiler, nos arredores de Clarksdale, que Handy ouviria uma coisa que nunca mais esqueceu e à qual se refere expressamente nas suas memórias: um jovem negro a tocar guitarra com uma navalha, extraindo dela uma sonoridade que nunca antes tinha ouvido em lado nenhum.

Parece que Handy tinha uma capacidade muito particular que era a de captar e memorizar todos os sons que ouvia à sua volta, para deles extrair música. Desde os sons provenientes da própria natureza , como o chilrear dos pássaros, o som do vento a varrer a copa das árvores ou o barulho dos rios cavalgando entre seus leitos, até à voz humana nos seus diferentes tipos de canções de trabalho e de lazer, tudo lhe servia… Por exemplo, o tal som ouvido naquela estação de comboios perdida no meio de nenhures viria a estar na origem de uma canção, “Yellow Dog Blues”, publicada em 1915.

Em 1908 Handy e a sua Família abandonaram Clarksdale e fixaram-se em Memphis, onde uma nova e decisiva faceta da sua carreira musical se iria desenrolar.

Em 1909, em conjunto com um amigo, Harry Pace, forma uma editora destinada a publicar em forma de papel as suas músicas, bem como as de outros compositores, a qual se veio a revelar particularmente rentável.

Nesse mesmo ano de 1909, com o título de “Mr. Crumb”, compôs a música oficial da campanha eleitoral para “Mayor” local de um candidato democrata, Edward H, Crumb, que a viria a ganhar e a assumir grande notoriedade política, da qual também Handy viria a beneficiar bastante.

Mas para que se compreenda os “valores” de Handy e a sua apetência pelo dinheiro, no prefácio que escreveu para a  autobiografia do músico ,  Abbe Niles, um seu amigo que com ele se correspondera durante décadas, conta-nos que ele lhe terá um dia confessado que, nas tais eleições que deram a vitória a Mr. Crumb,  ele também havia composto a música para um candidato rival…!

Em 1912 Handy mudou o nome de “Mr. Crumb” para “Memphis Blues” e publicou-a com enorme sucesso, tendo sido essa a primeira música a ser publicada com a palavra “Blues” no seu título. Outras se seguiriam nesse mesmo ano de 1912, como “Dallas Blues” e “Baby Seals Blues”.

“Memphis Blues” foi gravada em 1914 pela “Victor Military Band” e, por curiosidade, aqui vos deixo essa gravação.

Mesmo sabendo-se que, nos seus primórdios, o Blues coeçou por ser uma música instrumental e de dança, para os nossos ouvidos de hoje é difícil aceitar esta música como sendo “Blues”, já que nos parece muito mais uma marcha “Ragtime” do que qualquer outra coisa. Não é, de facto, esta a música a que hoje chamamos “Blues”, e também não seria esta, certamente, a música que Charlie Patton e os seus amigos tocavam na Plantação de Dockery, a que fiz referência no último texto. Mas foi assim que ficou para a História e não me compete a mim, simples leigo, adulterar a História…  

Em 1914 Handy viria a publicar “St. Louis Blues”, uma das músicas mais famosas da História do Jazz que daria o seu nome ao filme que, quarenta e quatro anos mais tarde, iria retratar a sua vida.

No que respeita à sua ligação ao dito “Blues”, esta foi a fase mais importante da carreira de Handy, pelo que não me irei alongar muito mais, dizendo-vos, apenas, que em 1917 Handy se instalou no “Tin Pan Alley” de Nova Iorque, aí continuando a compor e a publicar músicas para filmes e peças de teatro, embora nunca tenha deixado de atuar, a solo ou acompanhado. 

Em 1941 publicaria as suas célebres “memórias” com o tal muito polémico título de “Father of the Blues”, e dois anos mais tarde viria a sofrer uma grave queda que o deixou parcialmente paralisado e quase cego, embora nunca tivesse deixado de trabalhar. 

Viria a falecer em 28 de Março de 1958, com 85 anos.

Como vos disse, o facto de Handy se ter autoproclamado “Father of the Blues” e até também, noutras circunstâncias, “The Inventor of the Jazz”, não foi isento de polémica. Uma das principais ocorreu nas páginas da revista “Downbeat”, à qual Jelly Roll Morton, um músico de New Orleans dos primórdios do Jazz, endereçou uma “aberta-aberta” afirmando que “it is generally known and beyond contradiction, that the cradle of jazz is New Orleans  and that I personally created jazz en 1902”…

A polémica prolongou-se no tempo, mas a verdade é que parece que nem William Hardy nem Jelly Morton foram os verdadeiros “inventores do Jazz”, tal como vos contarei numa próxima oportunidade…

Polémicas à parte, W. C. Handy é hoje considerado um dos mais importantes compositores americanos do Séc. XX. O que dizem os musicólogos é que a sua Obra foi beber a tudo, ao Blues, ao Jazz, à Clássica e que até revela acordes do tango argentino e das “vihuelas”  e “mariachis” mexicanas que Handy terá, certamente, ouvido quando por lá andou em digressão, nos seus tempos de juventude.

Quanto à sua designação como “Pai do Blues”, ela não deverá ser interpretada em sentido literal: como vos disse, foi Handy quem publicou a primeira música com a palavra “Blues” no seu título e foi Handy o responsável pelos primeiros grandes sucessos de vendas dessa música, sobretudo a partir de “St. Louis Blues”. Poderá afirmar-se, de facto e sem grande margem de erro, que terá sido Handy quem levou o Blues do relativo “ghetto” onde se encontrava nas primeiras décadas do Séc XX para o “mainstream”, possibilitando-lhe uma mais ampla divulgação.   

 Como  não podia deixar de ser na América, a sua vida deu um filme: “St. Louis Blues”, realizado em 1958 por Allen Reisner e estreado poucos dias após a sua morte.


Não obstante o filme estar carregado de vedetas do mundo do Jazz  e do Gospel (Nat King Cole, no papel de Handy, mas também Mahalia Jackson, Ella Fitzgerald, Ertha Kitt e Cab Calloway) e de ter o “arranjo musical” do grande Nelson Riddle, talvez Handy merecesse melhor, porque se trata de um mau filme, no qual a sua vida é romanceada e adulterada à moda de Hollywood. Não só poucas coisas batem certo com a sua biografia, como também se chega ao ponto de, numa cena passada na transição do Séc. XIX para o Séc. XX, se anunciar em grandes letras num cartaz de espetáculo a presença da “Grande Ella Fitzgerald”, que só viria a nascer …. em 1918!    

 Por mera curiosidade deixo-vos o “trailer” desse filme, com uma correta frase que resume a obra de Handy desta forma: “He took the music from the heartbeat of America, and created a new rhythm that swept the World”…


E despeço-me dando corpo e voz ao próprio Handy, já nos seus 75 anos, a interpretar “St. Louis Blues” num dos primeiros episódios do Ed Sullivan Show, em Fevereiro de 1949.


Texto e Fotografias de Luís Miguel Mira

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

POSTAIS SEM SELO

O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros.

Marguerite Yourcenar

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Em Janeiro de 1971 o livro Deste Mundo e do Outro de José Saramago custou-me 20 escudos, tal como se pode ver na 1ªpágina, canto superior direito, escrito, a lápis pelo livreiro.

Eu passava a saber que, para além de poeta, Saramago era um cronista. O volume reúne crónicas publicadas em A Capital e no Jornal do Fundão.

É neste volume que surge a primeira dedicatória à escritora Isabel da Nóbrega.

Numa carta, datada de 7 de Junho de 1968, Saramago escreve a José Rodrigues Miguéis:

 « A minha falta de notícias, essa, liga-se a problemas de ordem particular que me têm posto o juízo em água. Tanto tempo andei a dar na ponta de uma agulha, que por fim acabei por me empalar nela… Se um tal estado e uma tal situação são compatíveis com a disponibilidade de espírito necessária para escrever cartas – deixo isso ao seu critério… Não queira saber o que tem sido (e continua a ser) a minha vida!»

 Neste livro encontram-se as evocações da avó Josefa (página 25), do avô Jerónimo (página 28) que, aquando do primeiro Discurso de Estocolmo na entrega do Prémio Nobel, utilizará, como esteio, no comovente discurso que, então, proferiu.

Volto às cartas de Saramago para Miguéis:

«E peço-lhe que não faça caso da aridez desta carta: ontem deu-me para recordar o meu avô camponês – e fiquei assim: amargo. Felizmente para a literatura portuguesa deu crónica… Manha de literato, defeito de escriba: tudo acaba por se transformar em literatura…» 

Também por um comovente discurso em Estocolmo com o Prémio Nobel como pano de fundo.

Da crónica de Josefa:

«Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este Mundo e não curaste de saber o que é o Mundo. Chegas ao fim da vida, e o Mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal, a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida.»

Da crónica de Jerónimo:

«Mas a imagem que me não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso, como quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas, nesta altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a interrogacão das estrelas. Só isto — e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo.»

 Ainda o grande lamento da avó Josefa:

«O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!» 

 São notáveis as crónicas de José Saramago:

«Bem sei que os tempos, aqui para nós, não vão para crónicas. Dividido entre o título da primeira página e o boletim meteorológico (ou não9, entre as notícias do estrangeiro e as novidades locais – o leitor afasta os olhos carregados de preocupações ou com bilhete para as evasões possíveis. Crónicas, que são? Pretextos ou testemunhos? São o que podem ser…» (página 49).

Uma crónica notável, O Sapateiro Prodigioso que, em findar de texto fica assim retratado: 

«É um homem interessado que vive numa aldeia e tem uma loja com um horizonte de plátanos que se arrepiam à noite, quando o céu se cobre de estrelas. (página 24).

 «O meu sapateiro tinha muitos amigos, mas as horas da visita variavam consoante a posição social de cada um. O médico nunca estava quando lá ia um pé mal calçado; o prior não passava da porta; os lavradores da terra evitavam encontrar-se com inimigos da estrema vizinha, e diziam coisas graves e profundas, ou bisbilhotices de meia-porta, enquanto ponderosamente iam remexendo nos bolsos do colete.

Só eu era um freguês de todas as horas.» (página 22)

 Outras crónicas, outros sublinhados:

«Ninguém sabe nada de si antes da acção em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele não se move Não conhecemos o amor antes do amor.» (página 11).

«A história das pessoas é feita de lágrimas, alguns risos, uma tantas pequenas alegrias e uma grande dor final.» (página 21).

«Estarmos vivos é já em si uma vitória. A vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver.» (página 39).

 «Não sei o que cá faço, e é importante que o saiba. Mas mais importante é fazer.» (página 44).

 «Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.»(página 53)

 «Ora, a vida é feita de pequenas e minúsculas tarefas. Escrever é uma delas.» (página 146)

 O meu velho livrinho da Arcádia está repleto de sublinhados.

 Por mister difícil, são escassos, entre nós, os verdadeiros cultores da crónica de jornal.

 Saramago, com este livro, mostrava que era um cronista de mão cheia. 

 E assim me aconteceu.

 Ou como o editor sobre este livro, colocou palavras de Mário Sérgio nas badanas de A Bagagem do Viajante:

 «Irei agora pôr Deste Mundo e do Outro naquele pedaço de estante onde vivem os livros que tenho de ver todos os dias, de tocar e folhear todos os dias e de ler nem que seja apenas um parágrafo.»

NOTÍCIAS DO CIRCO

Terão sido detetados, pelo menos, mais de duas dezenas de casos em que o apoio do Estado para combater os efeitos da inflação, emitido pela Segurança Social, foi atribuído a cidadãos estrangeiros abrangidos pelo regime de vistos gold. Os 125 euros terão sido entregues, segundo o semanário, através de cheques, a cidadãos estrangeiros com elevados rendimentos de capital, mas com poucos ou nenhuns rendimentos de trabalho declarado no nosso país.

 Esta não é uma habitual «boca» do Dudu no Café do Barro. É uma notícia do Expresso, sujeito, por vezes a algum tipo de «bocas»

O jornalista ainda perguntou a juristas como é possível uma situação destas e concluíram que é um vazio na lei, um eventual «esquecimento» do legislador.

O AMOR EM CENTRAL PARK

Mataram o Amor em Central Park.

Vieram para isso

as raparigas mais lindas dos bairros periféricos.

Com blue-jeans, sorrisos, cautelosos sonhos.

Homens adolescentes trouxeram o preciso.

Camisolas coloridas, bonés,

eis o uniforme do esquadrão maldito.

 

(Como era domingo o Amor

estava muito quieto ao sol.)

 

Mataram o Amor em Central Park.

Mataram-no a golpes de latas de conservas,

com salsichas terríveis, gritaria.

Estriparam-lhe o ventre.

Roubaram-lhe o impulso. Como trapos

removeram-lhe os véus da luxúria.

Mais adiante deitaram fora o desejo.

E o Amor, despido, errante, vagueou pela relva.

 

Cantava uma música de carrossel:

Iam tão seguros os cavalitos pelo ar…

 

O Amor morreu às oito

à sombra de uma árvore.

 

María Jesús Echevarría em Poemas da Cidade

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

POSTAIS SEM SELO


Gertrud Stein escreveu uma vez, sabiamente: «Uma rosa é uma rosa é uma rosa.»

Até hoje, ninguém contradisse a sua afirmação.

Erle Stanley Gardner

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Ah! sim, a memória.

O que se faz quando se perde a memória?

Posso dizer: «esqueci»?

«Vivemos da memória. E eu tenho a certeza de que nada nos resta quando a perdemos. Existe um corpo, sim. Mas um corpo sem memória é uma casa vazia. Sem gente, sem livros e sem retratos na parede. Uma casa nunca cheira ao bolo de laranja ao domingo.»

Dizia o velho Paul SimonPreserva as tuas memórias. Elas são tudo o que te resta.»

 «… inevitavelmente, sou levado a pensar no meu Livro das Tentações, sempre anunciado e sempre adiado: que não será um livro de memórias, respondo eu, quando me perguntam acerca dele, mas sim, como declarei ao José Manuele Mendes, na entrevista à Setembro, um livro do qual eu possa vir a dizer: «Esta é a memória que eu tenho de mim próprio.»

Cadernos de Lanzarote, Volume I, página 31

«Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.»

Cadernos de Lanzarote, Volume II, página 63

«A memória, que é suscetível e não gosta de ser apanhada em falta, tende a preencher os esquecimentos com criações de realidade próprias, obviamente espúrias, mas mais ou menos contíguas aos factos de cujo acontecer só lhe havia ficado uma lembrança vaga, como o que resta da passagem duma sombra.»

Todos os Nomes (citação apanhada por Paulo Neves da Silva).

SEM VERGONHA DE O ADMITIR


 Além disso – não tenho vergonha de o admitir – não gostava de ler. Ao contrário da minha irmã, que gostava, eu era um rapaz preguiçosos que não sentia qualquer prazer em agarrar-se a um livro. E porque haveria de sentir? A rádio e os filmes eram muito mais entusiasmantes. Eram menos exigentes e mais vivos. Na escola, nunca souberam a apresentar-nos a leitura de modo a que aprendêssemos a gostar dela. Os livros e histórias escolhidos eram aborrecidos, imbecis, antisséticos. Ninguém naquelas histórias cuidadosamente escolhidas para jovens rapazes e raparigas se comparava ao Homem-Elástico ou ao Capitão Marved. Seria de esperar que um rapaz sexualmente ativo (mais uma vez desafiando Freud, nunca tive um período de latência) que gosta de filmes de gangsters com Bogart e Carey e de louras baratas e sensuais se preocupasse minimamente com «O Presente dos Magos»? Portanto, ela vende o cabelo para lhe comprar um relógio e ele vende o relágio para lhe comprar pentes. A moral que daí retirei foi foi que é sempre mais seguro dar dinheiro.

Woody Allen em A Propósito de Nada

OLHAR AS CAPAS


O Caso do Revólver Trocado

Erle Stanley Gardner

Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues

Capa: Lima de Freitas

Colecção Vampiro nº 248

Livros do Brasil, Lisboa s/d

George Anclitas olhou para Ellen Robb com a expressão calculista e astuta de um comprador de gado a inspecionar um carregamento de bois para abate.

- Meias pretas – decretou.

- Meias pretas cumpridas, até acima – acrescentou George, e fez um gesto, a incluir os quadris.

- São meias –calças – insistiu Slim.

- E a saia – prosseguiu George, sempre a observar Ellen – a meio da coxa, com um minúsculo aventalinho branco. Sabes a que me refiro, Ellen; àquela coisa do tamanho de um lenço de bolso, com uma quantidade de rendas.

DESAPARECIDO

Sempre que leio nos jornais:

«De casa de seus pais desapar’ceu...»

Embora sejam outros os sinais,

Suponho sempre que sou eu.

 

Eu, verdadeiramente jovem,

Que por caminhos meus e naturais,

Do meu veleiro, que ora os outros movem,

Pudesse ser o próprio arrais.

 

Eu, que tentasse errado norte;

Vencido, embora, por contrário vento,

Mas desprezasse, consciente e forte,

O porto do arrependimento.

 

Eu, que pudesse, enfim, ser eu!

- Livre o instinto, em vez de coagido.

«De casa de seus pais desapar’ceu...»

Eu, o feliz desaparecido!

 

Carlos Queirós

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

POSTAIS SEM SELO

Nas casas demasiado silenciosas os móveis falam sozinhos.

Artur Lundkvist

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 Contra mim falo: o melhor que às vezes os livros têm são as epígrafes que lhes servem de credencial e carta de rumos. Objecto Quase, por exemplo, ficaria perfeito se só contivesse a página que leva a citação de Marx e Ebgels. Lamentavelmente, a crítica salta por cima dessas excelências e vai aplicar as suas lupas e os seus escalpelos ao menos merecedor que vem depois.

José Saramago em Cadernos de Lanzarote, Vol. III, página 20.

O OUTRO LADO DAS CAPAS

Leio por aí que hoje é o Dia Mundial da Abóbora.

As vezes que o meu avô, por erros nos ditados, nas cópias nos problemas, me chamava cabeça de abóbora.

Não seja por isso que não simpatizo com algo que leve abóbora. Eu que nunca recuso nenhum doce, passo ao lado do Doce de Abóbora.

 As abóboras são cultivadas em todo o mundo por várias razões, desde propósitos agrícolas (como ração animal) até vendas comerciais e ornamentais. Dos sete continentes, apenas a Antártica é incapaz de produzir abóboras. A abóbora tradicional americana usada para o Halloween é a variedade do campo de Connecticut.

 A contra capa do livro não tem nada de especial, excepto uma relação das obras de Aquilino Ribeiro. De resto, mais ou menos, como  em todos os livros da época, não existe inficação do autor da capa, nem da data em que foi editado.

 A parte que se cita de Abóboras no Telhado faz parte da longa e amistosa dedicatória  que Aquilino faz a Jaime Cortesão.

Lembro-me que o único livro de Aquilino que comprei foi A Casa Grande Romarigães.

A lápis, no canto superior direito da 1º página, o livreiro escreveu: 45$00. Mas não passei da página 54. Sei isto porque, naquele tempo, os livros não se vendiam com as folhas guilhotinadas, tinham de ser abertos com uma faca («De repente senti saudade da velha ferramenta do jovem leitor que fui. A faca de papel. A ferramenta fora de uso morre. A faca de papel, belo objecto, está a desaparecer. E com ele talvez certa leitura via Jorge Listopad em Secos e Molhados) e a minha tarefa ficou-se por essa página. Havia quem comprasse os livros e os abrisse de uma vez só. Eu gostava de ir abrindo à medida que os ia lendo.

Terá sido a velha história: chateei-me de ler tanta palavra que desconhecia, e, numa de preguiça literária, cansei-me da necessidade de tanto ter que pegar no Dicionário.

Tem um bonito começo:

O Vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista!

 

OLHAR AS CAPAS


Abóboras no Telhado

Aquilino Ribeiro

Livraria Bertrand, Lisboa s/d

Dê-me licença, querido amigo, que lhe ofereça esta carrada de abóboras. Dou o que tenho. Faça de conta que lhe trago... o quê? os pomos de oiro das Hespérides.

Abóboras? Pois então! Como os bons e pobres cultivadores da minha serra, agora que chegou o meu Outono, sinto que é a altura de tirar as abóboras do campo e pô-las com a barriga ao léu, o ar estupefacto, a inocência rósea, o esferoidal caprichoso em cima do telhado. 

NOTÍCAIS DO CIRCO

De uma conversa ouvida no Café do Bairro, com Dudu no seu melhor:

André Ventura acredita que há famílias que vão desviar os 125 euros que foram atribuídos bem como os 50 euros atribuídos a cada filho. para gastos supérfluos e pede que se fiscalize o que está, ou vai, acontecer.

2009, PINA BAUCH


 “As eleições de domingo no Benfica

estão comprometidas; morreu

Pina Bausch, a coreógrafa alemã”. – foi assim,

de rajada, numa frase única a colar-se

ao vidro do táxi, que fiquei a saber de sua morte.

 

E tive pena, recordei enquanto não pedia troco

a tristeza feliz de a ver dançar Café Müller

 

Mas já não tenho poemas.

Nem mesmo para si, Pina Bausch.

 

Manuel de Freitas

 

Legenda: Pina Bauch

SARAMAGUEANDO

No dia 3 de novembro, o Teatro Municipal São Luiz recebe o concerto do Centenário de José Saramago, com vários intérpretes e compositores de língua portuguesa e espanhola.

Transcrito do site da Fundação José Saramago:

«A relação de José Saramago com a música vem de longe. Desde que em pequeno subia ao galinheiro do Teatro Nacional de São Carlos, por favor de um dos porteiros do Teatro, amigo do seu pai, e depois ao longo da vida, através da escuta de compositores diferentes, muitos do universo da música clássica, mas outros, muitos também, oriundos de outros géneros musicais. Nas suas obras encontram-se passagens em que a música ou os seus intérpretes acabam por conduzir o leitor por andamentos de diferentes ritmos e sonoridades, de Bach a Beethoven ou a Leonard Cohen, um dos seus intérpretes favoritos fora do universo clássico.

Mas José Saramago foi também parceiro de muitos músicos portugueses, que o levaram das páginas dos livros para os palcos ou para gravações em disco. Se alguns deles já não estão fisicamente entre nós, como é o caso de Carlos do Carmo, outros continuam a subir a palcos nacionais e estrangeiros, mostrando que a Cultura portuguesa está viva e recomenda-se.

Há uns anos, a Fundação José Saramago, em parceria com a Casa Fernando Pessoa, desafiou alguns desses músicos a prepararem concertos a partir de leituras que tivessem feito ao longo da sua vida, acrescentando a esse desafio o de comporem temas a partir de Saramago e Pessoa. Neste ano em que se celebra o centenário do nascimento de José Saramago, convidam-se músicos para darem a ouvir alguns desses temas ou outros que tenham escolhido a partir da obra de Saramago. Um concerto em que a música em língua portuguesa se cruza com a literatura de José Saramago, celebrando a sua obra, celebrando-as.»

terça-feira, 25 de outubro de 2022

SUBLINHADO SOBRE UM SARAMAGUIANO SUBLINHADO


Reconheçoque a transcrição que faço da conferência de José Saramago é longa, mas acabei por não resistir. Trata-se de um exercício notável, autêntico jogo de xadrez que, lamentavelmente, nunca aprendi a jogar. Também gostava de tocar guitarra e nada fiz por isso.

Penso que alguém de bom ler alguma vez poderá ficar desiludido com a escrita e capacidades argumentativas de Saramago.

Desconhecia esta conferência como, de certeza quase absoluta, desconheço outros textos e intervenções de José Saramago.

Aqui entendo dizer que o trabalho da Fundação, em determinados aspectos, não se tem debruçado convenientemente com o imenso espolio e ideias que Saramago deixou. De uma delas já falei por aqui mas volto a falar:

José Saramago sempre entendeu que para que se possa conhecer melhor a obra de um escritor, é necessário publicar a correspondência trocada com os seus pares.

Saramago vai mais longe, e na longa conversa que manteve com João Céu e Silva, diz:

Tenho milhares de cartas e costumo dizer que a obra completa de um escritor só estará realmente completa publicando-se uma selecção das cartas dos leitores porque – fala-se tanto da teoria da recepção – é naquelas cartas que se vê realmente o que é a recepção. Em casa devemos ter umas duas mil cartas de leitores que é preciso classificar e ordenar.

Humberto Werneck que fez uma entrevista a José Saramago, cuja transcrição pode ser lida no Último Caderno de Lanzarote revela que «Saramago escreve pela manhã e no final da tarde a sua quota diária de literatura, nunca mais de duas páginas ao som de Mozart, Bach ou Beethoven, e responde a algumas das cartas, cerca de 100, em média, que lhe chegam todos os meses de vários cantos do mundo.»

No dia 8 de Agosto de 1998, entrada do Último Caderno de Lanzarote, Saramago volta ao assunto das correspondência que manteve com os seus leitores.

«Um dia deixei consignado nestes Cadernos a única ideia em tudo original que até aí tinha produzido (e suspeito que desde então não consegui espremer da cabeça outra de quilate semelhante), aquela luminosíssima ocorrência de que na publicação da obra completa de um escritor deveria haver um volume ou mais com as cartas dos leitores. Fala-se, discute-se, discorre-se sobre as teorias da receção (empurrando portas abertas?), e parece que ninguém repara no inesgotável campo de trabalho que oferecem as caretas dos leitores.»

Decorreu o suficiente tempo sobre a morte de Saramago  para que a Fundação já tivesse iniciado o trabalho de divulgação sobre as cartas de diversa gente que Saramago recebeu e a que deu resposta.

Compreendo e aceito a existência de T-shirts, sacos para livros, canecas, porta-chaves, agendas, etc., etc., etc.

«Isto tem muito que ver também com o prazer da escrita de que tanto se fala. Tenho que confessar, muito sinceramente, que escrever não me dá prazer. Pode dar-me prazer ter escrito, o que é outra coisa; agora, o chamado prazer da escrita, sinceramente não o sinto – embora também nunca tenha lido uma explicação que me diga em que consiste esse prazer. Muita gente fala do prazer da escrita, mas nunca ninguém nos disse que esse prazer se manifesta desta ou daquela maneira.«

José Saramago em  Diálogos com José Saramago de Carlos Reis, página 124

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 Dito já que começaram as iniciativas que visam registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um parágrafo, aquilo que constituem os milhares de sublinhados que, ao longo dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam a  Biblioteca da Casa.

Chegado a Lisboa, vindo no Highland  Brigade, navio inglês da Mala Real, debaixo de um dilúvio («há dois meses que o céu anda a desfazer-se em água», hospedado no Hotel Bragança, Ricardo Reis começou a despejar as malas e no meio da dezena e meia dos poucos livros que trouxera encontra um que pertencia à biblioteca do Highland Brigade, «esquecera-se de o entregar antes do desembarque. A estas horas, se o bibliotecário irlandês deu pela falta, grossas e gravosas acusações hão-de ter sido feitas à lusitana pátria.»

O livro é The god ff the Labyrinth, seu autor Herbert Quain.

Na página 25 de Os Seus Nomes há uma citação de O Ano da Morte de Ricardo Reis:

«Ricardo Reis baixou a vidraça, olhou para fora. Uma mulher idosa, descalça, vestida de escuro, abraçava um rapazinho magro, de uns treze anos, dizia, Meu rico filho, estavam os dois à espera de que o comboio recomeçasse a andar para poderem atravessar.»

Esta citação é complementada com uma outra:

« Ora, por mais incrível que vos pareça, aquele rapaz de treze anos que desceu do comboio na estação de Mato de Miranda em 1936, era eu. É verdade que hoje, passados tantos anos, me será impossível recordar se um senhor com cara de médico e de poeta esteve a olhar para mim quando eu abraçava a minha avó, mas se Ricardo Reis afirma que me viu da janela do comboio, quem sou eu para atrever-me a dizer o contrário?»

Esta citação é tirada de uma conferência dada por José Saramago (2006) em que se pretendia estabelecer um diálogo entre temas e autores onde acabam por entrar Jorge Luís Borges e José Saramago a que chamou «Algumas Provas da Existência de Herbert Quain» que, tirado do site da Fundação José Saramago, aqui se reproduz:

«Todos conhecemos aquela pintura de Magritte que representa uma maçã e em que ao mesmo tempo se nos diz: «Isto não é uma maçã.» Realmente a pintura tem razão, o que Magritte fez não foi uma maçã, mas sim uma representação dela. Não obstante, e apesar da própria evidência e do aviso do pintor, temos continuado a afirmar, quando olhamos o quadro ou quando o recordamos: «Aquilo é uma maçã.» Tal como Magritte, sinto também eu, neste momento, o dever de vos prevenir de que isto não é uma conferência. Não me surpreenderia, porém, que, terminada ela, um de vós, mais severamente condicionado pelo ritual destes acontecimentos literários, diga ao vizinho: «Isto foi uma conferência.» Espero que esse vizinho tenha a coragem de responder: «Não foi uma conferência, foi só a intenção de uma conferência.»

Desafiando o vosso mais do que fundamentado cepticismo, chamei a isto que não é conferência Algumas Provas da Existência Real de Herbert Quain. De facto, de acordo com o que Borges permitiu que conhecêssemos deste assunto, a circunstância de Herbert Quain ter escrito uns quantos livros não seria prova suficiente de que tivesse existido como pessoa. Alguém viu um retrato de Quain? Uma amostra da sua caligrafia? O desenho das suas impressões digitais? O passaporte? Uma notícia no Larousse ou na Enciclopédia Britânica? Uma carta de amor por ele escrita ou por ele recebida? Não, ninguém viu, ninguém leu, portanto Borges parece ter razão, Herbert Quain não existiu, tudo foi um puro jogo. Mas como pode ter sido tudo um puro jogo se o próprio Borges afirma ter lido esses livros, e entre eles um que se chama The god ofthe labyrinth? E não só declara que o leu como nos dá precisas indicações sobre a intriga policial que nele se narra… Por outro lado, parece-me dificilmente aceitável que alguém gaste o seu tempo a proclamar a não existência de uma pessoa, ao mesmo tempo que nos vai informando do lugar onde essa pessoa faleceu. Segundo Borges, o escritor Herbert Quain terá morrido numa cidade chamada Roscommon, porém não nos diz de que Roscommon se trata. Ignorava Borges que há dois lugares no mundo com esse nome, um na Irlanda, outro nos Estados Unidos? Tendo em conta que só em dois jornais – The Times e The Spectator –, ambos ingleses, apareceram artigos por ocasião da morte de Quain, somos levados a crer que o Roscommon mencionado é o irlandês. No entanto, basta que nos lembremos do enorme número de irlandeses que vivem nos Estados Unidos para termos de admitir a hipótese de que o irlandês Herbert Quain teria emigrado para os Estados Unidos e por lá se teria deixado ficar. Dir-me-ão que nenhum jornal norte-americano falou da sua obra ou da sua vida, mas isso, como a experiência nos tem ensinado, nada prova…

No meio de tantas e tão sérias contradições, desorientados num labirinto aparentemente sem saída, seria mais cómodo que renunciássemos ao exame do Examen de la obra de Herbert Quain e aceitássemos que, tal como o francês Pierre Menard havia sido uma invenção de Borges, também o haveria sido o irlandês Herbert Quain. Perseveremos no entanto um pouco mais. A invenção de Pierre Menard, de cuja existência real não temos efectivamente provas, aconteceu em 1939, e, pouco tempo depois, em 1941, ocorreu aquilo a que, pela mesma ordem de razões, poderíamos chamar «a invenção de Herbert Quain». Simplesmente, ao contrário de Menard, o autor de The god of the labyrinth existiu mesmo. Não foram achadas cartas de amor, nem fotografias, nem impressões digitais, nem amostras caligráficas, mas há provas consistentes, tanto das objectivas como das subjectivas, da sua passagem pelo mundo e da sua efectiva actividade de escritor. Como passarei a demonstrar.

No final de 1935, isto é, dois anos depois da publicação de The god of the labyrinth, um exemplar deste livro, pelo menos um exemplar, fazia parte da biblioteca de um barco inglês denominado Highland Brigade. Requisitou-o ao respectivo bibliotecário um poeta português, Ricardo Reis, embarcado no Rio de Janeiro, e de quem, curiosamente, durante muitos anos, também se disse que não tinha existido. Ora, não é necessário ter estudado lógica intuicionista para compreender que duas proposições contraditórias não podem ser, ambas, falsas. Como se aplica isto a Ricardo Reis e a Herbert Quain? Aceitando, ainda que com recurso ao paradoxo, que se um deles é autêntico, também o pode ser o outro. Além disso, temos a prova do livro. Ao desembarcar em Lisboa, o poeta Ricardo Reis, por esquecimento, não devolveu The god of the labyrinth à biblioteca. São coisas que estão sempre a suceder, esquecer-nos de devolver um livro…. Foi só no hotel que Reis, ao abrir as malas, deu com The god. Digamos, pois, que a existência material do livro fica claramente demonstrada pelo facto de que, em primeiro lugar, Ricardo Reis o encontrou e, em segundo lugar, o levou consigo para o hotel. Devo dizer já que Ricardo Reis, apesar de o ter tentado não poucas vezes, não chegou a terminar a leitura de The god of the labyrinth: este facto impediu-me de conhecer, sobre o conteúdo da obra, muito mais do que o pouquíssimo que nos disse Borges… As casualidades da vida são uma realidade, bastará dar-lhes um mínimo de atenção para compreender que as pessoas e as coisas estão todas relacionadas umas com as outras, o que acontece, infelizmente, é que nem sempre sabemos onde se encontra o fio que as liga, e algumas vezes temo-lo na mão e só nos apercebemos demasiado tarde. A mim surpreende-me muito que Borges não tenha escrito, por exemplo, O Ano da Morte de Ricardo Reis. Borges não ignorava, certamente, que o poeta português era médico e monárquico, que tinha ido para o Brasil em 1919, e que em 1935, depois de receber a notícia da morte de Fernando Pessoa, regressou a Lisboa. Foi deste pouco que se veio a fazer o romance. Ora, se Borges tinha sido capaz de inventar Pierre Menard e Herbert Quain, está claro que para ele teria sido uma brincadeira de crianças dar vida a Ricardo Reis. Talvez não o tenha feito precisamente por ser tão fácil.

Vejamos agora, em pormenor, as provas suplementares da existência real de Quain. Vejamos o que nos diz O Ano da Morte de Ricardo Reis:

«Deixou a janela aberta, foi abrir a outra, e, em mangas de camisa, refrescado, com um vigor súbito, começou a abrir as malas, em menos de meia hora as despejou, passou o conteúdo delas para os móveis, para os gavetões da cómoda, os sapatos na gaveta-sapateira, os fatos nos cabides do guarda- roupa, a mala preta de médico num fundo escuro de armário, e os livros numa prateleira, estes poucos que trouxera consigo, alguma latinação clássica de que já não fazia leitura regular, uns manuseados poetas ingleses, três ou quatro autores brasileiros, de portugueses não chegava a uma dezena, e no meio deles encontrava agora um que pertencia à biblioteca do Highland Brigade, esquecera-se de o entregar antes do desembarque. A esta horas, se o bibliotecário irlandês deu pela falta, grossas e gravosas acusações hão-de ter sido feitas à lusitana pátria, terra de escravos e ladrões, como disse Byron e dirá O’Brien, destas mínimas causas, locais, é que costumam gerar-se grandes e mundiais efeitos, mas eu estou inocente, juro-o, foi deslembrança, só, e nada mais. Pôs o livro na mesa-de-cabeceira para um destes dias o acabar de ler, apetecendo, é seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês também, por não singular coincidência, mas o nome, esse sim, é singularíssimo, pois sem máximo erro de pronúncia se poderia ler, Quem, repare-se, Quain, Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em único exemplar, nem isso, razão maior para perguntarmos nós, Quem. O tédio da viagem e a sugestão do título o tinham atraído, um labirinto com um deus, que deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um simples romance policial, uma vulgar história de assassínio e investigação, o criminoso, a vítima, se pelo contrário não preexiste a vítima ao criminoso, e finalmente o detective, todos três cúmplices da morte, em verdade vos direi que o leitor de romances policiais é o único e real sobrevivente da história que estiver lendo, se não é como sobrevivente único e real que todo o leitor lê toda a história.»

Um pouco mais adiante, Ricardo Reis vai para a cama. «[…] abriu o livro que tinha à cabeceira, o de Herbert Quain, passou os olhos por duas páginas sem dar muita atenção ao sentido do que lia, parecia que tinham sido encontradas três razões para o crime, suficiente cada uma para incriminar o suspeito sobre quem conjuntamente convergiam, mas o dito suspeito, usando o direito e cumprindo o dever de colaborar com a justiça, sugerira que a verdadeira razão, no caso de ter sido ele, de facto, o criminoso, ainda poderia ser uma quarta, ou quinta, ou sexta razões, igualmente suficientes, e que a explicação do crime, os seus motivos, se encontrariam, talvez, só talvez, na articulação de todas essas razões, na sua acção recíproca, no efeito de cada conjunto sobre os restantes conjuntos e sobre o todo, na eventual mas mais do que provável anulação ou alteração de efeitos por outros efeitos, e como se chegara ao resultado final, a morte, e ainda assim era preciso averiguar que parte de responsabilidade caberia à vítima, isto é, se esta deveria ou não ser considerada, para efeitos morais e legais, como uma sétima e talvez, mas só talvez, definitiva razão. Sentia-se reconfortado, a botija aquecia-lhe os pés, o cérebro funcionava sem ligação consciente com o exterior, a aridez da leitura fazia-lhe pesar as pálpebras. Fechou por alguns segundos os olhos e quando os abriu estava Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, como se viesse de visita a um doente, […]»

Tenho uma dúvida, não sei se Borges escreveu isto, ou se eu o copiei. O que é evidente é que este jogo mais se assemelha aos inventos de Borges que a operações de que eu seja geralmente autor. Já agora, e antes que me esqueça, aclaro que Fernando Pessoa não aparece embrulhado num lençol branco, não atravessa as paredes, bate à porta como faria qualquer mortal e, se lha abrem, entra.

Depois do encontro com Fernando Pessoa, «[…] abriu The god of the labyrinth, leu página e meia, percebeu que se falava de dois jogadores de xadrez, mas não chegou a concluir se eles jogavam ou conversavam, as letras confundiram-se-lhe diante dos olhos, largou o livro […]»

Mais tarde retomou a leitura, sentou-se na cadeira onde estivera Fernando Pessoa, com um dos cobertores da cama tapou os joelhos, e pôs-se a ler, começando outra vez da primeira página:

«O corpo, que foi encontrado pelo primeiro jogador de xadrez, ocupava, de braços abertos, as casas dos peões do rei e da rainha e as duas seguintes, na direcção do campo adversário.»

Devo notar que as palavras que acabei de ler não são referidas por Jorge Luis Borges no seu Examen de la obra de Herbert Quain, mas podem ser lidas no Ano da Morte de Ricardo Reis, o que é mais uma prova da existência de The god of the labyrinth e, portanto, do seu autor, isto é, graças à leitura feita por Reis ficámos a saber algo mais do conteúdo do livro de Quain. Prossigo:

«Continuou a leitura, mas, mesmo antes de chegar ao ponto em que deixara a história, começou a sentir-se sonolento. Deitou-se, leu ainda duas páginas com esforço, adormeceu na clareira de um parágrafo, entre os lances trigésimo sétimo e trigésimo oitavo, quando o segundo jogador reflectia sobre o destino do bispo.»

Tereis observado que toda a minha preocupação, até agora, tem estado centrada na apresentação e defesa das provas da existência real de Herbert Quain, e que, para alcançar esse objectivo, me tenho servido de um romance publicado em 1984 com o título de O Ano da Morte de Ricardo Reis. É tempo, portanto, de me antecipar a alguma dúvida que se esteja formando no vosso espírito sobre a existência real, não de Herbert Quain, mas de Ricardo Reis. Se não o fiz até agora foi por pudor de introduzir factos e circunstâncias da minha vida pessoal numa demonstração que está obrigada a respeitar, pelo menos, os limites de uma aceitável verosimilhança literária. Embora temendo que não ireis poder reprimir a incredulidade, arrisco-me a ler uma passagem de O Ano da Morte de Ricardo Reis em que se descreve um episódio da viagem que Reis fez a Fátima para encontrar uma rapariga de quem se julgava enamorado. Ei-la: «Ricardo Reis baixou a vidraça, olhou para fora. Uma mulher idosa, descalça, vestida de escuro, abraçava um rapazinho magro, de uns treze anos, dizia, Meu rico filho, estavam os dois à espera de que o comboio recomeçasse a andar para poderem atravessar a linha, […]»

Ora, por mais incrível que vos pareça, aquele rapaz de treze anos que desceu do comboio na estação de Mato de Miranda em 1936, era eu. É verdade que hoje, passados tantos anos, me será impossível recordar se um senhor com cara de médico e de poeta esteve a olhar para mim quando eu abraçava a minha avó, mas se Ricardo Reis afirma que me viu da janela do comboio, quem sou eu para atrever-me a dizer o contrário? Se eu estava onde Ricardo Reis diz que me viu, isso só pode significar que Ricardo Reis existiu de facto, uma vez que eu estava ali, de facto, naquele dia. Salvo se, a par das dúvidas sobre a existência de Quain e Reis, começássemos a ter também dúvidas sobre a minha própria existência. Espero que não me obriguem a apresentar provas dela. Como quer que seja, creio ter deixado claramente demonstrado que há, ou pelo menos houve-a quando eu tinha treze anos, uma relação directa e quase visceral entre Borges, Herbert Quain, Ricardo Reis e eu próprio.

Adiante. Chega um momento em que Ricardo Reis debate consigo mesmo se deve continuar em Lisboa ou regressar ao Rio de Janeiro. Faltou-me dizer que Reis tem uma ligação mais carnal do que sentimental, o que não deve surpreender-nos, com uma criada do hotel onde se encontra hospedado. Fraquezas da carne… Ela chama-se Lídia, que, como sabeis, é o nome de uma daquelas incorpóreas criaturas que serviram de musas e pretextos a Reis em algumas das suas odes. Esta informação era indispensável à compreensão do que se segue:

«E até poderia pôr Lídia como empregada, a atender os doentes, Lídia é inteligente, desembaraçada, em pouco tempo se faria capaz, com algum estudo deixaria de cometer erros de ortografia, livrava-se daquela vida de criada de hotel. Porém, isto nem é sequer sonhar mas simples devaneio de quem se entretém com o pensamento ocioso, Ricardo Reis não irá procurar trabalho, o melhor que tem a fazer é voltar ao Brasil, tomar o Highland Brigade na sua próxima viagem, discretamente restituirá The god of the labyrinth ao seu legítimo proprietário, nunca O’Brien saberá como este livro desaparecido tornou a aparecer. Chegou Lídia, deu as boas-tardes um pouco cerimoniosa, retraída, e não fez perguntas, foi ele quem teve de falar primeiro, Lá estive em Fátima, e ela condescendeu em querer saber, Ah, e então, gostou, como há-de Ricardo Reis responder, não é crente para ter experimentado êxtases e esforçar-se agora por explicar o que êxtases são, também não foi lá como simples curioso, por isso prefere resumir, generalizar, Muita gente, muito pó, tive de dormir ao relento, bem me tinhas avisado, o que valeu foi estar a noite quente, O senhor doutor não é pessoa para esses trabalhos, Foi uma vez para saber como era. Lídia já está na cozinha, faz correr a água quente para lavar a louça, em palavra e meia deu a entender que hoje não pode haver carnalidades, palavra que, evidentemente, não faz parte do seu vocabulário corrente, duvida-se mesmo que a use em ocasiões de eloquência máxima. Ricardo Reis não se aventurou a averiguar das razões do impedimento, seriam os conhecidos embaraços fisiológicos, seria a reserva duma sensibilidade magoada, ou conjunção imperiosa de sangue e lágrima, dois rios intransponíveis, mar tenebroso. Sentou-se num banco da cozinha, a assistir aos trabalhos domésticos, não que fosse costume seu, mas em sinal de boa vontade, bandeira branca que desponta por cima das muralhas a tentear os humores do general sitiante, […]»

Rebenta então a guerra civil em Espanha. Lídia tem um irmão marinheiro que é militante político de esquerda, comunista, para que fique tudo dito. Ela própria, mais por intuição de pobre do que por conhecimentos de ilustrada, partilha das ideias de Daniel, que é o nome desse seu irmão. Lídia fala a Ricardo Reis do massacre de duas mil pessoas pelo exército de Franco na praça de touros de Badajoz:

«[…] a praça de touros abriu as portas para receber os milicianos prisioneiros, depois fechou-se, é a fiesta, as metralhadoras entoam olé, olé, olé, nunca tão alto se gritou na praça de Badajoz, os minotauros vestidos de ganga caem uns sobre os outros, misturando os sangues, transfundindo as veias, quando já não restar um só de pé irão os matadores liquidar, a tiro de pistola, os que apenas ficaram feridos, e se algum veio a escapar desta misericórdia foi para ser enterrado vivo. De tais acontecimentos não soube Ricardo Reis senão o que lhe disseram os seus jornais portugueses, um deles, ainda assim, ilustrou a notícia com uma fotografia da praça, onde se viam, espalhados, alguns corpos, e uma carroça que ali parecia incongruente, não se chegava a saber se era carroça de levar ou de trazer, nela tinham sido transportados os touros ou os minotauros. O resto soube-o Ricardo Reis por Lídia, que o soubera pelo irmão, que o soubera não se sabe por quem, talvez um recado que veio do futuro, quando enfim todas as coisas puderem saber-se. Lídia já não chora, diz, Foram mortos dois mil, e tem os olhos secos, mas os lábios tremem-lhe, as maçãs do rosto são labaredas. Ricardo Reis vai para consolá-la, segurar-lhe o braço, foi esse o seu primeiro gesto, lembram-se, mas ela furta-se, não o faz por rancor, apenas porque hoje não poderia suportá-lo. Depois, na cozinha, enquanto lava a louça suja acumulada, desatam-se-lhe as lágrimas, pela primeira vez pergunta a si mesma o que vem fazer a esta casa, ser a criada do senhor doutor, a mulher-a-dias, nem sequer a amante porque há igualdade nesta palavra, amante, amante, tanto faz macho como fêmea, e eles não são iguais, e então já não sabe se chora pelos mortos de Badajoz, se por esta morte sua que é sentir-se nada. Lá dentro, no escritório, Ricardo Reis não suspeita o que se está passando aqui. Para não pensar nos dois mil cadáveres, que realmente são muitos, se Lídia disse a verdade, abriu uma vez mais The god of the labyrinth, ia ler a partir da marca que deixara, mas não havia sentido para ligar com as palavras, então percebeu que não se lembrava do que o livro contara até ali, voltou ao princípio, recomeçou, O corpo, que foi encontrado pelo primeiro jogador de xadrez, […]»

Objectareis agora: «Muito bem, aceitemos, à vista das provas apresentadas, que Herbert Quain realmente existiu. Mas falta ainda a prova final. Sabe o senhor José Saramago onde está o livro que ele escreveu?» Tenho resposta para esta interpelação. Em primeiro lugar, recordo que só temos notícia da existência de dois exemplares de The god of the labyrinth, aquele que Borges leu e aquele que Ricardo Reis levou da biblioteca do Highland Brigade. Do primeiro não se me podem pedir contas. Tanto quanto se sabe, não foi encontrado na biblioteca de Jorge Luís Borges. Quanto ao segundo exemplar, esse sim, estou em condições de poder dizer-vos o que lhe sucedeu:

«Estavam no quarto, Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa cadeira. Anoitecera por completo. Meia hora passou assim, ouviram-se as pancadas de um relógio no andar de cima, É estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembrava deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter ouvido pela primeira vez. Fernando Pessoa tinha as mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de cabeça baixa. Sem se mexer, disse, Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa-de-cabeceira buscar The god of the labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo, Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar do desgosto de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer, E esse livro, para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma.»

Creio ter apresentado provas suficientes da existência real de Herbert Quain. Faltou-me, materialmente falando, a prova que nos faria a reconhecer em Quain essa qualidade de autor, isto é, um livro chamado The god of de labyrinth. Lamento a minha insuficiência. E lamento mais ainda que já seja demasiado tarde para chamar a este tribunal as testemunhas mais idóneas: Ricardo Reis e Jorge Luis Borges.

Permita-se-me ainda um último comentário. O facto indesmentível de Ricardo Reis ter tido em seu poder o livro de Quain autorizou-me a vir a Bérgamo participar num colóquio sobre o autor de Ficciones. Suponho ter ficado igualmente demonstrado que Borges não tinha uma informação completa sobre um escritor que ele supôs ter apenas imaginado e sobre o livro que lhe atribuiu. Devemos esperar tudo, principalmente o que nos parecer impossível, quando heterónimos, pseudónimos e similares se põem a viver por sua própria conta. Dividida entre o respeito que deve ao que Borges escreveu sobre Quain e o testemunho definitivo de Ricardo Reis, a cidade de Bérgamo não saberá, neste momento, o que pensar. Dêmos tempo ao tempo, esperemos que as paixões acalmem. A verdade acabará por triunfar.

José Saramago»

Legenda: imagem do filme O Ano da Morte de Ricardos Reis de João Botelho