Em Janeiro de 1971 o livro Deste Mundo e do Outro de José Saramago custou-me 20 escudos, tal como se pode ver na 1ªpágina, canto superior direito, escrito, a lápis pelo livreiro.
Eu passava a saber que, para além de poeta, Saramago era um cronista. O volume reúne crónicas
publicadas em A Capital e no Jornal do Fundão.
É neste volume que surge
a primeira dedicatória à escritora Isabel da Nóbrega.
Numa carta, datada de 7 de Junho de 1968, Saramago escreve a José Rodrigues Miguéis:
« A minha falta
de notícias, essa, liga-se a problemas de ordem particular que me têm posto o
juízo em água. Tanto tempo andei a dar na ponta de uma agulha, que por fim
acabei por me empalar nela… Se um tal estado e uma tal situação são compatíveis
com a disponibilidade de espírito necessária para escrever cartas – deixo isso
ao seu critério… Não queira saber o que tem sido (e continua a ser) a minha
vida!»
Volto às cartas de Saramago para Miguéis:
«E peço-lhe que não faça caso da aridez desta carta: ontem deu-me para recordar o meu avô camponês – e fiquei assim: amargo. Felizmente para a literatura portuguesa deu crónica… Manha de literato, defeito de escriba: tudo acaba por se transformar em literatura…»
Também por um comovente
discurso em Estocolmo com o Prémio Nobel como pano de fundo.
Da crónica de Josefa:
«Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne e
do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este Mundo e não curaste de saber o
que é o Mundo. Chegas ao fim da vida, e o Mundo ainda é, para ti, o que era
quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não
fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal, a que em cinco
minutos se dá a volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida.»
Da crónica de
Jerónimo:
«Mas a imagem
que me não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso,
como quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas,
nesta altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda
não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a
palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu
quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a
comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a
memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a
interrogacão das estrelas. Só isto — e também o gesto que de repente me põe de
pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo.»
«O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de
morrer!»
«Bem sei que os tempos, aqui para nós, não vão para crónicas.
Dividido entre o título da primeira página e o boletim meteorológico (ou não9,
entre as notícias do estrangeiro e as novidades locais – o leitor afasta os
olhos carregados de preocupações ou com bilhete para as evasões possíveis.
Crónicas, que são? Pretextos ou testemunhos? São o que podem ser…» (página 49).
Uma crónica notável, O Sapateiro Prodigioso que, em findar de texto fica assim retratado:
«É um homem interessado que vive numa aldeia
e tem uma loja com um horizonte de plátanos que se arrepiam à noite, quando o
céu se cobre de estrelas. (página 24).
Só eu era um freguês de todas as horas.» (página 22)
Outras crónicas, outros sublinhados:
«Ninguém sabe nada de si antes da acção em que tiver de
empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele não se move Não
conhecemos o amor antes do amor.» (página 11).
«A história das pessoas é feita de lágrimas, alguns risos, uma tantas pequenas alegrias e uma grande dor final.» (página 21).
«Estarmos vivos é já em si uma vitória. A vida é
breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver.» (página 39).
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