sexta-feira, 28 de outubro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Em Janeiro de 1971 o livro Deste Mundo e do Outro de José Saramago custou-me 20 escudos, tal como se pode ver na 1ªpágina, canto superior direito, escrito, a lápis pelo livreiro.

Eu passava a saber que, para além de poeta, Saramago era um cronista. O volume reúne crónicas publicadas em A Capital e no Jornal do Fundão.

É neste volume que surge a primeira dedicatória à escritora Isabel da Nóbrega.

Numa carta, datada de 7 de Junho de 1968, Saramago escreve a José Rodrigues Miguéis:

 « A minha falta de notícias, essa, liga-se a problemas de ordem particular que me têm posto o juízo em água. Tanto tempo andei a dar na ponta de uma agulha, que por fim acabei por me empalar nela… Se um tal estado e uma tal situação são compatíveis com a disponibilidade de espírito necessária para escrever cartas – deixo isso ao seu critério… Não queira saber o que tem sido (e continua a ser) a minha vida!»

 Neste livro encontram-se as evocações da avó Josefa (página 25), do avô Jerónimo (página 28) que, aquando do primeiro Discurso de Estocolmo na entrega do Prémio Nobel, utilizará, como esteio, no comovente discurso que, então, proferiu.

Volto às cartas de Saramago para Miguéis:

«E peço-lhe que não faça caso da aridez desta carta: ontem deu-me para recordar o meu avô camponês – e fiquei assim: amargo. Felizmente para a literatura portuguesa deu crónica… Manha de literato, defeito de escriba: tudo acaba por se transformar em literatura…» 

Também por um comovente discurso em Estocolmo com o Prémio Nobel como pano de fundo.

Da crónica de Josefa:

«Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este Mundo e não curaste de saber o que é o Mundo. Chegas ao fim da vida, e o Mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal, a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida.»

Da crónica de Jerónimo:

«Mas a imagem que me não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso, como quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas, nesta altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a interrogacão das estrelas. Só isto — e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo.»

 Ainda o grande lamento da avó Josefa:

«O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!» 

 São notáveis as crónicas de José Saramago:

«Bem sei que os tempos, aqui para nós, não vão para crónicas. Dividido entre o título da primeira página e o boletim meteorológico (ou não9, entre as notícias do estrangeiro e as novidades locais – o leitor afasta os olhos carregados de preocupações ou com bilhete para as evasões possíveis. Crónicas, que são? Pretextos ou testemunhos? São o que podem ser…» (página 49).

Uma crónica notável, O Sapateiro Prodigioso que, em findar de texto fica assim retratado: 

«É um homem interessado que vive numa aldeia e tem uma loja com um horizonte de plátanos que se arrepiam à noite, quando o céu se cobre de estrelas. (página 24).

 «O meu sapateiro tinha muitos amigos, mas as horas da visita variavam consoante a posição social de cada um. O médico nunca estava quando lá ia um pé mal calçado; o prior não passava da porta; os lavradores da terra evitavam encontrar-se com inimigos da estrema vizinha, e diziam coisas graves e profundas, ou bisbilhotices de meia-porta, enquanto ponderosamente iam remexendo nos bolsos do colete.

Só eu era um freguês de todas as horas.» (página 22)

 Outras crónicas, outros sublinhados:

«Ninguém sabe nada de si antes da acção em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele não se move Não conhecemos o amor antes do amor.» (página 11).

«A história das pessoas é feita de lágrimas, alguns risos, uma tantas pequenas alegrias e uma grande dor final.» (página 21).

«Estarmos vivos é já em si uma vitória. A vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver.» (página 39).

 «Não sei o que cá faço, e é importante que o saiba. Mas mais importante é fazer.» (página 44).

 «Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.»(página 53)

 «Ora, a vida é feita de pequenas e minúsculas tarefas. Escrever é uma delas.» (página 146)

 O meu velho livrinho da Arcádia está repleto de sublinhados.

 Por mister difícil, são escassos, entre nós, os verdadeiros cultores da crónica de jornal.

 Saramago, com este livro, mostrava que era um cronista de mão cheia. 

 E assim me aconteceu.

 Ou como o editor sobre este livro, colocou palavras de Mário Sérgio nas badanas de A Bagagem do Viajante:

 «Irei agora pôr Deste Mundo e do Outro naquele pedaço de estante onde vivem os livros que tenho de ver todos os dias, de tocar e folhear todos os dias e de ler nem que seja apenas um parágrafo.»

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