quarta-feira, 19 de outubro de 2022

UM SÍTIO ONDE POUSAR A CABEÇA


Em Lisboa, desde a madrugada que chove torrencialmente.

Há dez anos ficávamos a saber que Manuel António Pina decidira ir poetizar e fumar cigarrilhas sabe-se lá para onde.

Nem o seu grande amigo e seu excelente biógrafo Álvaro Magalhães sabe onde ele está.

Claro que temos ali os seus poemas, as suas crónicas, todas as suas palavras mas porra!, não é bem a mesma coisa.

A sua presença faz-nos muita falta!

Como um dia disse:

«Os Livros que li foram importantíssimos para minha escrita, as maiores emoções – desastres, mortes, amores fatais, foi em livros que li que vivi.»

Pina gostava de livros, gostava de os escrever, gostava de os ler, gostava que fossem objectos bonitos e pensava em tudo para que isso acontecesse.

Na página 297 de Para Quê Tudo Isto?, Álvaro Magalhães lembra:

«Era um poeta de produção escassa, contava os poemas para saber se chegavam para compor uma lombada de livro que se visse. Também se preocupava com aspetos invulgares, entrando em guerra com as páginas, as pares e as ímpares: «Fiz poemas de propósito para estarem em determinado sítio dos meus livros. Por exemplo, quando um poema é um bocadinho longo, e ocupa mais do que uma página par (plano da esquerda) e acabe numa página ímpar (plano da direita). Há uma respiração que é preciso ter em conta.»

O seu primeiro poema, incluído nesse livro com o título, logo isso um outro poema, «Ainda Não é Fim Nem o Princípio do Mundo Calma é Apenas Tarde» tem como primeiro verso: «Os tempos não vão bons para os mortos».

Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço no entanto
o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo de mais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.

Continua a chover torrencialmente em Lisboa.

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