Ia arrumar o livro na estante mas ocorreu-me que ainda há, pelo menos, uma crónica que merece a sua transcrição. Mas, claro que o importante é ler o livro. Durante a sua leitura pode verificar-se como, aqui e ali, já se encontram sinais do que viria a ser a extraordinária escrita de José Saramago. Algo que lhe deu um Nobel e faz dele um dos mais importantes escritores de língua portuguesa. Uma subida a pulso, sobre pedras e pedrinhas, e um jornal que em 1992, e ainda faltavam seis anos para o Nobel, «escreveu que o meu triunfo internacional se devia ao Partido Comunista e a Pilar. Isso está escrito. Coitado do Partido, que nem sequer me deu emprego quando em 1975 fiquei sem trabalho.»
A INVEJA É CEGA, concluiu Saramago conversando com Juan Arias.
A crónica intitula-se As
Palavras e tem uma forte frase final: «AS PALAVRAS BOAS E MÁS. O TRIGO E O
JOIO. MAS SÓ O TRIGO DÁ PÃO.»
«As palavras são
boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As
palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas,
vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos,
não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans
publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras
aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas
ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os
cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e
inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar
o que fazem. Há muitas palavras.
E há os discursos,
que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma
precária sintaxe, até o prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se
comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou
se dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e
conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas
e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis,
são pintadas de tinta de impressão – e por essa via entram na imortalidade do
Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente da junta afixa o discurso que abriu a
torneira do marco fontanário. E as palavras escorrem tão fluidas como o
«precioso líquido». Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos
joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um
coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho
envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num
murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão: tenores e
tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos
enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E
tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades
solares.
Porque as palavras
deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não oiça outra palavra.
A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra é erva fresca e verde
que cobre os dentes do pântano. A palavra não mostra. A palavra disfarça.
Daí que seja
urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara. Daí que as
palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí que a palavra só
valha o que vale o silêncio do ato.
Há, também, o
silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta,
examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra
negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre
ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o
joio. Mas só o trigo dá pão.»
Legenda: fotografia do El País
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