Ao contrário de
alguns que garantem ter sido atribuído à Arte, seja qual for a forma pela qual
ela se manifesta, um especial desígnio transformador do Mundo, eu acho que ela
é absolutamente neutral.
Gabriel Celaya bem
podia clamar que “a Poesia é uma arma carregada de futuro”, mas tal não impediu
que fossem escritos tantos poeminhas suaves que não passaram de algodão doce,
com muito mais saudades do passado do que do futuro…
José Mário Branco e o
GAC gritaram bem alto que “a cantiga é uma arma”, mas não puderam evitar que,
pela voz dos “pimbas”, ela se tivesse transformado numa mera bisnaguinha de
Carnaval, através de pirosas cantiguinhas que, todavia, nenhum de nós
desdenhará cantar se for apanhado numa das festas do “querido mês de Agosto”,
tiver um tachinho de enchidos variados à sua frente e já for na décima
primeira ou na décima segunda imperial… E até se dançam em comboio, se
necessário for… Eu que o diga…
Woody Guthrie foi
livre de escarrapachar numa das suas guitarras a frase “This Machine Kills Fascists”,
mas a verdade é que, infelizmente, nem um só deles terá morrido apenas por obra
e graça dos seus acordes.
Nos anos 20 do século
passado o russo Dziga Vertov bem podia jurar a pés juntos que a sua câmara de
filmar era um “olho” que só captava a “verdade” (“Kino-Pravda”, assim lhe
chamaram…), mas quase em simultâneo, no outro lado do oceano, florescia em
Hollywood um novo sistema de produção em cadeia que mais não era que uma
autêntica “fábrica de sonhos”, como à época lhe chamou Ilia Ehrenburg, com filminhos
que, passado quase um século, ainda hoje nos deliciamos a ver.
Não Caros Amigos, a
Arte, por si só, não é nem “revolucionária” nem “conservadora”.
Com recurso à mesma
forma de Arte poderemos passar uma mensagem e o seu contrário… Uma ideia e o seu
inverso… Uma visão do Mundo e o seu oposto… Despertar consciências para a
ação social e política ou fazê-las adormecer profundamente…
É que há uma mente e
uma mão humana por detrás de qualquer trabalho que seja considerado como
“Arte”.
A “produzir” a Arte (ou a encomendá-la…) está alguém – o suposto “Artista” – que tem “princípios”, “valores”, uma “visão do Mundo”, numa palavra uma “Ideologia” que pode estar interessado, ou não, em veicular através da sua “obra de Arte”. E a eficácia dessa mensagem dependerá sempre do “génio do Artista” e da nossa disponibilidade para a apreender…
Mas esta lengalenga
pseudo-teórica vem a propósito de quê, perguntar-me-ão vocês nesta altura, com
toda a razão…?
É simples: dei comigo
a pensar em tudo isto quando vi os murais existentes em Tinnura, na Sardenha,
poucos dias após ter visitado os de Orgosolo, a que fiz referência no meu
último texto .
Aqueles que
tiveram a paciência de ler esse texto recordar-se-ão que identifiquei os murais
de Orgosolo como sendo “Arte de intervenção”, que julgo ter ficado bem
ilustrada através das fotografias que acompanharam o referido texto.
Pois bem, a aldeia de
Tinnura, a menos de 100 quilómetros de distância de Orgosolo, também
possuí os seus murais, e não são poucos.
Mas enquanto em Orgosolo se denunciava a pobreza do meio rural, a exploração sofrida por quem se dedicava à agricultura e à pastorícia e o enorme esquecimento e abandono a que essa região era votada por parte do Poder Central, Tinnura oferece-nos uma visão idílica e nostálgica desse mesmo meio rural.
Mas atenção: ao contrário de Orgosolo, em relação à qual obtive alguma informação, quase nada encontrei, em livro ou na “net”, a propósito de Tinnura e dos seus murais… Apenas fiquei a saber que a sua execução se iniciou já no presente século XXI e que, maioritariamente, são obra de um só pintor, o que, de resto, se percebia facilmente. Pintora, neste caso, porque terá sido uma tal Pinna Monne quem os desenhou.
Pode ser que esse
mundo edílico retratado nos murais de Tinnura tenha realmente existido… Que as
pastagens fossem férteis e abundantes… Que ninguém, nesse passado já longínquo,
tivesse passado fome e tido qualquer dificuldade em encontrar um trabalho digno
e justamente remunerado. Que os camponeses não fossem explorados e os produtos
da terra fossem pagos a um preço justo. Que existisse Habitação decente para
todos e que a Saúde, o Ensino, a Justiça e por aí fora funcionassem de maneira
a merecer o reconhecimento dos vindouros, tão claramente documentado nos murais
da terra.
E que, por isso
mesmo, o orgulho das gentes de Tinnura seja amplamente justificado…
Conhecendo um
pouquinho a História da Sardenha, permito-me duvidar que a vida em Tinnura
tivesse sido assim tão cor-de-rosa como a pintaram, mas enfim… Não é isso que
me traz aqui hoje…
O que me interessa
realçar é que a mesma forma de Arte – o Mural – deu origem a obras e a
mensagens completamente distintas em Orgosolo e em Tinnura, o que ilustra bem
aquilo que comecei por vos dizer, esperando eu que, com este exemplo real, me
seja então perdoado esse devaneio introdutório…
Texto e fotografias de Luís Miguel Mira
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