Já vos disse várias
vezes e não me canso de o repetir…
Para os parcos
conhecimentos que tenho, em muito contribuiu, ainda assim, o Cinema.
O Cinema levou-me a
belíssimos lugares longínquos. Deu-me a conhecer romances, peças de teatro,
escritores, músicas e músicos, lugares e factos históricos relevantes, enfim,
um sem número de coisas magníficas que depois pude aprofundar, ou não,
consoante a vontade e a disponibilidade.
Mas o Cinema não se
limitou a abrir-me os olhos… Ajudou-me também a fechá-los e a sonhar com
muitas das coisas boas que algum dia gostaria de fazer na minha vida, tais como
poder viajar e conhecer o Mundo.
E quando necessário,
o Cinema foi também um fiel companheiro nas horas mais difíceis. Tal como muito
boa gente, quantas vezes fui eu ao Cinema para, durante esse curto pedaço de
tempo, procurar arejar a cabeça dos problemas e das realidades da vidinha…
Quantas vezes recorri eu a esse porto de abrigo seguro para me proteger das tempestades…
Quantas vezes levei
eu aos lábios essa taça para tentar fazer com que uma embriaguez qualquer me
levasse para fora das realidades durante uma hora e meia, ou um pouco mais, se
tivesse sorte…
Por muito graves que
pudessem ter sido os meus problemas, após um filme que me tivesse sabido
bem voltava sempre à tona da vida com um sorriso no rosto.
Mas sinto que já me
estou a desviar demasiado da rota prevista, pelo que haverá que retomar o fio à
meada e explicar por que motivo tive eu de evocar o Cinema.
É que não fora o Cinema e muito dificilmente teria ouvido falar de Orgosolo, um lugarejo perdido nas montanhas do maciço central da Sardenha, numa região que se chama Barbaglia. Devido ao seu isolamento e difícil acesso, estas montanhas em torno de Orgosolo foram, durante muitas décadas, local privilegiado para o esconderijo de criminosos, bandidos e foragidos de toda a espécie.
Foi pela mão de
Vittorio De Seta (não confundir com o homónimo De Sica…) que cheguei a
Orgosolo.
De Seta é um daqueles
bons realizadores que, como Ermanno Olmi, com quem tem algumas afinidades,
nunca procuraram os holofotes da fama e sempre foram fiéis a um conceito muito
próprio de Cinema, do qual nunca se desviaram.
Siciliano natural de
Palermo, estudou arquitetura, mas acabou por dedicar a sua vida a registar para
a posteridade os gestos da vida quotidiana de trabalho dos mais pobres e mais
desfavorecidos. Os pescadores, os camponeses, os mineiros da Sicília e os
pastores da Sardenha são exemplos disso, em documentários de muito curta
duração, quase sempre sem palavras para além de um pequeno texto introdutório.
Para quem se interessar, encontram-se disponíveis no YouTube.
Em 2015 a nossa
Cinemateca dedicou um pequeno ciclo a De Seta, e foi aí que vi pela primeira
vez “Banditi a Orgosolo” (1961), a sua primeira longa-metragem de ficção,
digamos assim, porque a vertente documental continua a ser predominante.
É um filme belíssimo,
desta vez a preto e branco (todos os seus anteriores documentários são a
cores), de um neorrealismo tardio, quase todo filmado em exteriores na aldeia e
nas montanhas de Orgosolo, com recurso aos próprios habitantes da região, os
quais não só participaram enquanto atores como também colaboraram na construção
dos diálogos.
O tema central do filme acaba por ser a miséria de toda aquela região e dos camponeses e pastores que nela procuram sobreviver, através da história de um pobre pastor que, por força das circunstâncias e por se recusar a ser um delator de bandidos, se vê obrigado a transformar-se, ele próprio, num bandido.
É magnifica a maneira
como De Seta articula todos os elementos que tem ao seus dispor, ao ponto de
não conseguirmos perceber se os principais personagens do seu filme são os
seres humanos, os animais ou a própria paisagem, tal a força que todos eles
têm. Foi a propósito deste filme que Martin Scorsese, no seu conhecido
documentário sobre o Cinema Italiano, afirmou ser De Seta “um antropólogo
que se expressou com a voz de um poeta”.
Mas sinto que, uma
vez mais, estou a divagar e que não foi para falar de Cinema que aqui vim hoje.
A verdade é que este
filme me fez desejar saber um pouco mais acerca de Orgosolo e foi no âmbito
dessas pesquisas que fiquei a saber, não só da pequena história dos bandidos de
que atrás vos falei, mas também da existência dos murais que hoje tornam
célebre este lugarejo. Parece que foram inventariadas em toda a Sardenha 250
pinturas murais, 150 das quais se encontram em Orgosolo.
A origem destes
murais é curiosa…
Tal como sucedeu na
Sicília, as populações das regiões mais desfavorecidas da Sardenha demonstraram
sempre uma certa animosidade face ao “Poder Central” por se terem sentido
votadas ao ostracismo durante décadas. Nos anos que se seguiram ao final da II
Grande Guerra, enquanto na Metrópole se vivia o célebre “milagre italiano” de
recuperação económica, com forte criação de emprego e melhorias gerais ao nível
dos salários, da Habitação, da Saúde e da Educação, muitas destas regiões
rurais das ilhas foram mantidas num relativo estado de pobreza e estagnação, bem
percetíveis no filme de De Seta .
Ao longo dos anos
foram vários os sinais de insatisfação e de rebelião das gentes de Orsosolo
contra o tal “Poder Central”, mas a sua demonstração mais evidente parece ter
sido o que ficou conhecido como a “revolta de Pratobello”, em 1969, que
consistiu numa manifestação organizada de toda a população contra a instalação
de uma base militar nos campos de pastorícia comunitária nas imediações da
aldeia.
Estas manifestações
tiveram algum impacto a nível nacional e o projeto acabou por ser posto na
gaveta.
Foi, precisamente,
pela atenção que esta batalha suscitou a nível nacional que uma “troupe” de
teatro de intervenção de Milão de inspiração anarquista, que dava pelo nome de
“Dionisio”, se deslocou a Orgosolo e, entre outras “performances”, deixou na
aldeia um primeiro mural que representava o mapa de Itália com um grande ponto
de interrogação no lugar onde deveria estar localizada a Sardenha, para
evidenciar a falta de interesse que o Governo Central devotava à ilha.
Este primeiro mural
suscitou a atenção, mas não teve sequencia, até que em 1975 Francesco del
Casino, um comunista de Siena que já há alguns anos exercia na aldeia a
profissão de professor de desenho resolveu desafiar os seus alunos a fazerem
pinturas alusivas à comemoração dos 30 anos da Resistência antifascista e da
derrota do nazismo. Mas em lugar de serem feitas em papel e posteriormente
expostas, essas pinturas seriam feitas em mural, para chamarem a atenção de
mais gente e perdurarem no tempo.
A iniciativa foi um
sucesso e a partir daí Francesco del Casino e os seus sucessivos alunos não
mais pararam de pintar as paredes das casas da aldeia. Embora, com o passar do
tempo, outros pintores locais como Pasquale Buesca e Vincenzo Floris se lhes
tenham vindo juntar, terão sido eles os responsáveis pela maior parte dos 150
murais que foram, desde então, desenhados na aldeia.
Os temas destes
murais são variados, mas quase todos eles têm um ponto em comum: serem
mensagens políticas contra o colonialismo, a guerra e as injustiças sociais,
evocando também os prolemas do quotidiano da região, tais como a emigração, a
pastorícia, a educação, a saúde e a necessidade de preservação das tradições
locais. Um curioso mural apela à emancipação das mulheres evocando a morte de
129 mulheres trabalhadoras, na sua maioria italianas, num incêndio ocorrido em
1908 numa fábrica em Nova Iorque.
Não faltam,
igualmente, apelos à independência da Sardenha e homenagens a figuras
históricas nacionais, tais como Garibaldi, Antonio Gramsci e Giovanni Maria
Angioy, que vim a saber tratar-se de um herói local da luta contra os
privilégios dos antigos senhores feudais
Mas nas paredes de
Orgosolo a solidariedade internacional dá provas de estar bem viva porque
muitos são os murais que nada têm a ver com a região e se referem à Bolívia e a
Che Guevara, ao Vietname, ao Chile de Salvador Allende, ao conflito
israelo-palestiniano, ao 11 de Setembro em Nova Iorque, à Guerra do Iraque e
até a simples mensagens antiguerra com recurso à figura de Charlot. E não deixa
de ser curiosa a existência de um mural dedicado a Larzac, localidade no Sul de
França que, entre 1971 e 1981, se bateu, igualmente, contra a expansão de uma
base militar lá existente.
E ainda existem
outros murais que mais não parecem ser que simples homenagens a pintores
célebres: Diogo Rivera, como não podia deixar de ser, enquanto precursor do
mural de intervenção no México, juntamente com Orozco e Siqueiros, mas também
Frida Kahlo, Picasso, Fernand Léger e Miró.
Quanto a estilos,
há-os para todos os gostos nestas pinturas, do “Naif” ao Impressionismo, ao
Cubismo e ao Surrealismo…
De férias pela
Sardenha há poucos anos atrás, não poderia deixar de vir visitar esta aldeia e
os seus murais, e isto para grande desespero da minha Querida Mulher, que teria
preferido, mil vezes, ir espraiar-se junto às águas azul turquesa da
Costa Esmeralda ou pavonear-se com o “Jet-Set” na zona muito seleta de Porto
Cervo.
E ainda por cima em
“lua de mel”…!!! Quem se lembraria de ir, em “lua de mel”, para as montanhas de
Orgosolo, dizia-me ela…??? Só um doido com certeza, e fiquem sabendo que este
foi o epíteto mais suave de todos com que me brindou…
Deixo-vos uma
extensíssima reportagem fotográfica, uma vez que as pinturas têm de ser
apresentadas em duplicado: em grande plano para serem percetíveis e em plano
mais afastado para que se visualize o seu enquadramento urbano.
Para quem, como é o
meu caso, não domine o italiano nem a História de toda esta região, alguns
destes murais têm mensagens dificilmente decifráveis. Mas valem pela
pintura…
Quanto a Orgosolo em
si, trata-se de uma aldeia simples, sem qualquer outro tipo de apelo turístico
que não sejam os seus murais, a simpatia das suas gentes e a paisagem que a
rodeia. Não se espere encontrar aqui, porta sim porta sim como tantas vezes
sucede nestas aldeias turísticas, as lojinhas de “souvenirs” apinhadas de
“T-Shirts”, canecas e “imanes” para pendurar nos frigoríficos. Não que não
existam algumas, mas são mais discretas…
PS:
As informações que
vos dou relativas à origem dos murais foram retiradas deste pequeno livro que
vos mostro, “Les Murales de Orgosolo”, de autor desconhecido, que comprei na
aldeia.
TEXTO E FOTOGRAFIAS DE LUÍS MIGUEL MIRA
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