quinta-feira, 8 de setembro de 2022

ORGOSOLO, SARDENHA


Já vos disse várias vezes e não me canso de o repetir…

Para os parcos conhecimentos que tenho, em muito contribuiu, ainda assim, o Cinema.

O Cinema levou-me a belíssimos lugares longínquos. Deu-me a conhecer romances, peças de teatro, escritores, músicas e músicos, lugares e factos históricos relevantes, enfim, um sem número de coisas magníficas que depois pude aprofundar, ou não, consoante a vontade e a disponibilidade.

Mas o Cinema não se limitou a abrir-me os olhos…  Ajudou-me também a fechá-los e a sonhar com muitas das coisas boas que algum dia gostaria de fazer na minha vida, tais como poder viajar e conhecer o Mundo.

E quando necessário, o Cinema foi também um fiel companheiro nas horas mais difíceis. Tal como muito boa gente, quantas vezes fui eu ao Cinema para, durante esse curto pedaço de tempo, procurar arejar a cabeça dos problemas e das realidades da vidinha…

Quantas vezes recorri eu a esse porto de abrigo seguro para me proteger das tempestades… 

Quantas vezes levei eu aos lábios essa taça para tentar fazer com que uma embriaguez qualquer me levasse para fora das realidades durante uma hora e meia, ou um pouco mais, se tivesse sorte…

Por muito graves que pudessem ter sido os meus problemas, após  um filme que me tivesse sabido bem voltava sempre à tona da vida com um sorriso no rosto.

Mas sinto que já me estou a desviar demasiado da rota prevista, pelo que haverá que retomar o fio à meada e explicar por que motivo tive eu de evocar o Cinema.

É que não fora o Cinema e muito dificilmente teria ouvido falar de Orgosolo, um lugarejo perdido nas montanhas do maciço central da Sardenha, numa região que se chama Barbaglia. Devido ao seu isolamento e difícil acesso, estas montanhas em torno de Orgosolo foram, durante muitas décadas, local privilegiado para o esconderijo de criminosos, bandidos e foragidos de toda a espécie. 


Foi pela mão de Vittorio De Seta (não confundir com o homónimo De Sica…) que cheguei a Orgosolo.

De Seta é um daqueles bons realizadores que, como Ermanno Olmi, com quem tem algumas afinidades, nunca procuraram os holofotes da fama e sempre foram fiéis a um conceito muito próprio de Cinema, do qual nunca se desviaram.

Siciliano natural de Palermo, estudou arquitetura, mas acabou por dedicar a sua vida a registar para a posteridade os gestos da vida quotidiana de trabalho dos mais pobres e mais desfavorecidos. Os pescadores, os camponeses, os mineiros da Sicília e os pastores da Sardenha são exemplos disso, em documentários de muito curta duração, quase sempre sem palavras para além de um pequeno texto introdutório. Para quem se interessar, encontram-se disponíveis no YouTube.

Em 2015 a nossa Cinemateca dedicou um pequeno ciclo a De Seta, e foi aí que vi pela primeira vez “Banditi a Orgosolo” (1961), a sua primeira longa-metragem de ficção, digamos assim, porque a vertente documental continua a ser predominante.

É um filme belíssimo, desta vez a preto e branco (todos os seus anteriores documentários são a cores), de um neorrealismo tardio, quase todo filmado em exteriores na aldeia e nas montanhas de Orgosolo, com recurso aos próprios habitantes da região, os quais não só participaram enquanto atores como também colaboraram na construção dos diálogos. 

O tema central do filme acaba por ser a miséria de toda aquela região e dos camponeses e pastores que nela procuram sobreviver, através da história de um pobre pastor que, por força das circunstâncias e por se recusar a ser um delator de bandidos, se vê obrigado a transformar-se, ele próprio, num bandido. 

É magnifica a maneira como De Seta articula todos os elementos que tem ao seus dispor, ao ponto de não conseguirmos perceber se os principais personagens do seu filme são os seres humanos, os animais ou a própria paisagem, tal a força que todos eles têm.  Foi a propósito deste filme que Martin Scorsese, no seu conhecido documentário sobre o Cinema Italiano, afirmou ser De Seta “um antropólogo que se expressou com a voz de um poeta”.

Mas sinto que, uma vez mais, estou a divagar e que não foi para falar de Cinema que aqui vim hoje.

A verdade é que este filme me fez desejar saber um pouco mais acerca de Orgosolo e foi no âmbito dessas pesquisas que fiquei a saber, não só da pequena história dos bandidos de que atrás vos falei, mas também da existência dos murais que hoje tornam célebre este lugarejo. Parece que foram inventariadas em toda a Sardenha 250 pinturas murais, 150 das quais se encontram em Orgosolo.

A origem destes murais é curiosa…

Tal como sucedeu na Sicília, as populações das regiões mais desfavorecidas da Sardenha demonstraram sempre uma certa animosidade face ao “Poder Central” por se terem sentido votadas ao ostracismo durante décadas. Nos anos que se seguiram ao final da II Grande Guerra, enquanto na Metrópole se vivia o célebre “milagre italiano” de recuperação económica, com forte criação de emprego e melhorias gerais ao nível dos salários, da Habitação, da Saúde e da Educação, muitas destas regiões rurais das ilhas foram mantidas num relativo estado de pobreza e estagnação, bem percetíveis no filme de De Seta .

Ao longo dos anos foram vários os sinais de insatisfação e de rebelião das gentes de Orsosolo contra o tal “Poder Central”, mas a sua demonstração mais evidente parece ter sido o que ficou conhecido como a “revolta de Pratobello”, em 1969, que consistiu numa manifestação organizada de toda a população contra a instalação de uma base militar nos campos de pastorícia comunitária nas imediações da aldeia.  

Estas manifestações tiveram algum impacto a nível nacional e o projeto acabou por ser posto na gaveta.

Foi, precisamente, pela atenção que esta batalha suscitou a nível nacional que uma “troupe” de teatro de intervenção de Milão de inspiração anarquista, que dava pelo nome de “Dionisio”, se deslocou a Orgosolo e, entre outras “performances”, deixou na aldeia um primeiro mural que representava o mapa de Itália com um grande ponto de interrogação no lugar onde deveria estar localizada a Sardenha, para evidenciar a falta de interesse que o Governo Central devotava à ilha.

Este primeiro mural suscitou a atenção, mas não teve sequencia, até que em 1975 Francesco del Casino, um comunista de Siena que já há alguns anos exercia na aldeia a profissão de professor de desenho resolveu desafiar os seus alunos a fazerem pinturas alusivas à comemoração dos 30 anos da Resistência antifascista e da derrota do nazismo. Mas em lugar de serem feitas em papel e posteriormente expostas, essas pinturas seriam feitas em mural, para chamarem a atenção de mais gente e perdurarem no tempo.

A iniciativa foi um sucesso e a partir daí Francesco del Casino e os seus sucessivos alunos não mais pararam de pintar as paredes das casas da aldeia. Embora, com o passar do tempo, outros pintores locais como Pasquale Buesca e Vincenzo Floris se lhes tenham vindo juntar, terão sido eles os responsáveis pela maior parte dos 150 murais que foram, desde então, desenhados na aldeia.

Os temas destes murais são variados, mas quase todos eles têm um ponto em comum: serem mensagens políticas contra o colonialismo, a guerra e as injustiças sociais, evocando também os prolemas do quotidiano da região, tais como a emigração, a pastorícia, a educação, a saúde e a necessidade de preservação das tradições locais. Um curioso mural apela à emancipação das mulheres evocando a morte de 129 mulheres trabalhadoras, na sua maioria italianas, num incêndio ocorrido em 1908 numa fábrica em Nova Iorque.

 Não faltam, igualmente, apelos à independência da Sardenha e homenagens a figuras históricas nacionais, tais como Garibaldi, Antonio Gramsci e Giovanni Maria Angioy, que vim a saber tratar-se de um herói local da luta contra os privilégios dos antigos senhores feudais 

Mas nas paredes de Orgosolo a solidariedade internacional dá provas de estar bem viva porque muitos são os murais que nada têm a ver com a região e se referem à Bolívia e a Che Guevara, ao Vietname, ao Chile de Salvador Allende, ao conflito israelo-palestiniano, ao 11 de Setembro em Nova Iorque, à Guerra do Iraque e até a simples mensagens antiguerra com recurso à figura de Charlot. E não deixa de ser curiosa a existência de um mural dedicado a Larzac, localidade no Sul de França que, entre 1971 e 1981, se bateu, igualmente, contra a expansão de uma base militar lá existente.  

E ainda existem outros murais que mais não parecem ser que simples homenagens a pintores célebres: Diogo Rivera, como não podia deixar de ser, enquanto precursor do mural de intervenção no México, juntamente com Orozco e Siqueiros, mas também Frida Kahlo, Picasso, Fernand Léger e Miró.

Quanto a estilos, há-os para todos os gostos nestas pinturas, do “Naif” ao Impressionismo, ao Cubismo e ao Surrealismo…

De férias pela Sardenha há poucos anos atrás, não poderia deixar de vir visitar esta aldeia e os seus murais, e isto para grande desespero da minha Querida Mulher, que teria preferido, mil vezes, ir espraiar-se junto às águas azul turquesa da  Costa Esmeralda ou pavonear-se com o “Jet-Set” na zona muito seleta de Porto Cervo.

E ainda por cima em “lua de mel”…!!! Quem se lembraria de ir, em “lua de mel”, para as montanhas de Orgosolo, dizia-me ela…??? Só um doido com certeza, e fiquem sabendo que este foi o epíteto mais suave de todos com que me brindou…

 Deixo-vos uma extensíssima reportagem fotográfica, uma vez que as pinturas têm de ser apresentadas em duplicado: em grande plano para serem percetíveis e em plano mais afastado para que se visualize o seu enquadramento urbano.

Para quem, como é o meu caso, não domine o italiano nem a História de toda esta região, alguns destes murais têm mensagens dificilmente decifráveis. Mas valem pela pintura…  

Quanto a Orgosolo em si, trata-se de uma aldeia simples, sem qualquer outro tipo de apelo turístico que não sejam os seus murais, a simpatia das suas gentes e a paisagem que a rodeia. Não se espere encontrar aqui, porta sim porta sim como tantas vezes sucede nestas aldeias turísticas, as lojinhas de “souvenirs” apinhadas de “T-Shirts”, canecas e “imanes” para pendurar nos frigoríficos. Não que não existam algumas, mas são mais discretas… 

PS:

As informações que vos dou relativas à origem dos murais foram retiradas deste pequeno livro que vos mostro, “Les Murales de Orgosolo”, de autor desconhecido, que comprei na aldeia.

 

TEXTO E FOTOGRAFIAS DE LUÍS MIGUEL MIRA 

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