A Obra Ao Negro
Marguerite Yourcenar
Tradução: António
Ramos Rosa, Luisa Neto Jorge e Manuel João Gomes
Colecção Ficção Universal nº 9
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Abril de 1998
Continuando no seu caminho, ficou Zenão de novo só. Cerca do meio-dia,
sentou-se para comer o pão, num talude de onde já se avistava a linha cinzenta
do mar.
Um caminhante munido de um grande bordão veio sentar-se ao pé dele. Era
um cego, que do seu alforge tirava também qualquer coisa para quebrar o jejum.
O médico admirou a habilidade com que aquele homem de olhos brancos se
desembaraçou da gaita-de-foles que trazia ao ombro, desatando a correia e
pousando delicadamente o instrumento sobre a relva.
O cego felicitava-se por o dia estar tão bom. Ganhava a vida fazendo
dançar os rapazes e raparigas na estalagem ou nos pátios das quintas; nessa
noite ia dormir a Heyst, aonde no domingo tocaria; seguiria depois para os
lados de Sluys: graças a Deus, havia sempre juventude bastante de quem auferir
lucro e mesmo, às vezes, prazer. Mynheer talvez não acreditasse, mas havia
mulheres que gostavam de cegos: não tinha nada que lamentar-se da desdita de já
não ver.
Como muitos outros cegos, também este usava e abusava da palavra ver:
via que Zenão era um homem na força da idade e que tinha educação; via que o
Sol estava ainda a meio do céu; via que quem ia a passar numa vereda por detrás
deles era uma mulher meio doente transportando uma canga de onde pendiam dois
baldes. Nem tudo, porém, era falso nessas gabarolices: foi ele quem primeiro se
apercebeu do deslizar de uma cobra por entre a erva. Chegou mesmo a tentar
matar com o pau o repugnante animal. Zenão deixou-o, depois de lhe ter feito a
esmola de um liarde e afastou-se no meio de ruidosas bênçãos.
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