quinta-feira, 15 de setembro de 2022

A CARNE AGARRADA AOS OSSOS

Deitei a tarde pela janela e fiquei só
com a linha onde a luz se suspendeu
num tom rosado, tão calmo, quase
artificial neste fim de Abril, a descer sobre
o azul da minha voz. Pus-me a fumar
por cima de um caderno, enchendo
e virando páginas, um punho a apoiar
este rosto agarotado e um dedo
passando pela boca que há muito
não se embeiça por sentidos razoáveis.

Não sei se tentava voltar aos braços
de alguma remota ilusão, se me fiquei
por um circuito de estilhaços ou qualquer
outra lesão silenciosa. Mais óbvios
todos os destinos, dói mais ao princípio:
ver como os dias vão saindo repetidos. E daí,
a repetição talvez seja só eu, esta pequena
intriga ou vago remorso que me escreve.

Não era como se tivéssemos muito
a esperar das ruas, mas saímos
e depressa demos com o labirinto de excessos
na noite que o corpo nos exigia. Os dois
à boleia do tempo, juntando mais
umas horas a esta idade que tresanda já
a maus hábitos, paixões sem interesse
e fantasias voltando a casa destruídas,
cada vez menos e menos inocentes.
Por aí a imaginação perdia
toda a confiança, dócil, foi-se ajoelhando
e enfrentou confissões ordinárias,
sepultando os sorrisos
que nos caíram entre os lábios.

Esquecemos tantas outras vidas.
Sentados de costas para a entrada,
no Saloio da 24, insististe que a vidinha,
enfim, lá tinha dado connosco. E que lugar
tão triste para o admitirmos, entre a fatia
de pizza, o rissol e os copos de plástico
que não foram suficientes para afastar-nos
da razão, nem sequer distrair os sinónimos
que chegam, às vezes, demasiado cedo,
quando o coração é um ódio
tão natural, uma forma de pedir
que não contem mais connosco.

Um tudo-nada comovidos, aguentou-nos
um silêncio que também já não era só nosso.
Arrumados para estatísticas:
eu levando um curso aos chutos vai agora
para uns cinco anos, e tu, diplomado
e num primeiro emprego, a seres pago
para gastares com a infelicidade
as incertezas que te restam. Os dois,
como é normal, mimando e entretendo
a carne agarrada aos ossos.

Diogo Vaz Pinto em Resumo: a poesia em 2009

Sem comentários: