sexta-feira, 31 de agosto de 2018

POSTAIS SEM SELO


No fundo, todos temos necessidade de dizer quem somos e que é que estamos fazendo e a necessidade de deixar algo feito, porque esta vida não é eterna e deixar coisas feitas pode ser uma forma de eternidade. Somos sobretudo a memória que temos de nós mesmos.

José Saramago

LÊ-SE SOMENTE PARA MELHOR VIVER


Agosto chega ao fim.

Como dizia o meu pai: «amanhã voltamos a ser gente».

Férias em Agosto, só lembro de as ter enquanto miúdo.

Quando comecei a trabalhar nunca escolhi o mês de Agosto para férias.

Os colegas agradeciam.

No entretento voltei a ouvir falar em livros para férias.

Ah! livros para férias!


Não há livros para férias, há livros para todo um ano.

Ler dá trabalho, é certo.

O destino dos livros para férias é regressarem a casa cheios de areia e não lidos.

Não é, porém, por falta de tempo que não se lê.

Agustina Bessa Luís, no seu Caderno de Significados, diz o que fazer com os livros para férias, ela, que a páginas 49, declarou que não gosta de férias:

«Um livro para férias não deve ser escolhido. O que se escolhe serve à personalidade, e as férias são o pretexto para sermos impessoais, fazer o que muitos fazem, ir para onde muitos vão. Pegue num livro que não pese mais de 200 gramas e leve-o consigo. Leia três páginas, esqueça-o na gare ou no banco das termas, na praia ou no restaurante, e aí, sobretudo, aí tenha a certeza que é o bom livro para férias; se você não tiver pena de o ter perdido».

Camilo Castelo Branco deixou escrito:


«A poderosa razão que o lavrador Roberto Rodrigues opunha para não mandar ensinar a ler o filho, era - que ele pai também não sabia ler, e mais arranjava
lindamente a sua vida. Esta vinha a ser a razão capital, reforçada por outras subalternas e praticamente bastante persuasivas.
- Se o rapaz souber ler – argumentava triunfantemente o idiota – assim que chegar a idade, às duas por três, fazem-no jurado, regedor, camarista, juiz ordinário, juiz de paz, juiz eleito. São favas contadas. Depois, enquanto ele vai à audiência ou à Camara, a Cabeçais, daqui uma légua, os criados e os jornaleiros ferram-se
a dormir a sesta de cangalhas à sombra dos carvalhos, e o arado fica também a dormir no rego. E ademais, isto de saber ler é meio caminho andado para asno e
vadio. E citava exemplos, personalizando meia dúzia de brejeiros que sabiam ler e eram mais asnos e vadios que os analfabetos.»


Terão razão os que dizem que não se vive para ler, lê-se somente para melhor viver?

Mas, agora, gostava de dizer que, durante muitos tempos de férias, havia um livro que ia sempre comigo: Cem Anos de Solidão do Gabriel Garcia Márquez.

Pegava-lhe sempre e ao acaso ia relendo esse livro fantástico centrado na imaginária terra de Macondo e das sete gerações da família Buendía, uma autêntica pérola do realismo mágico.

«Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos.»

FICOU TODO CHAREADO



Em que momento é que se zangou com o Cardoso Pires?

Começou muito cedo. Ele era um tipo muito consciencioso a escrever e mostrava-me sempre primeiro. Um dia ele estava a ler-me um texto e eu mostrei-me desinteressado, e ele disse: «Tu não estás a ligar nenhuma!» E eu respondi: «Não estou, porque não estou a gostar.» Ficou todo chateado. E depois ele chegou-se muito aos comunistas, para ter apoios, para ter público… Este último livro o Alexandra Alpha já nem li, e a Balada da Praia dos Cães é um disparate. Há um livrinho do cabo, um livrinho de memórias, bem não tem valor literário, mas é um documento muito mais giro que a Balada da Praia dos Cães.

E  como surgiu a ideia de fazer um livro a partir de um conjunto de cartas?

No tempo do fascismo, a epistolografia era considerada um género menor, mas como não havia censura às cartas, eu gostava muito, porque não tinha medo que mas abrissem. Escrevia tudo o que me apetecia. O Pacheco vs. Cesariny é um documento para quem quiser estudar uma certa época literária portuguesa. Literária e não só…

Mas as pessoas não se chatearam de lhes publicar as cartas?

Alguns sim. Mas eu não podia publicar as minhas cartas e as dos outros sem pôr os nomes. Isso sempre foi um hábito meu, dar o nome aos bois. Depois um dia apareceu o Listopad a dizer que nunca mais me ia escrever nada, porque eu podia publicar as cartas dele, e eu respondi-lhe que estivesse descansado, as cartas dele não tinham nenhum interesse literário. Só me interessava quando tinham um cheque lá dentro. Também, nunca eram mais de 100 ou 200 paus…

Legenda: José Cardoso Pires no Bar Americano no Cais do Sodré.

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A Sibila

Agustina Bessa-Luís
Guimarães Editores, Lisboa 1998


É esta a mais grandiosa história dos homens, a de tudo o que estremece, sonha, espera e tenta, sob a carapaça da sua consciência, sob a pele, sob os nervos , sob os dias felizes e monótonos, os desejos concretos, a banalidade que escorre das suas vidas , os seus crimes e as suas redenções, as suas vítimas e os seus algozes, a concordância dos seus sentidos com a sua moral. Tudo o que vivemos nos faz inimigos, estranhos, incapazes de fraternidade. Mas o que fica irrealizado, sombrio, vencido, dentro da alma mais mesquinha e apagada, é o bastante para irmanar esta semente humana cujos triunfos mais maravilhosos jamais se igualam com o que, em nós mesmos, ficará para sempre renúncia, desespero e vaga vibração. O mais veemente dos vencedores e o mendigo que se apoia num raio de sol , para viver um dia mais, equivalem-se , não como valores de aptidões ou de razão , não talvez como sentido metafísico ou direito abstracto, mas pelo que em si é a atormentada continuidade do homem, o que, sem impulso, fica sob o coração, quase sem esperança sem nome.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

NÃO SUPORTO A VERTIGEM


Carta de António José Saraiva para Óscar Lopes, datada de Amsterdão, Janeiro de 1972, e em que continua a manifestar o seu encantamento pela obra de Agustina Bessa-Luís. Antes já dissera que relendo algumas páginas de Agustina ficara tonto «como se ouvisse música de Beethoven.»

Quanto à Agustina gostaria que me desses as tuas razões Eu considero-a com Fernando Pessoa um dos dois escritores verdadeiramente geniais que Portugal produziu no século XX, e creio que todos os outros estão muito, mas muito baixo deles. Mais: para mim a Agustina é o maior escritor em prosa de toda a literatura portuguesa, talvez com excepção do Fernão Lopes (na parte em que este pode ser considerado como artista criador, como o João de Barros nunca foi). Eu não consigo ler a Agustina durante muito tempo porque não suporto a vertigem, e o mesmo me acontece com o Pessoa. Não entendo como a poder pôr abaixo do Aquilino. É um dos raríssimos pontos em que estou quase de acordo com o Sena: o Aquilino é um grande escritor menor, salvo no Malhadinhas e nas Terras do demo. É um artífice com muito talento, ao passo que a Agustina e o Pessoa são escritores-mediuns. Tem-se vontade de crer que algo a que chamaríamos Espírito os tocou, e nos toca para eles.

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Belíssima capa de Vitor Palla para o segundo romance publicado por Carlos de Oliveira e que nunca mereceu da parte do autor uma outra versão, tal como fez com as restantes obras.


Carlos de Oliveira, perante os seus livros, tinha uma permanente insatisfação.

«Escrever, reescrever, etc., uma espécie de teia que enreda o próprio escritor e a que é difícil escapar», disse numa entrevista a Maria Teresa Horta, A Capital 26 de Março de 1969.

Logo que o livro chegou às livrarias, a PIDE tratou de o apreender

Carlos de Oliveira renegou este seu livro e chegou a considerar que o livro não deveria fazer parte da sua obra.

Sou um admirador incondicional da obra de Carlos de Oliveira, da sua personalidade, predicados que dele fizeram um nome admirável no panorama da nossa literatura.

Considero Alcateia um bom romance, reli-o agora, e escapam-me os porquês das razões porque Carlos de Oliveira o deixou de considerar como livro seu.

A obra de Carlos de Oliveira ocupa na estante um pouco mais de um palmo de espaço, mas é todo um mundo que ali está. A sua presença é silenciosa mas ao mesmo tempo gritante.

Serenidade sempre foi uma palavra que resultou da leitura  que sempre fiz da poesia e da prosa de Carlos de Oliveira.

Como disse Mário Castrim:

«É muito difícil falar de Carlos de Oliveira porque, se falamos dele, toda a banalidade é pecado.» 

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Alcateia

Carlos de Oliveira
Capa: Vitor Palla
Colecção Novos Prosadores nº 7
Coimbra Editora, Coimbra, Outubro de 1944

A sua voz baixa mal quebrou o silêncio, aquêle silêncio que nascia da terra, dos covais, da coruja perdida, que vestia a altura imóvel dos ciprestes e a sua sombra longa enregelando o chão dos mortos. A mesma ideo avassalava a cabeça de Venâncio. Na perdição em que estava a tombar a sua vida [Venâncio], via-se agora como nunca, para lá do vinho que o turvava, desgraçado e só. Capula ajudara-o a mergulhar mais no abismo, tinha que se vingar de Capula. Mesmo morto, sentia-o ainda a pesar no seu destino. Não podia perdoar. E a ideia súbita que tivera continuava a avolumar-se mais e mais. Não podia, que nunca lhe haviam perdoado de si. Querendo vingar-se de Capula, Venâncio nem pensava que se queria vingar afinal da vida, de tudo, da gente que lhe dera apenas fome e desprezo. Que não era Capula que pesava no seu destino: eram èsses, um formigueiro de homens entre escombros dum mundo velho, apunhalando-se pra subsistir, cada um esmagando, antes que os outros o esmagassem. O doutor Carmo, Cosme Sapo, tantos! Êsses, que verdadeiramente talhavam a sua sina.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

ESPERAR


15 de Setembro de 1946

Esperar ainda é uma ocupação. Não esperar nada é que é terrível.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

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O Santo em Acção

Leslie Charteris
Tradução: L. de Almeida Campos
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 102
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Simon Templar, com um suspiro, dobrou o jornal e deixou-o cair reverentemente no cesto dos papéis.
-Vivemos num país maravilhoso – observou ele. – Você já leu aquela notícia sobre a maneira como três agentes policiais, dois homens e uma mulher, viveram pràticamente num clube nocturno de Brigton, durante cerca de três semanas, continuando a receber os honorários que nós, os contribuintes, lhes pagamos e bebendo enormes quantidades de champanhe, igualmente à nossa custa, até apanharem um pobre diabo qualquer que pediu uma bebida fora das horas legais? E é para isto que pagamos as nossas contribuições… Os nossos brilhantes políticos podem ir a Genebra e aldrabar os etíopes com toda a dignidade de um bando de fabricantes de latas e darem palmadinhas nas costas dos pobres espanhóis, ao mesmo tempo que lhes vão dizendo que a intromissão dos italianos e alemães naquilo a que se convencionou chamar a Guerra de Espanha não passa de um sonho, Mas, no final, a honra britânica ficou intacta. É isso o que interessa, Um qualquer sujeito tem de pagar cinquenta notas das grandes porque vendeu um whisky com soda às onze e meia e um outro sujeito tem de largar cinco notas das grandes por o ter bebido; dois polícias e uma agente feminina tiveram, assim, uma bela pândega gratuita e abriram caminho para uma promoção rápida; e mostrou-se ao Mundo que a Inglaterra respeita a Lei. Modelo britânico!

terça-feira, 28 de agosto de 2018

POSTAIS SEM SELO


Sou fundamentalmente um jornalista. O jornalismo é uma paixão insaciável que só pode ser digerida e humanizada no confronto descarnado com a realidade. Quem não tiver nascido para isto, quem não estiver disposto a viver exclusivamente para isto, jamais poderá permanecer neste ofício incompreensível e voraz, cuja obra termina após cada notícia, como se fosse para sempre, mas que não concede tréguas até começar tudo de novo, com mais ardor do que nunca, no minuto seguinte.

Gabriel Garcia Márquez

GERALMENTE DEIXA-O EM CIMA DO BANCO


Se a manhã está agradável sai de casa, um pouco soturna apesar dos cuidados e desvelos de Lídia, para ler os jornais à luz clara do dia, sentado ao sol, sob o vulto protector de Adamastor, já se viu que Luís de Camões exagerou muito, este rosto carregado, a barba esquálida, os olhos encovados, a postura nem medida nem má, é puro sofrimento amoroso o que atormenta o estupendo gigante, quer ele lá saber se passam ou não passam o cabo as portuguesas naus. Olhando o rio refulgente, Ricardo Reis lembra-se de dois versos duma antiga quadra popular, Da janela do meu quarto vejo saltar a tainha, todas aquelas cintilações da onda são peixes que saltam, irrequietos, embriagados de luz, é bem verdade que são belos todos os corpos que saem rápidos ou vagarosos da água, a escorrer, como Lídia no outro dia, ao alcance das mãos, ou estes peixes que nem os olhos vêem. Num outro banco os dois velhos conversam, estão à espera de que Ricardo Reis acabe de ler o jornal, geralmente deixa-o em cima do banco quando se vai embora, saem todos os dias de casa com a esperança de que aquele senhor apareça no jardim, a vida é uma inesgotável fonte de surpresas, chegámos a esta idade em que só podemos ver navios no Alto de Santa Catarina, e de repente somos gratificados com o jornal, às vezes em dias seguidos, depende do tempo. Uma vez Ricardo Reis dará pela ansiedade dos velhos, viu mesmo um deles apontar uma corridinha trémula e trôpega para o banco onde estivera sentado, e cometerá a caridade de oferecer por suas mãos e palavras o jornal, que eles aceitarão, claro está, porém rancorosos por terem ficado a dever um favor. Confortavelmente reclinado no encosto do banco, de perna traçada, sentindo o leve ardor do sol nas pálpebras semicerradas, Ricardo Reis recebe no Alto de Santa Catarina as notícias do vasto mundo, acumula conhecimento e ciência, que Mussolini declarou, Não pode tardar o aniquilamento total das forças militares etíopes, que foram enviadas armas soviéticas para os refugiados portugueses em Espanha, além doutros fundos e material destinados a implantar a União das Repúblicas Ibéricas Soviéticas Independentes, que, segundo foi proclamado por Lumbrales, Portugal é a obra de Deus através de muitas gerações de santos e heróis, que no cortejo da jornada corporativa do Norte vão incorporar-se quatro mil e quinhentos trabalhadores, a saber, dois mil trabalhadores de armazém, mil seiscentos e cinquenta tanoeiros, duzentos engarrafadeiros, quatrocentos mineiros de São Pedro da Cova, quatrocentos conserveiros de Matosinhos e quinhentos associados dos sindicatos de Lisboa, e que o aviso de primeira classe Afonso de Albuquerque largará com destino a Leixões, a fim de tomar parte na festa operária que ali se realizará, também ficou a saber que os relógios serão adiantados uma hora, que há greve geral em Madrid, que sai hoje o jornal O Crime, que tornou a aparecer aquele famoso monstro de Loch Ness, que os membros do governo que foram ao Porto assistiram à distribuição de um bodo a três mil e duzentos pobres, que morreu Ottorino Respighi, autor das Fontes de Roma, felizmente o mundo pode satisfazer todos os gostos, isto é o que pensa Ricardo Reis, não aprecia de igual modo o que lê, tem, como toda a gente, as suas preferências, mas não pode escolher as notícias, sujeita-se ao que lhe dão. Muito diferente da sua é a situação daquele ancião americano que todas as manhãs recebe um exemplar do New York Times, seu jornal favorito, o qual tem em tão alta estima e consideração o seu idoso leitor, com a bonita idade de noventa e sete primaveras, a precária saúde dele, o seu direito a um fim de vida tranquilo, que todas as manhãs lhe prepara essa edição de exemplar único, falsificada de uma ponta à outra, só com notícias agradáveis e artigos optimistas, para que o pobre velho não tenha de sofrer com os terrores do mundo e suas promessas de pior, por isso o jornal explica e demonstra que a crise económica está a desaparecer, que já não há desempregados, e que o comunismo na Rússia evoluciona para o americanismo, tiveram de render-se os bolcheviques à evidência das virtudes americanas.

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Cântico Final

Vergilio Ferreira
Colecção Livro de Bolso nº 1
Portugália editora, Lisboa s/d

Por uma manhã breve de Dezembro, um homem subia de automóvel uma estrada de montanha. Ma­nhã fina, linear. O homem parou um pouco, enquanto o motor arrefecia, e olhou em volta, fatigado. Aqui estou. Regressado de tudo. Pelo vale extenso até a um limite de neblina, viam-se aqui e além indícios brancos de aldeias, brilhando ao sol. Que dia é hoje?
Pelos campos perpassava uma alegria estranha, tal­vez do sol e daquele fundo silêncio a toda a volta, sem uma voz repentina das que sobem e vibram nas manhãs de trabalho. E de súbito lembrou-se: para o fundo do vale, ouviu o dobre dos sinos do Freixo. Manhã de domingo, manhã de infância, sinos de ou­trora. Correntes misteriosas de vento traziam as suas vozes, enchiam delas o espaço, diluíam-nas em distãncia. Outras vezes atiravam-nas contra a massa da montanha, traziam-lhes o eco de longe, e todo o ar estremecia de memória. Vozes de sinos antigos, vozes do tempo, súbito alarme de que fascinação?
- Salve-o Deus.
O homem despertou. Pôs o carro em andamento e em breve, numa curva de pinheiros, toda a aldeia se lhe ergueu em frente. Velha aldeia, boa aldeia. Reconfortava olhá-la de novo, na resignação do silêncio, fascinava-o reaprender a vertigem das eras naquelas casas negras, na gente espectral escurecida dos séculos. Morava na proeminência de um cerro, suspenso do abismo, num extremo da povoação. Lá estava ao pé a capela abandonada da Senhora da Noite. Estranho nome. Era uma vulgar Imaculada com meia lua e estrelas, pintada grosseiramente no tecto, e agora quase pagada da humidade e do carancho. Mas o opovo chamava-lhe a «Senhora da Noite». Talvez pela lua e pelas estrelas ou apenas porque a invocavam outrora nos caminhos da montanha, aos quais, ali no topo do cerro, parecia presidir.
Frente à velha casa, no automóvel parado, o homem recordava. Há quantos anos?

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

UM REDONDO RELÓGIO DE VELHA ESTAÇÃO


Tu leitor julgavas que ali debaixo do alpendre o meu olhar estava apontado para os ponteiros tu leitor julgavas que ali debaixo do alpendre o meu olhar estava apontado para os ponteiros recortados como alabardas de um redondo relógio de velha estação,
no vão esforço de fazê-los andar para trás, a percorrer em sentido contrário o cemitério das horas passadas jacentes exangues no seu panteão circular. mas
quem te diz que os números do relógio não se debruçam de janelinhas rectangulares e eu não vejo cada minuto cair-me em cima de repente como a lâmina de uma gui-
lhotina? Seja como for, o resultado não mudaria muito: mesmo avançando num mundo todo polido e escorregadio a minha mão contraída no pequeno leme da mala de rodízios não deixaria de exprimir uma recusa interior, como se aquela ligeira bagagem constituísse para mim um peso ingrato e extenuante.
Alguma coisa me deve ter corrido mal: um engano, um atraso, uma ligação perdida; talvez à chegada eu devesse encontrar um contacto, tendo provavelmente algo a ver com esta mala que tanto parece preocupar-me, não sendo claro se por medo de perdê-la se porque nunca mais consigo livrar-me dela. O que parece bem certo é que não é uma bagagem qualquer, que se possa guardar no depósito das bagagens ou fingir que se esquece na sala de espera. Não vale a pena olhar para o relógio; se veio alguém esperar-me, já foi embora há um bom bocado; não vale a pena atormentar-me na ânsia de fazer andar para trás os relógios e os calendários na esperança de voltar aio momento anterior àquele em que aconteceu alguma coisa que não devia acontecer. Se nesta estação eu devia encontrar alguém, que se calhar não tinha nada a ver com esta estação mas que só devesse descer de um comboio e voltar a partir noutro comboio, tal como deveria fazer eu, e um dos dois devia entregar alguma coisa ao outro, por exemplo eu devia entregar ao outro esta mala de rodízios que afinal focou comigo e me queima as mãos, então a única coisa a fazer é tentar restabelecer o contacto perdido.

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As Moscas

Jean-Paul Sartre
Tradução: Nuno Valadas
Capa: F.C.
Colecção Presença/Nova Série nº 6
Editorial Presença, Lisboa s/d

Mas, ó meu povo, amo-vos e foi por vós que matei. Por vós. Vim para reclamar o meu reino e vós repelistes-me por não ser dos vossos. Mas agora já sou dos vossos, estamos unidos pelo sangue e já mereço ser o vosso rei. Os vossos pecados e remorsos, as vossas angústias nocturnas, o crime de Egisto, tudo isso é meu, tudo isso eu tomo sobre mim. Que vos não assustem mais os vossos mortos, pois agora são os meus mortos. E olhai: até as vossas fiéis moscas vos trocaram por mim. Mas não temais, ó povo de Argos, que me vá sentar, ensanguentado, no trono da minha vítima; um Deus mo ofereceu e eu recusei-o. Quero ser um rei sem reino nem súbditos. Adeus, meu povo, tentai viver; agora tudo é novo por aqui, tudo vai começar. Uma vida estranha. Escutai só isto: um Verão, Ciro foi invadido pelas ratazanas. Era uma praga horrível que tudo roía e os habitantes chegaram a pensar que por causa dela acabariam por morrer. Porém, um dia, chegou um tocador de flauta e todas as ratazanas se reuniram à sua volta. Pôs-se então o flautista em marcha em grandes passadas, assim gritando aos habitantes de Ciro: «Afastai-vos»! E as ratazanas levantaram a cabeça hesitantes – como as moscas. Olhai! Olhai as moscas! E depois, de repente, precipitaram-se no seu encalço. E o tocador de flauta, com as suas ratazanas, desapareceram para sempre. Assim.

domingo, 26 de agosto de 2018

NADA FOI EM VÃO


Não foi em vão que levantei a casa.
Não foi em vão que defendi a cidade.
E que fiz serão alta noite
e que me levantei de madrugada.

Frutos de mim levo os meus filhos
pela mão.

Por ele s, sem receio ou sem vergonha
enfrentarei aquele que chegar
às portas da cidade.

Os filhos são as setas que o guerreiro
manda longe.

Nada, pois, foi em vão. Aqui estamos
àss portas da cidade.

Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

sábado, 25 de agosto de 2018

SERIA MESMO UM POVO?


E agora, para acabar (é um truque de conferen­te, ainda falta um pouco mais), uma confissão des­pudorada, como todas as confissões o devem ser: gosto bastante de algumas coisas que escrevi. Quem esperava uma destas? Embora o que escrevi lá para trás, sobretudo de índole teórica afirmativa, me cause um mal-estar indefinível, uma vontade, que não é bem de rasgar ou renegar, de vomitar, mas de tirar tudo de onde está para voltar a pô-lo lá de outra maneira. E, quanto ao resto — o que me agrada — desgraçadamente o sinto como um começo só. Tudo está para vir. Nada virá. Eu sei.
 Ouço o grande silêncio. Vejo-o. Toco-lhe quase. Estou sentado, no meio da cozinha lajeada, olhan­do lá para fora pela janela alta e estreita. A mani­festação (com tiros!) em S. Pedro de Alcântara, éramos todos estudantes. Encontros nocturnos na cerca da Faculdade de Ciências, falava-se em voz baixa, muito baixa, com o portão fechado, quem é que tinha a chave? Um grito alegre na praia da Ericeira, alguém correndo, um abraço tão forte que nos deita ao chão, é o Ramos da Costa muito no­vo, que eu julgava ainda preso, «saí ontem!». E o Zé Gomes, o Carlos, o Cochofel, ainda antes da tertúlia do «Bocage». E as massas transbordantes do dia da Vitória: bandeirinhas dos aliados nas ruas, nas varandas, nas lapelas, excepto a da URSS, é claro, e por isso se gritava: «Todas! To­das! Todas!» E novamente a marcha cautelosa sob as águas. Sempre outra vez a marcha cautelosa sob as águas. Sacões de esperança: o Norton, o «Santa Maria» navegando envolto em lenda, apelando em vão ao mundo inteiro, o Humberto Delgado antes de lhe arrancarem as estrelas. Anos e anos de cri­me, digamos o que dissermos, consentido. Até ao tal amanhecer: Aqui, posto de comando das Forças Armadas. Escancarado o portão de Caxias. O regresso dos exilados perante mares de gente gritante e confiante, até parecia um povo. O primeiro 1.° de Maio em liberdade, nas ruas, nas janelas, nos andaimes dos prédios em construção. Seria mesmo um povo?

Mário Dionísio em Autobiografia

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

POSTAIS SEM SELO



A minha vida é como um certo corredor sombrio de tecto baixo e lúgubre dos lados com inúmeras portas mas fechadas e só lá muito ao fundo se divisa se é que se divisa uma janela que me promete árvores e relva e um mundo de verdura que perdi.

Ruy Belo

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Psycho

Assassinada no duche
como Marat
mas sem revolução
nem razão
e o sangue aguado dela
vai-se pelo ralo
da banheira
no sentido
dos ponteiros do relógio
nos antípodas
seria ao contrário
porquê?

Adília Lopes em Poemas Com Cinema

Legenda: Janet Leigh em Psycho de Alfred Hitchcock

HÁ LÁ UM TIJOLO QUE É MEU!



 O facto de ter sido simpatizante do PC nunca lhe facilitou…

Não. Nunca, eu até acho que fui saneado, não sei porquê, paguei ontem a quota de Junho. Não me deram o cartão este ano, convencidos que eu me importo com isso. Eu continuo a votar no PC. No PC, na CDU, nessas coisas, mais ou menos por uma questão de simpatia. Não fui para o PC para arranjar empregos. Eles tiveram lá a minha ficha mais de seis meses. Eu tinha posto 100$00 de quota, acho que é o mínimo que se pode pôr, e ao fim de seis meses perguntei o que se passava, disseram que a tinham perdido e pedi outra e pus 200$00 de quota e admitiram-me e tive o cartão. Agora este ano tinha que o renovar. Ontem fui lá e passaram-me para a DORS de Setúbal e desculparam-se com o computador… e eu disse que não pagava mais até vir o cartão, já lá vão seis meses…
Não fiz nada, a não ser que dei 1000$00 para a nova sede aqui de Setúbal do PC e disse: «Há lá um tijolo que é meu», e eles agora vão transformar a sede num centro comercial e vão alugar aquilo para lojas e casas de família. Então o meu conto foi mal empregado, mas calculo que seja isto, eu andar ali em Setúbal com um rapaz das FP-25, que todos os fins-de-semana tem que se apresentar em Azeitão, à polícia. Esteve cinco anos preso como autor moral de um crime de delito comum. Eu também não vou perguntar, quando chegarem as eleições ponho lá o meu voto. Não se pode julgar um partido pelo Comité que de repente é um desastre não é? Também não podes julgar a igreja pelo padre da Madeira, ou pelo padre do Alentejo que fez lá o desmancho à rapariga. Se um tipo tem simpatias, tem uma tendência por uma religião ou por um partido político, mantém! Essas repressões a título pessoal, a título de dirigentes, basta ver o que deu na Rússia e nestes lados todos. Ai não querem? Está bem. Agora enquanto não vier o cartão não pago mais quota nenhuma. Eu fico na mesma, para mim o PC ainda é o partido que se aproxima mais da classe trabalhadora – muito aburguesado, muito isolado mundialmente, mas ainda é a coisinha melhor que há aí para mim, como pessoa. Eu até talvez arrisque um bocado esta bolsa da SEC, a dizer que sou comunista. Bah! Também se a SEC me tirar os 50 contos vou para um asilo ou meto-me debaixo de um comboio… Ou então este gajo (o Paulocas) que me sustente!... (risos)

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Esta é a reprodução do Relatório da Censura nº 8.665, de 3 de Fevereiro de 1970, que determinou a proibição da venda de O Encoberto, peça de teatro de Natália Correia.
Um livro interessantíssimo que ainda é possível encontrar em alfarrabistas e também na colecção de alguns livros proibidos pela ditadura que o Público publicou e ainda tem à venda.

O analfabeto-coronel-censor tirou a conclusão que o livro deveria ser proibido por «inconveniência política» e por ser «pornográfico».

Assim (sobre)vivíamos!

«O Encoberto conta a história de Bonami-rei que se faz passar pelo rei D. Sebastião, com o cognome de O Encoberto ou O Desejado. A história depreende-se em várias críticas a um povo crente, iludido, que não quer ver a realidade e, ao mesmo tempo, a uma falsa nobreza, interesseira, que só pensa em dinheiro. Mas mais. Segundo o relatório da censura, de 1970, “trata-se do desenvolvimento em estilo ‘paródia’ de assunto histórico, com não poucas pinceladas pornográficas, à maneira de ‘Natália Correia’, com alusões ao povo português ou a figuras históricas com expressões de chacota e uma clara intenção de ridicularizar»


«Entre 1584 e 1598, a história regista o surgimento de quatro falsos D. Sebastião, que tentaram, com pouca verosimilhança e nenhuma sorte, fazer-se passar pelo Rei Desejado. Alimentaram o mito e foram objeto, pelo menos três deles, de tentativas de dramatização com resultados muito desiguais, no ponto de vista teatral. Essas peças estão quase todas tão esquecidas como os aventureiros que lhes deram o tema...
Com a exceção de "O Encoberto" (1969) de Natália Correia, texto oscilante entre um simbolismo barroco e algo próximo do teatro narrativo, mas de indiscutível força poética, não obstante a exuberância, violência, por vezes a tocar o blasfemo, da estrutura e da linguagem. Reconstitui, com total liberdade criativa, as aventuras, essas sim, amplamente documentadas, do calabrês Marco Tulio Catizone. Como dissemos, de nada lhe valeu a aventura.»

Algures em O Encoberto, um personagem exclama:

«Para se verem livres dos espanhóis os portugueses são capazes de reconhecer D. Sebastião no cu de um gorila.»


«O Encoberto tem a condicionante de um tempo mas dele se descondiciona na intemporalidade do próprio tema. O seu enquadramento é histórico. Situa-nos no período paradigmático da monarquia filipina. Paradigmático porque em “ocupação estrangeira” se traduz o poder sempre que exercido despoticamente. Na altura em que a peça foi escrita, essa conotação com o regime que então vigorava em Portugal foi-me recurso para focar uma situação presente que o rigor censório não permitia abordar às claras. Mesmo assim não conseguiu a peça passar às malhas da severíssima censura que nela só descortinou um manifesto contra o fascismo exótico à vontade dos portugueses e por isso identificável com o reinado filipino. Dentro da moldura histórica adensavam-se contudo os valores mais importantes de O Encoberto. No negativo da alienação dos povos e dos indivíduos germina o sonho que liberta. A irracionalidade do poder que escraviza só pode ser destruída, no sentir dos que impotentemente a sofrem, por outra irracionalidade: a do libertador impossível, o Monarca da Bruma. O Encoberto é a confrontação surda destas duas irracionalidades. A insolução é, consequentemente, a poética e o humor lírico que se dão lide na peça.»

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O Encoberto

Natália Correia
Capa: Correia de Pinho
Galeria Panorama, Lisboa, 1969

É da mais aconselhável prudência.
que o pensar de cada seja
proporcional à sua competência
para fortuna neste mundo fazer.
Mas esta harmoniosa ciência
que é o segredo de uma livre sociedade
onde o magro deixa o gordo engordar
e o gordo deixa o magro emagrecer,
não pode ser o manual da felicidade
da mãe que tem filhos piolhosos.
Enquanto a cabeça destas crianças limpamos,
o crânio enchemos de pensamentos ociosos
que do infeliz azedam a existência.
Ai de nós! Ai de nós! Os parasitas!
que não nos deixam ter ilusões demonstram
que o verdugo continuará a matar
e o insensato a escrever no peito
a obscena palavra liberdade
e a dizer para o verdugo: aponta!
e que nós continuaremos a catar
a cabeça dos nossos filhos fedorentos
quer se chame Filipe ou Sebastião
o rei para quem filhos fizemos.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

QUE ME DEIXOU UM POUCO PERPLEXO


Em Amsterdão, Outubro de 1970, António José Saraiva escreve a Óscar Lopes e a dado ponto anda às bicadas ao neo-realismo português:

Provisoriamente a minha conclusão (ainda há autores para ler ou reler) é esta. À excepção do Manuel Alegre (e do O’Neill, se teimarmos em o considerar neo-realista, o que me parece impróprio) não há um ínico grande escritor neo-realista, não há sobretudo um único grande criador literário que tenha inventado alguma coisa de novo em Literatura. Em prosa não há ninguém comparável ao Aquilino, à Agustina, ou mesmo ao Miguéis, ou mesmo ao Torga, ou mesmo à Irene Lisboa, que, sem ser propriamente uma águia, inventou uma maneira nova de fazer prosa. O que não quer dizer que não haja entre eles alguns bons poetas e prosadores: O Manuel da Fonseca, o Mário Dionísio, o Cardoso Pires, o Namora por exemplo (excluo o Carlos de Oliveira, que li agora pela primeira vez, e que me pareceu profundamente inautêntico, a não ser na amargura envenenada). Parece-me que a teoria estética neo-realista não tem culpa disto, porque quando um autor tem génio não há teorias que o limitem.
E não há só uma invenção. Há talvez até recuo em relação a aquisições já feitas. Há um classicismo inquietante no Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, etc. (sem falar na simples ignorância do ofício do redol e outros.
(…)
Para resumir, para o conhecimento do nosso povo rural os neo-realistas nada acrescentaram ao Camilo e ao Aquilino; para o conhecimento da nossa burguesia citadina, nada acrescentaram ao Eça e ao Teixeira de Queiroz, e ficam muito abaixo do Paço d’Arcos.
Há a excepção do Ferreira de Castro, que me deixa um pouco perplexo. Ele não sabe escrever, tem diálogos horrorosos e é muito provável que a obra dele caia no esquecimento por lhe faltar a factura artística que dá perdurabilidade a uma obra. Mas abriu horizontes, chamou à literatura outra temática, e por esse lado tem um grande papel histórico. Mas tenho o palpite que, à excepção do Redol e do Soeiro, os neo-realistas voltaram a fechar o horizonte.


Legenda: Ferreira de Castro

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A Porta do Meio

Ellery Queen
Tradução Wilson Velloso
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 44
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Quando Karen Leith recebeu o maior prémio literário dos Estados Unidos, o seu editor, agradecido, surpreendeu a todos, inclusive a si próprio, conseguindo induzir a sua «prima donna» a aparecer em público.
Ainda mais surpreendente foi o facto de Miss Leith permitir a realização da festa no seu próprio jardim japonês, nos fundos da residência de Washington Square.
Compareceram muitas pessoas importantes. Estavam todos contentes, e não menos o editor de Miss Leith, que nunca pensara que Miss Leith consentisse em se exibir – e ainda mais no seu próprio jardim!
No entanto, o prémio recebido parecia haver influenciado um pouco aquela mulher pequena, tímida e ainda bonita, que chegara do Japão em 1927 e se encerrara entre as paredes opacas da casa de Wasington Square – santuário de onde enviava ao Mundo romances incrivelmente belos; os poucos que a haviam conhecido antes juravam nunca a ter visto tão animada e cordial.
Porém, a maioria dos presentes jamais vira Karen Leith, e assim a sua recepção foi mais um «début» social do que um triunfo literário.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

É UMA QUESTÃO DE TACO


Agora já só faz reedições? Passou à história?

Ó pá, é muito difícil, no meu estado, escrever capazmente. Um escritor é como um boxeur ou como um futebolista: tem prazo de validade. Há obras que se fazem em ascensão. O Beethoven, por exemplo, vai sempre em ascensão – a 9ª sinfonia, depois seria a 10ª, depois seria a 11ª, se ele aguentasse mais um tempo. E há obras que se fazem um bocadinho datadas. Insistir depois disso seria estúpido. O que me distrai agora é gravar. Mas como não tenho luz, até gravar é difícil. E as pilhas são um balúrdio, as cassetes são um balúrdio, um tipo está a gravar às escuras, de repente já está a gravar por cima de outra coisa… De maneira que agora estou parado, estou reformado. Eu escrevo: escriba/reformado, ou reformado/escriba, tanto faz. Não estou à espera de fazer nada de especial.

Eu pensava que a diferença entre o futebol ou o boxe e a escrita é que eles eram obrigados a reformar-se aos 30 anos e nós podíamos continuar até à vitória final…

Você está a assistir àquilo que eu chamo escritor/escriba avençado: é um tipo que tem que fornecer à editora todos os anos um original e que portanto vai lá ao fundo da gaveta, sai-lhe a palha e faz um original. Você não acha que o Vergílio Ferreira está já reformado há muito tempo?

Sim.

Então porque é que publica? É uma questão de taco. Uma questão também de, enfim, sei lá, de hábitos, de vaidade, de poder. O Saramago se tivesse ficado pelo Memorial do Convento não teria ficado melhor? Agora até publicaram os textos macacos que ele escrevia no Diário de Notícias, no Diário de Lisboa, as opiniões que o DL teve, Basta de Censura, uns poemas que são uma calamidade. Contaram-me que agora (não sei se é verdade se é mentira) a Caminho recebeu uma encomenda de Angola de um ministro a pedir 500 exemplares do Manual de Caligrafia e Pintura, porque o homem supôs que era um manual mesmo, uma maneira de ensinar a escrever a pretalhada, em vez de escreverem gatafunhos. Sabia desta?

Não, não conhecia essa anedota.

Não passa de uma anedota, não é? A má língua aqui é muito grande, e o Saramago hoje tem 99% das invejas nacionais de todos os escritores, porque de facto ele conseguiu uma posição que mais ninguém tem, nem mesmo o Fernando Namora se fosse vivo.

Mas a ideia que eu tenho é que o Saramago vale um pouco mais que o Namora.

É pá! Nem me digas isso, pá, o Namora é abaixo de cão, nem é abaixo de Namora, é abaixo de cão, isso eu escrevi! E, aliás, ainda por cima é gatuno, roubou lá umas coisas ao Vergílio Ferreira. Nesse ponto o Vergílio Ferreira tinha uma posição de grande valor intelectual e bagagem ensaística. Agora foi ultrapassado por este, o Saramago, que é muito mais novo. É inteiramente justo. Eu comprei o Evangelho, ele costumava-me mandar, mas eu comprei: li duas páginas e depois fui ver que faltavam ainda 500 ou 400 e não li mais nada.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

POSTAIS SEM SELO


Houve gente bronca que me relacionou, a torto e a direito, com a ditadura. Talvez por eu não gostar de manobras políticas e ter demasiado talento, um desperdício numa mulher, como ainda hoje se pensa.

Agustina Bessa-Luís em Caderno de Significados

O ENTARDECER COM ARETHA


A Aretha é uma voz de todas as horas, mas, por aqui, tem caído nos entardeceres.
É doloroso, triste, saber que muita gente só descobriu Aretha, agora na hora da  sua morte.
Mais vale tarde que nunca, dizia a minha avó.
Barak Obama, naturalmente, de lágrimas, doces lágrimas, nos olhos, escreveu:

«Aretha ajudou a definir a experiência americana. Na sua voz, podíamos sentir a nossa história, toda ela, todas as suas nuances — o nosso poder e a nossa dor, a nossa escuridão e a nossa luz, a nossa demanda de redenção e o nosso respeito duramente conquistado. Ela ajudou-nos a sentirmo-nos mais ligados uns aos outros, mais esperançosos, mais humanos. E, por vezes, ajudou-nos apenas a esquecer tudo o resto e dançar.»

       
                                         

LIÇÕES


18 de Agosto de 1946

As lições não se dão, recebem-se.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

OLHAR AS CAPAS

A Doença

Gastão Cruz
Capa: João da Câmara Leme
Colecção Novos Poetas nº 7
Portugália Editora, Lisboa, Novembro de 1963

No fogo das estradas é que
o medo de ter
tempo de mais as mãos pousadas
no amor nas espáduas
na amargura do rio
é que molhar as mãos
na água dos joelhos e andar
um pouco mais ainda sobre o fogo
das pernas e alcançar a terra
o ar do tronco o vapor o
movimento infindável do corpo em torno
do amor é que o mar as estradas
é que a locomoção por sobre a mágoa
no fogo das estradas é que tudo
se pode incendiar

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

SÃO MUITAS AS CONTRARIEDADES DA VIDA


Como igualmente se tem visto em outros tempos e lugares, são muitas as contrariedades da vida. Quando Ricardo Reis acordou, manhã alta, sentiu na casa uma presença, talvez não fosse ainda a solidão, era o silêncio, meio-irmão dela. Durante alguns minutos viu fugir-lhe o ânimo como se assistisse ao correr da areia numa ampulheta, fatigadíssima comparação que, apesar de o ser, sempre regressa, um dia a dispensaremos, quando, por termos uma longa vida de duzentos anos, formos nós próprios a ampulheta, atentos à areia que em nós corre, hoje não, que a vida, curta sendo, não dá para contemplações. Mas era de contrariedades que falávamos. Quando Ricardo Reis se levantou e foi à cozinha para acender o esquentador e o bico do gás, descobriu que estava sem fósforos, esquecera-se de os comprar. E como um esquecimento nunca vem só, viu que lhe faltava também o saco de fazer o café, é bem verdade que um homem sozinho não vale nada. A solução mais fácil, por mais próxima, seria ir bater à porta dos vizinhos, o de baixo ou o de cima, Queira desculpar, minha senhora, sou o novo inquilino do segundo andar, mudei-me para cá ontem, agora queria fazer o café, tomar banho, fazer a barba, e estou sem fósforos, também me falta o saco do café, mas isso ainda é o menos, passo sem ele, tenho um pacote de chá, disso não me esqueci, o pior é o banho, se me emprestasse um fósforo, muito obrigado, desculpe ter vindo incomodá-la. Sendo os homens irmãos uns dos outros, ainda que meios, nada mais natural, e nem deveria ter de sair para o frio da escada, vinham aí perguntar-lhe, Precisa de alguma coisa, dei por que se mudou ontem, já se sabe que nas mudanças é assim, se não faltam os fósforos, esqueceu o sal, se veio o sabão, perdeu-se o esfregão para ele, os vizinhos são para as ocasiões. Ricardo Reis não foi pedir socorro, ninguém desceu ou subiu a oferecer préstimos, então não teve mais remédio que vestir-se, calçar-se, pôs um cachecol a esconder a barba crescida, enterrou o chapéu pela cabeça abaixo, irritado por se ter esquecido, ainda mais por ter de sair à rua neste preparo, à procura de fósforos. Foi primeiro à janela, a ver que tempo estava, céu coberto, chuva nenhuma, o Adamastor sozinho, ainda é cedo para virem os velhos a ver os navios, a esta hora estarão em casa a fazer a
barba, com água fria, e daí talvez não, talvez as cansadas mulheres lhes aqueçam um pucarinho de água, quebrada só da friura, que a virilidade dos homens portugueses, no geral máxima entre todas, não tolera deliquescências, basta lembrar que descendemos em linha recta daqueles lusitanos que tomavam banho nas lagoas geladas dos Montes Hermínios e iam logo a seguir fazer um filho à lusitana. Numa carvoaria e taberna da parte baixa do bairro comprou Ricardo Reis os fósforos, meia dúzia de caixas para que o carvoeiro não achasse mesquinho o matinal negócio, pois muito se enganava, que venda assim, por atacado, não se lembrava o homem de ter feito desde que o mundo é mundo, aqui ainda se usa ir pedir lume à vizinha.

PEQUENOS CADERNOS


Uma frase de Gertrude Stein nos meus caderninhos:
«Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa». 
Que me levou a uma velha – e tão bonita – canção de Gilbert Bécaud.
O tempo em que a esmagadora maioria das canções que eu ouvia eram francesas e italianas.

domingo, 19 de agosto de 2018

OUVIR ARETHA NO CAIR DA TARDE


Os artistas partem mas ficam as obras.
Aretha deixou-nos mas estão aí as suas canções.
Que revistamos vezes sem contaº
Há quem não saiba, ou não lembre, mas Aretha Franklin para além de cantar, que continuamos a não adjecticar, também tocava piano.
Não resisto (re)contar uma história do José Duarte, que um dia soube, ao vivo, que um divulgador, com um programa de jazz na rádio da América, desconhecia que Nina Simone, para além de cantar, também tocava piano:



                                          

UMA LUFADA DE CHEIRO A BUFETE DE ESTAÇÃO


O romance começa numa estação ferroviária, ronca uma locomotiva, um arfar de êmbolo tapa a abertura do capítulo, uma nuvem de fumo esconde parte do primeiro parágrafo. Pelo meio do cheiro a estação passa uma lufada de cheiro a bufete de estação. Está alguém a olhar pelos vidros embaciados, abre a porta envidraçada do bar, lá dentro também está tudo enevoado, como que visto por olhos de míope, ou então por olhos irritados com ciscos de carvão. São as páginas do livro que estão embaciadas como as janelas de um velho comboio, é nas frases que pousa a nuvem de fumo. É uma noite de chuva: o homem entra no bar; desabotoa o sobretudo húmido; envolve-o uma nuvem de vapor; um silvo põe-se a correr pelos carris brilhantes da chuva a perder de vista.
Um silvo que parece de locomotiva e um jacto de vapor erguem-se da máquina de café que o velho empregado do bar põe sobre pressão como se lançasse um sinal, ou pelo menos é a ideia que dá pela sucessão das frases do segundo parágrafo, em que os jogadores nas mesas ocultam o leque das cartas contra o peito e se viram para o recém-chegado com uma tripla reviravolta dos pescoço, dos ombros e das cadeiras, enquanto os fregueses em pé encostados ao balcão erguem as chávenas e sopram na superfície do café de lábios e olhos semicerrados, ou sorvem a parte de cima das canecas de cerveja com uma atenção exagerada para não as deixar entornar. O gato arqueia o dorso, a caixeira fecha a caixa registadora que faz dlim. Todos estes sinais convergem no informar que se trata de uma pequena estação de província, onde quem chega é imediatamente notado.
As estações assemelham-se todas: pouco importa que as luzes não consigam iluminar para além do seu halo esfumado; seja como for, este é um ambiente que tu conheces de cor, com o cheiro a comboio que fica mesmo depois de todos os comboios terem partido, o cheiro especial das estações de pois de ter partido o último comboio. As luzes da estação e as frases que estás a ler parecem ter a tarefa mais de dissolver do que indicar as coisas que afloram de um véu de escuridão e de névoa. Eu desembarquei esta noite nesta estação pela primeira vez na minha vida e já me parece ter passado aqui uma vida, entrando e saindo deste bar, passando do cheiro do alpendre ao cheiro da serradura molhada dos lavabos, tudo misturado num único cheiro que é o da espera, o cheiro das cabinas telefónicas quando só resta recuperar as moedas porque o número ligado não dá sinais de vida.