sábado, 25 de agosto de 2018

SERIA MESMO UM POVO?


E agora, para acabar (é um truque de conferen­te, ainda falta um pouco mais), uma confissão des­pudorada, como todas as confissões o devem ser: gosto bastante de algumas coisas que escrevi. Quem esperava uma destas? Embora o que escrevi lá para trás, sobretudo de índole teórica afirmativa, me cause um mal-estar indefinível, uma vontade, que não é bem de rasgar ou renegar, de vomitar, mas de tirar tudo de onde está para voltar a pô-lo lá de outra maneira. E, quanto ao resto — o que me agrada — desgraçadamente o sinto como um começo só. Tudo está para vir. Nada virá. Eu sei.
 Ouço o grande silêncio. Vejo-o. Toco-lhe quase. Estou sentado, no meio da cozinha lajeada, olhan­do lá para fora pela janela alta e estreita. A mani­festação (com tiros!) em S. Pedro de Alcântara, éramos todos estudantes. Encontros nocturnos na cerca da Faculdade de Ciências, falava-se em voz baixa, muito baixa, com o portão fechado, quem é que tinha a chave? Um grito alegre na praia da Ericeira, alguém correndo, um abraço tão forte que nos deita ao chão, é o Ramos da Costa muito no­vo, que eu julgava ainda preso, «saí ontem!». E o Zé Gomes, o Carlos, o Cochofel, ainda antes da tertúlia do «Bocage». E as massas transbordantes do dia da Vitória: bandeirinhas dos aliados nas ruas, nas varandas, nas lapelas, excepto a da URSS, é claro, e por isso se gritava: «Todas! To­das! Todas!» E novamente a marcha cautelosa sob as águas. Sempre outra vez a marcha cautelosa sob as águas. Sacões de esperança: o Norton, o «Santa Maria» navegando envolto em lenda, apelando em vão ao mundo inteiro, o Humberto Delgado antes de lhe arrancarem as estrelas. Anos e anos de cri­me, digamos o que dissermos, consentido. Até ao tal amanhecer: Aqui, posto de comando das Forças Armadas. Escancarado o portão de Caxias. O regresso dos exilados perante mares de gente gritante e confiante, até parecia um povo. O primeiro 1.° de Maio em liberdade, nas ruas, nas janelas, nos andaimes dos prédios em construção. Seria mesmo um povo?

Mário Dionísio em Autobiografia

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