Se a manhã está agradável sai de casa, um pouco soturna apesar dos
cuidados e desvelos de Lídia, para ler os jornais à luz clara do dia, sentado
ao sol, sob o vulto protector de Adamastor, já se viu que Luís de Camões
exagerou muito, este rosto carregado, a barba esquálida, os olhos encovados, a
postura nem medida nem má, é puro sofrimento amoroso o que atormenta o
estupendo gigante, quer ele lá saber se passam ou não passam o cabo as
portuguesas naus. Olhando o rio refulgente, Ricardo Reis lembra-se de dois
versos duma antiga quadra popular, Da janela do meu quarto vejo saltar a
tainha, todas aquelas cintilações da onda são peixes que saltam, irrequietos,
embriagados de luz, é bem verdade que são belos todos os corpos que saem
rápidos ou vagarosos da água, a escorrer, como Lídia no outro dia, ao alcance
das mãos, ou estes peixes que nem os olhos vêem. Num outro banco os dois velhos
conversam, estão à espera de que Ricardo Reis acabe de ler o jornal, geralmente
deixa-o em cima do banco quando se vai embora, saem todos os dias de casa com a
esperança de que aquele senhor apareça no jardim, a vida é uma
inesgotável fonte de surpresas, chegámos a esta idade em que só podemos ver
navios no Alto de Santa Catarina, e de repente somos gratificados com o jornal,
às vezes em dias seguidos, depende do tempo. Uma vez Ricardo Reis dará pela
ansiedade dos velhos, viu mesmo um deles apontar uma corridinha trémula e
trôpega para o banco onde estivera sentado, e cometerá a caridade de oferecer
por suas mãos e palavras o jornal, que eles aceitarão, claro está, porém
rancorosos por terem ficado a dever um favor. Confortavelmente reclinado no
encosto do banco, de perna traçada, sentindo o leve ardor do sol nas pálpebras
semicerradas, Ricardo Reis recebe no Alto de Santa Catarina as notícias do
vasto mundo, acumula conhecimento e ciência, que Mussolini declarou, Não pode
tardar o aniquilamento total das forças militares etíopes, que foram enviadas
armas soviéticas para os refugiados portugueses em Espanha, além doutros fundos
e material destinados a implantar a União das Repúblicas Ibéricas Soviéticas
Independentes, que, segundo foi proclamado por Lumbrales, Portugal é a obra de
Deus através de muitas gerações de santos e heróis, que no cortejo da jornada
corporativa do Norte vão incorporar-se quatro mil e quinhentos trabalhadores, a
saber, dois mil trabalhadores de armazém, mil seiscentos e cinquenta tanoeiros,
duzentos engarrafadeiros, quatrocentos mineiros de São Pedro da Cova,
quatrocentos conserveiros de Matosinhos e quinhentos associados dos sindicatos
de Lisboa, e que o aviso de primeira classe Afonso de Albuquerque largará com
destino a Leixões, a fim de tomar parte na festa operária que ali se realizará,
também ficou a saber que os relógios serão adiantados uma hora, que há greve
geral em Madrid, que sai hoje o jornal O Crime, que tornou a aparecer aquele
famoso monstro de Loch Ness, que os membros do governo que foram ao Porto
assistiram à distribuição de um bodo a três mil e duzentos pobres, que morreu
Ottorino Respighi, autor das Fontes de Roma, felizmente o mundo pode satisfazer
todos os gostos, isto é o que pensa Ricardo Reis, não aprecia de igual modo o
que lê, tem, como toda a gente, as suas preferências, mas não pode escolher as
notícias, sujeita-se ao que lhe dão. Muito diferente da sua é a situação
daquele ancião americano que todas as manhãs recebe um exemplar do New York
Times, seu jornal favorito, o qual tem em tão alta estima e consideração o seu
idoso leitor, com a bonita idade de noventa e sete primaveras, a precária saúde
dele, o seu direito a um fim de vida tranquilo, que todas as manhãs lhe prepara
essa edição de exemplar único, falsificada de uma ponta à outra, só com
notícias agradáveis e artigos optimistas, para que o pobre velho não tenha de
sofrer com os terrores do mundo e suas promessas de pior, por isso o jornal
explica e demonstra que a crise económica está a desaparecer, que já não há
desempregados, e que o comunismo na Rússia evoluciona para o americanismo,
tiveram de render-se os bolcheviques à evidência das virtudes americanas.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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