Terei de dizer uma vez mais, hei-de dizê-lo sempre, que nenhum partido
de Esquerda percebeu (ou terá querido perceber), para além dos discursos, dos
comícios, das entrevistas à Imprensa, não me interessa isso agora, que uma
nação secularmente mergulhada na mais completa ignorância das suas próprias
carências (que não são só pão e casa, e mesmo para ter o pão, para ter a casa),
exigia, antes de tudo, sabem o quê?, ensino. Ensino, no sentido mais vasto e
profundo da palavra. Tão vasto e tão profundo que a tarefa imensa de pôr
milhões a saber ler e escrever (mas que é ler?, mas que é escrever?) mais não
seria que um ponto de partida. Em todas as idades. Em todos os recantos desta
terra de milagres, crenças e crendices, de faz como vires fazer. Ensino para
que se aprenda a ver com os próprios olhos, a intervir com as próprias mãos, a
entender também que nunca é por acaso que se volta a falar, com redobrada
insistência, nas suas glórias passadas — no largo Oceano ou nos palcos de
revista —, como manda a receita dos bons tempos. Que os funâmbulos estão aí. À
espera. As ordens. Não é outra a sua profissão.
Se eu ainda fumasse. Carregava um cachimbo como os sabia carregar
depois de tantos anos de experiência, com pressões diferentes consoante a
fundura a que o tabaco vai ficando. Um desses de fornilho alto, boca estreita,
boquilha bem comprida, o fumo chega assim mais frio, mais leve, desperta o
pensamento, dá-lhe asas. Estou olhando à minha volta e em mim mesmo. Que é
isto, rapazinho? Desconforto? Apreensão?
Caminhamos para onde? Para a destruição total, aqui e no Planeta
inteiro? Ou, computadorizadamente, para um mundo inteiramente novo (novas
linguagens, novos sentimentos) que não posso, e isso me desespera, prever
sequer como será?
Desprezível, entretanto, me parece o sorriso feliz dos que, no
meio da tempestade e das matas em chamas, fingem não dar por elas. Há os que
ignoram (a fome, a poluição, a droga, a sida, o trabalho de menores à vista de
toda a gente, a subversão da democracia democraticamente feita por dentro em
nome dela, a agressividade, a ameaça nuclear), há os que simulam ignorar. Em
qualquer dos casos: desprezível. Nisto insisto. É preciso insistir. Um
antiquíssimo espelho põe-se-me na frente: É preciso? Essa é boa! É preciso? Ou
serás mesmo incurável?
E, no entanto, tímidas esperanças se aproximam (sou incurável,
sim, não deixarei de sê-lo!): certos aspectos do poder local, um alegre
formigar de actividades culturais de jovens que se alarga, de dentro, por
esse país fora e que era impossível antes, não esquecer: e que era impossível
antes.
Tem de existir um grande desencontro entre o que escrevo e o que
escrevem muitos dos meus contemporâneos. Gosto pouco, em geral, do que eles
escrevem. Eles não devem gostar nada do que escrevo. Estamos quites, assim. Boa
viagem. Sem ressentimentos.
Mário Dionísio em Autobiografia
Legenda: fotografia tirada de Autobiografia
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