sexta-feira, 17 de agosto de 2018

SE EU AINDA FUMASSE...


Terei de dizer uma vez mais, hei-de dizê-lo sempre, que nenhum partido de Esquerda percebeu (ou terá querido perceber), para além dos discur­sos, dos comícios, das entrevistas à Imprensa, não me interessa isso agora, que uma nação secular­mente mergulhada na mais completa ignorância das suas próprias carências (que não são só pão e casa, e mesmo para ter o pão, para ter a casa), exi­gia, antes de tudo, sabem o quê?, ensino. Ensino, no sentido mais vasto e profundo da palavra. Tão vasto e tão profundo que a tarefa imensa de pôr milhões a saber ler e escrever (mas que é ler?, mas que é escrever?) mais não seria que um ponto de partida. Em todas as idades. Em todos os recantos desta terra de milagres, crenças e crendices, de faz como vires fazer. Ensino para que se aprenda a ver com os próprios olhos, a intervir com as próprias mãos, a entender também que nunca é por acaso que se volta a falar, com redobrada insistência, nas suas glórias passadas — no largo Oceano ou nos palcos de revista —, como manda a receita dos bons tempos. Que os funâmbulos estão aí. À espe­ra. As ordens. Não é outra a sua profissão.
 Se eu ainda fumasse. Carregava um cachimbo como os sabia carregar depois de tantos anos de experiência, com pressões diferentes consoante a fundura a que o tabaco vai ficando. Um desses de fornilho alto, boca estreita, boquilha bem compri­da, o fumo chega assim mais frio, mais leve, des­perta o pensamento, dá-lhe asas. Estou olhando à minha volta e em mim mesmo. Que é isto, rapa­zinho? Desconforto? Apreensão?
 Caminhamos para onde? Para a destruição total, aqui e no Planeta inteiro? Ou, computadorizadamente, para um mundo inteiramente novo (novas linguagens, novos sentimentos) que não posso, e isso me desespera, prever sequer como será?
 Desprezível, entretanto, me parece o sorriso fe­liz dos que, no meio da tempestade e das matas em chamas, fingem não dar por elas. Há os que igno­ram (a fome, a poluição, a droga, a sida, o trabalho de menores à vista de toda a gente, a subversão da democracia democraticamente feita por dentro em nome dela, a agressividade, a ameaça nuclear), há os que simulam ignorar. Em qualquer dos casos: desprezível. Nisto insisto. É preciso insistir. Um antiquíssimo espelho põe-se-me na frente: É preci­so? Essa é boa! É preciso? Ou serás mesmo incu­rável?
 E, no entanto, tímidas esperanças se aproximam (sou incurável, sim, não deixarei de sê-lo!): certos aspectos do poder local, um alegre formigar de ac­tividades culturais de jovens que se alarga, de den­tro, por esse país fora e que era impossível antes, não esquecer: e que era impossível antes.
Tem de existir um grande desencontro entre o que escrevo e o que escrevem muitos dos meus contemporâneos. Gosto pouco, em geral, do que eles escrevem. Eles não devem gostar nada do que escrevo. Estamos quites, assim. Boa viagem. Sem ressentimentos.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: fotografia tirada de Autobiografia

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