domingo, 30 de abril de 2017

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Os filmes de Wim Webders foram, há semanas, revisitados no Nimas, em Lisboa, sim ainda é uma sala de cinema.

E, necessariamente, teria de ser exibido Paris,Texas esse belíssimo filme de Wim Wenders, pensado, escrito, filmado em total estado de graça, tudo envolvido na magnífica banda sonora criada por Ry Cooder, que teve o feeling de ir buscar uma velha canção mexicana, uma canção que tem tanto de bonita como de arrepiante: 

Qué lejos estoy del suelo donde he nacido
inmensa nostalgia invade mi pensamiento
y al verme tan solo y triste cual hoja al viento
quisiera llorar, quisiera morir de sentimiento.

De notar as extraordinárias interpretações e de Harry Dean Stanton no papel do solitário Travis e de e Nastassja Kinski, no papel de Jane.

 O filme foi escrito por Sam Shepard e tem um dos mais extraordinários diálogos, arrepiante diálogo, do cinema: «I Knew These People.»

Há uma boa dezena de anos, copiei, do blogue «Paixões e Desejos», feito por Paula e Rui Lima, o longo diálogo entre Travis e Jane.

Nunca mais consegui aceder a este blogue.

Desconheço os motivos. 

O que quer que se tenha passado, lamento.


Distinguido com o Grande Prémio do Festival de Cannes de 1984, Paris, Texas conta a história de um homem que sofre de amnésia e da sua luta para reconstruir uma vida feita em pedaços. Travis regressa a Paris, no estado do Texas, ao fim de quatro anos, porque uma das poucas coisas de que ainda se lembra é de a sua mãe lhe ter dito onde ela e o seu pai fizeram amor pela primeira vez.

Paris, Texas é um filme de solidões e de solitários. Travis, boné vermelho na cabeça, pelo Deserto Mojave à procura dos passados que cada um de nós transporta, amarguras profundas, nostalgias, melancolias, o outro lado do arco-íris.

Há quem diga que só andamos por aqui a administrar a nossa solidão.

Nascer é inaugurar a solidão, escreveu o Álvaro Guerra.

Nunca aprendemos a dizer adeus, ou se aprendemos, aprendemos mal.

Alguém terá que andar só para os outros andarem acompanhados, deixou escrito Virgílio Ferreira.

O que fica?

Talvez um perfume ligeiro, uma qualquer ventania a varrer o Deserto Mojave, ou qualquer outro deserto, que abre o coração ao  meio  e que talvez permita alguém falar, com alguma peculiaridade, de um bem-estar na solidão.

Perguntaram isso ao Alexandre O’ Neill.

Ele respondeu: a solidão procurada é boa a não procurada, às vezes, é chata.


Quem viu o filme, lembra que o diálogo entre Travis e Jane ocorre numa pequena sala de "peep-show", separados por um vidro que lhe permite a ele vê-la a ela, mas  não o contrário:

Travis – Posso dizer-lhe uma coisa?
Jane – Tudo o que quiseres!
- Vai levar tempo.
- Tenho o tempo todo.
- Eu conhecia-os.
- Quem eram?
- Duas pessoas... Amavam-se uma à outra... A rapariga era muito nova, 17 ou 18 anos. E o homem era bastante mais velho. Era rude e selvagem. E ela era muito bela.
- Sim.
- Ambos faziam de tudo uma aventura. E ela gostava disso. Uma simples ida à mercearia já era uma aventura. Riam de coisas estúpidas. Ele gostava de a fazer rir. Pouco se importavam com o resto, pois só queriam uma coisa... estarem um com o outro. Estavam sempre juntos.
- Deviam ser muito felizes...
- E eram. Verdadeiramente felizes. Ele amava mais... do que julgava ser possível. Não suportava estar longe dela quando trabalhava. Então largava o trabalho. Só para estar com ela em casa... Quando faltava o dinheiro arranjava outro trabalho. E deixava-o também. Mas não tardou que ela se inquietasse.
- Porquê?
- Pelo dinheiro, suponho. Por não ter bastante.
- Uhm...
- Por não saber quando chegava o cheque
- Sei o que isso é.
- Ele então começou a atormentar-se.
- Como assim?
- Por ter de trabalhar para a sustentar, mas não suportou estar longe dela.
- Ah!
- Quanto mais longe dela estava mais enlouquecia. Até que enlouqueceu mesmo. Pôs-se a imaginar coisas.
- Que coisas?
- Que ela encontrava outros homens na sua ausência... Ao voltar do trabalho acusava-a de ter estado com outro. Berrava, partia coisas na caravana.
- Na caravana?
- Sim, eles viviam numa caravana.
- O senhor não veio ver-me no outro dia? Sem ser indiscreta...
- Não.
- Oh! Julguei reconhecer a sua voz.
- Não! Não era eu.
- Continue.
- Ele então começou a beber muito. Voltava tarde, para a pôr à prova.
- Pô-la à prova como?
- Para ver se ela tinha ciúmes.
- Ah!
- Queria que ela tivesse ciúmes, mas ela não os tinha. Só se inquietava por ele, o que o enfurecia ainda mais.
- Porquê?
- Por pensar que ela não queria saber dele. Os ciúmes seriam sinal de que o amava. Então uma noite... ela disse-lhe que estava grávida. De três ou quatro meses, e ele não sabia. Então tudo mudou. Ele deixou de beber e arranjou um trabalho fixo. Convenceu-se de que ela o amava, pois trazia um filho dele. Ia consagrar-se inteiramente a dar-lhe um lar. Mas aconteceu uma coisa estranha.
- O quê?
- De começo ele nem reparou que ela tinha mudado. Desde que nascera o menino, tudo a irritava. Tudo a enfurecia. Mesmo o menino lhe parecia uma injustiça. Ele esforçava-se por lhe agradar. Dava-lhe presentes. Levava-a a jantar fora, todas as semanas. Mas nada a satisfazia. Durante dois anos, ele fez tudo para voltarem a ser como eram no começo. Mas acabou por compreender que era impossível. Então voltou a beber, mas as coisas azedaram. Quando voltava tarde ela não estava inquieta, nem ciumenta. Estava enraivecida. Acusava-o de a ter sequestrado fazendo-lhe um filho. Dizia-lhe que sonhava fugir. Não sonhava com outra coisa: fugir. Via-se a correr de noite... toda nua, através dos campos, sempre a correr. E sempre que ela estava prestes a invadir-se, ele aparecia a detê-la. Aparecia e detinha-a. Quando ela lhe contava esses sonhos, ele acreditava. Sabia que se a não detivesse ela fugiria. Prendeu-lhe uma campainha ao tornozelo, para a ouvir, se ela tentasse levantar-se de noite. Ela aprendeu a abafar a campainha com uma peúga, e a esgueirar-se da cama. Mas a peúga caiu quando ela já ía na estrada. Ele agarrou-a e amarrou-a ao fogão com o cinto. Deixou-a ali e tornou-se a deitar. Ouviu-a gritar, sem se mover. Depois ouviu o filho aos gritos... e admirou-se de não querer saber de nada. Tudo o que queria era dormir. E, pela primeira vez desejou estar longe dali. Perdido num vasto país onde ninguém o conhecesse. Num lugar sem linguagem e sem ruas. Sonhou com esse lugar sem lhe saber o nome. E quando despertou.... estava a arder. Chamas azuis queimavam os lençóis da cama. Correu para os dois únicos entes que amava... Mas tinham partido. Tinha os braços em brasa. Saiu para fora da casa e rolou-se no chão molhado... E depois correu. Nunca se voltou para ver o fogo. Só correu. Correu até ao nascer do sol. Até não poder mais. E quando o sol se pôs tornou a correr. Correu assim durante cinco dias. Até que sem deixar sinais... desapareceu.
- Travis...
- Se apagares a luz aí dentro, poderás ver-me?
- Não sei... nunca experimentei.
- Podes ver-me?
- Sim.
- Reconheces-me?
- Oh! Travis...
- Trouxe o Hunter comigo. Não queres vê-lo?
- Sim. Queria tanto vê-lo, que não ousava imaginá-lo. A Anne mandava-me fotografias dele. Pedi-lhe que deixasse de as mandar. Não suportava a dor de o ver crescer longe de mim.
- Porque não ficaste com ele?
- Não podia. Não tinha aquilo de que ele necessitava. Não queria utilizá-lo para encher o vazio da minha vida.
- Ele agora precisa de ti Jane. E quer ver-te.
- Ele quer?
- Está à tua espera.
- Onde?
- Na cidade. Num hotel. Le Meridien... quarto 1520.
- Tu não te vais embora, pois não?
- Eu não posso ver-te Jane.
- Não vás ainda... Não vás ainda... Fazia-te grandes discursos depois de partires. falava-te a toda a hora, mesmo só. Enquanto caminhava, meses a fio. Agora... não sei o que dizer. Era mais fácil quando te imaginava que me respondias, tínhamos longas conversas os dois. Era como se lá estivesses. Via-te, sentia o teu odor. Ouvia a tua voz. Ás vezes a tua voz despertava-me, a meio da noite, como se estivesses ali. Depois... tudo se dissipou lentamente. Já não podia imaginar-te. Tentei falar-te, mas em vão. Já não te ouvia. Então... renunciei. Tudo parou. Tu... desapareceste, simplesmente. Agora, trabalho aqui. Oiço a tua voz a toda a hora. Cada homem tem a tua voz.
- Vou dizer ao Hunter... que vais chegar...
- Travis...
- Sim.
- Lá estarei.
- Óptimo.
- Hotel Meridien...
- Sim. Quarto 1520.






Na banda sonora, Cancion Mixteca é cantada por Harry Dean Stanton.

sábado, 29 de abril de 2017

POSTAIS SEM SELO


 – É belo o deserto, acrescentou.
E era verdade. Sempre amei o deserto. Senta-se a gente numa duna de areia. Não se vê nada. Não se ouve nada. E, todavia, qualquer coisa brilha em silêncio.
 O que dá beleza ao deserto, disse o principezinho, é a existência de um poço escondido em qualquer parte...

Antoine de Saint-Exupéry em O Principezinho

TODAS AS DORES DO MUNDO SE ATENUAM COM O TEMPO


Carta de José Rodrigues Miguéis, datada de 7 de Junho de 1964, para José Saramago:

Fiquei consternado com a notícia da morte de seu pai, e abraço-o com a mais sincera condolência. As circunstâncias em que ela se deu, pelo inesperado, devem ter tornado mais fundo o seu abalo. Como já passei por isso, embora há longos anos e sendo eu mais novo que o meu amigo é hoje, posso bem imaginar a crise que atravessou, Há casos destes que nos impregnam a vida, para sempre, de um sentimento de fatalidade, de injustiça irremediável. Todas as palavras de consolação se tornam inúteis, porque este é fel que todos temos que tragar; mas é então que sentimos melhor o calor e o mérito da presença humana – como ovelhas, que somos, assustados com a proximidade do Lobo que não perdoa às suas vítimas… Mas todas as dores se atenuam com o tempo (de outro modo a vida seria intolerável) e, não havendo espinhos de remorso ou culpa, as memórias dos mortos acabam por ser-nos doces.


Legenda: os pais de José Saramago, fotografia tirada de José Saramago: A Consistência dosSonhos

ENTÃO REGRESSO



Estávamos em Maio, o mês das flores. Mas em Nova Iorque não há fragrância de flores, há o cheiro dos homens que correm atrás da vida e há o cheiro do cimento que lhes absorve as horas e as ideias, por causa do dinheiro. Naquele momento, eu era um dos poucos novaiorquinos que não corria atrás de coisa alguma: dinheiro, poder, mulheres ou a juventude perdida. E se não fosse a circunstância de ter contra mim o Sindicato do Crime e a Mafia, podia considerar-me do lado de fora da maior competição fratricida do mundo, uma espécie de Jogos Olímpicos do Dólar. Ou uma peça chamada Estados Unidos da América, com milhões de figurantes seguindo a bandeira do Dólar, com dólares desenhados nos olhos, com dólares escondidos no coração, com dólares atravessados na garganta, dias muito dinâmicos e noites muito cansadas, publicidade, bairros de lata e arranha-céus, publicidade, combates de boxe e avenidas a «néon», publicidade, o eterno problema dos negros e «compre hoje mesmo o seu frigorífico», publicidade, mais material de guerra e «sorria como William Holden», publicidade, comprimidos para lembrar e comprimidos para esquecer, publicidade, e a manhã que nasce e tudo recomeça.
O meu último contrato rendera-me bom dinheiro. Partira para Roma seis meses antes. Parto sempre para Roma quando não me sinto seguro. Revejo a Capela Sistina, as garotas da Praça de Espanha, vejo o último Fellini ou o último Rosselini, compro livros que dificilmente encontro nos Estados Unidos, e espero que Johnny Arteleso, meu companheiro de infância e meu único verdadeiro amigo, me diga de Nova Iorque que o tempo está sereno. Então regresso.


Legenda: pormenor da capa feita por Antunes para a edição do Círculo de Leitores de Mulhere Arma Com Guitarra Espanhola.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

POSTAIS SEM SELO


O culto da morte é bastante acarinhado no mundo do rock, com direito a narrações na literatura e na música, mas na prática não resulta em grande coisa para o cantor e a sua canção, exceto uma boa vida que fica por viver, pessoas amadas e filhos que ficam para trás, e uma cova funda no cemitério. O findar no auge da glória não passa de uma grande treta.

Bruce Springsteen em Born to Run

PREFIRO QUE OS MEUS DEUSES FIQUEM VELHOS


É verdade que cinco minutos de alguns tipos valem 50 anos de outros tipos e que a sua explosão numa nova e brilhante estrela atira as vendas de discos para a estratosfera, fazendo com que vivam depressa e morram cedo, deixando como legado um cadáver bonito. Mas eu acho que precisamos de exaltar o próprio ato de viver. Pessoalmente, prefiro que os meus deuses fiquem velhos, grisalhos e cá. Prefiro ter o Bob Dylan, o festim de piratas saqueadores dos Stones, a pujança espero-ficar-muito-velho-antes-de-morrer dos atuais Who, um Brando gordo mas hipnótico até à data da morte. do que a alternativa de não os ter cá. Gostaria de ter visto o Michael Jackson a dar o seu último espetáculo, um Elvis de 70 anos a reinventar e saborear os seus talentos, as fronteiras a que o Jimi Hendrix teria levado a guitarra elétrica e gostaria de ter visto o Keith Moon, a Janis Joplin, o Kurt Kobain e todos os outros cujos talentos se perderam devido a mortes precoces, mortes que roubaram tanto à minha adorada música, a desfrutarem da bênção dos seus dons e da admiração do público. Envelhecer é aterrador mas também fascinante e os grandes talentos transmutam-se de formas estranhas e muitas vezes iluminadas. Além disso, só podemos desejar longa vida, felicidade e paz a todos aqueles que nos deram tanta alegria, sabedoria e inspiração. Há poucas pessoas assim.
A juventude e a morte sempre foram uma combinação inebriante para os criadores de mitos que pululam pelo mundo dos vivos. E a falta de amor-próprio, perigosa e inclusive violenta, foi desde sempre um dos ingredientes essenciais nas fogueiras da transformação. Quando o «novo eu» renasce das cinzas, o autocontrolo e a imprudência estão ligados de forma imutável. Eis o que torna a vida interessante. Muitas vezes, a alta tensão entre estas duas forças faz com que seja fascinante e divertido ver um artista, mas também coloca uma cruz branca à beira da autoestrada, Muitos dos que percorreram este caminho acabam por morrer ou ficar com uma exaustão grave. O culto da morte é bastante acarinhado no mundo do rock, com direito a narrações na literatura e na música, mas na prática não resulta em grande coisa para o cantor e a sua canção, exceto uma boa vida que fica por viver, pessoas amadas e filhos que ficam para trás, e uma cova funda no cemitério. O findar no auge da glória não passa de uma grande treta.

Bruce Springsteen em Born to Run

TRUMPRALHADAS


Donald Trump cumpriu 100 dias como presidente dos Estados Unidos e saiu-se com mais umas trumpalhadas:

Isto é muito mais trabalhoso do que eu fazia antes. Julgava que ser presidente era mais fácil. Adorava a minha vida anterior. Estavam a acontecer tantas coisas.

Há a possibilidade de acabarmos por ter um enorme, enorme conflito com a Coreia do Norte. Sem dúvida que sim.

OLHARES


No meu tempo de miúdo isto era um arranha-céus: o arranha-céus do Areeiro e não tem mais de nove andares.

Existe um outro na Praça de Londres.

Também com os seus nove andares, mas com uma pequena diferença: albergava um dos mais conhecidos cafés da zona chique das Avenidas Novas, o Café Londres, traço do arquitecto Cassiano Branco, a sua ampla sala e o salão de jogos com mesas de bilhar.


Hoje, é um balcão do Novo Banco e começou por ser balcão do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, que nas noites de sexta-feira se transformava em posto de recepção da Santa Casa da Misericórdia para apostas fora de horas do Totobola e Toloto.

Do outro lado, na Avenida de Roma, havia a Pastelaria Capri e o Café Roma, onde hoje existe uma loja McDonalds e já na Praça de Londres, onde começa a Avenida Guerra Junqueiro, a Pastelaria Mexicana.


Anos mais tarde juntou-se-lhe o edifício que, no tempo da ditadura, albergou o Ministério das Corporações, inaugurado em Outubro de 1966 e que, após o 25 de Abril, passou a ser o Ministério do Trabalho.

A Lisboa das Avenidas Novas.

Era esta a Lisboa que Salazar queria mostrar.

Sim, porque havia outras Lisboas que Salazar queria que não fossem vistas.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

POSTAIS SEM SELO


Os mortos ao menos não sonham, são sonhados.

Ana Margarida de Carvalho em Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato

NOTÍCIAS DO CIRCO




Quando Paulo VI visitou Fátima, por ocasião do 50º aniversário, calhou a um sábado, a ditadura decretou feriado obrigatório para todas as actividades públicas e privadas.

OLHAR AS CAPAS


O Caso do Olho de Vidro

Erle Stanley Gardner
Tradução: Lino Vallandro
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 33
Livros do Brasil, Lisboa s/d

- Os procuradores distritais têm o hábito de desejar obter condenações. É natural. A polícia reúne as provas e depõe-as no regaço do procurador do distrito. A ele compete obter a condenação. Na realidade, a fama dum procurador do distrito baseia-se na percentagem de condenações sobre o número de processos julgados.
- Continue – disse Mason.
-Quando assumi este cargo – disse Burger – quis ser consciencioso. Tenho horror a acusar uma pessoa inocente. A sua actuação impressionou-me. Você, provavelmente, não concordará com a conclusão a que cheguei a esse respeito.
- Qual é a conclusão – interrogou mason.
- Que você é melhor detective do que advogado, e isso não importa desdouro à sua capacidade jurídica. A sua técnica forense é hábil, mas inteiramente baseada numa solução correcta do caso, previamente alcançada. Quando você recorre a estratagemas pouco ortodoxos, como parte da sua tática forense, reprovo-os; mas quando os emprega para obter uma solução correcta para o mistério, aplaudo-os. Eu tenho as mãos atadas. Não posso recorrer a táticas arbitrárias, espectaculares. Às vezes desejaria fazê-lo, especialmente quando acho que uma testemunha está a mentir acerca da identidade de um criminoso.
Mason disse lentamente:
- Uma vez que você está a ser franco para comigo, coisa que nenhum outro procurador do distrito jamais fez, vou ser franco para consigo, coisa que, diga-se de passagem, eu nunca me dei ao trabalho de fazer com qualquer outro procurador do distrito. Não pergunto a um homem se ele é culpado ou inocente. Quando consinto em representá-lo, recebo-lhe o dinheiro e trato do seu caso. Culpado ou inocente, ele tem o direito de ser defendido; mas seu chegasse à conclusão de que um dos meus clientes era realmente culpado de homicídio e não estava moral ou legalmente justificado, faria esse cliente confessar o crime e confiar-se à clemência do tribunal.

DESABAFO


Quando penso naquele velho senil que continua a segregar a sua gangrena, dá-me raiva, vontade de chorara até… Como hoje, quando o moço entrou, tive de ir à casa de banho para ninguém ver e disse alto sozinho
- Filho da puta de Salazar!

José Luandino Vieira em Papéis da Prisão 

quarta-feira, 26 de abril de 2017

POSTAIS SEM SELO



Não estou de acordo com o que diz, mas bater-me-ei até à morte para que tenho direito a dizê-lo.

Frase atribuída a Voltaire

SER-SE OU NÃO UM INTÉRPRETE


As canções temáticas não eram canções de protesto. O termo «cantor de protesto» já não existe, tal como o termo «cantor-compositor». Era-se ou não se era um intérprete, era disto que se tratava – era-se ou não se era um cantor folk. «Canções de discórdia» foi um termo usado mas, mesmo esse, era raro. Tentei explicar mais tarde que não me via como um cantor de protesto, que tinha havido um grande engano. Achava tanto que estivesse a protestar contra o que quer que fosse quanto achava que as canções do Woody Guthrie protestavam contra alguma coisa. Não via Woodie como um cantor de protesto. Se ele é, então Sleepy John Estes e Jerry Roll Morton também são. Andava a ouvir com muita regularidade as canções de revolta e essas sim, realmente mexiam comigo. Cantava a toda a hora as canções dos The Clancy Brothers – Tom, Paddy e Liam – e do companheiro deles, Tommy Makem.

Bob Dylan em Crónicas

NEM COM A MORTE CHEGOU O SILÊNCIO




Luís Mateus

terça-feira, 25 de abril de 2017

NOME DE ABRIL


Só algo de muito transcendente me leva, no 25 de Abril, a não descer a Avenida.
Fico sempre com a ideia de que, em cada ano, está mais gente e hoje via-se muita gente jovem.
Há pouco, nas reportagens da televisão, confirmei a ideia.
E muito feliz, e comovida fiquei, quando por mim alguém passou levando um cartaz com um nome: Vasco.

A RAPARIGA DO PAÍS DE ABRIL


Habito o sol dentro de ti
descubro a terra aprendo o mar
rio acima rio abaixo vou remando
por esse Tejo aberto no teu corpo.

E sou metade camponês metade marinheiro
apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio.

Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.

Começa a pátria onde começas. Verde campo
verde mar. Capital da ternura.
Tu és a lâmpada no meio desta festa
com fogueiras e povo dentro dos poemas.

Era a estranha paisagem da pobreza
o cheiro secular das coisas que apodrecem
era a canção cantada pelos bêbados
que vomitam seu fardo de viver.

E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava
quando o País de Abril se vestia de ti
e eu perguntava atónito quem eras.

Quando vieste tudo ficou certo.
Encheram-se de trevo os campos das palavras
encheram-se de gente as mãos de cada verso
com sete estrelas sete luas nós cantámos.

E tu disseste: ergue-te e vai.
Não ouves este vento este soluço?
Ergue-te e canta uma canção para o teu povo.
Com sete barcos sete espadas nós partimos.

Raparigas sentaram-se ao redor do poema.
E então cantei de amor por ti cantei
na língua que por vezes é tão triste
a nossa língua que por vezes é assim: tão pura.

Mulher   por ti cantei. E tu me deste
um puro continente algarves de ternura.
Por ti cantei entre meu povo e meu poema
e achei   achando-te   o País de Abril.

Manuel Alegre em Praça da Canção

Legenda: ilustração de Cipriano Dourado.

TABLÓIDES


A capa da edição do Círculo de Leitores de Aforismos &Desaforismos de Aparício, de José Rodrigues Miguéis, é amarela e sem qualquer título ou nome do autor.

Existe uma sobrecapa, mas o volume que comprei num alfarrabista, já não a tinha.


Este volume da obra de Miguéis, reúne os «Tablóides» que durante sete anos foram publicados no Diário Popular, uma colaboração que Jacinto Baptista, jornalista, escritor e amigo de José Rodrigues Miguéis, lhe solicitara em 1979 e que se prolongou até perto da morte do escritor.


Trata-se da secção, com o mesmo título, que Miguéis mantivera em tempos na Seara Nova, interrompida em data que não consegui averiguar, mas com recomeço, na mesma Seara Nova, no seu nº 1447, Maio de 1966.


São pequenos «fait-divers» e comentários breves a temas nacionais e estrangeiros.

Dou comigo a meditar, por vezes, se o que escrevo nestes «Tablóides» é na realidade o que penso, ou se é fruto espontâneo da fantasia ficcional do escritor – isto é o que diriam imaginárias personagens de novela! Pendo antes a crer, hoje, que não devo responder pelo respectivo conteúdo, a não ser como obra de ficção. Escrevo o que me acode ao bico da pena, automaticamente. A minha razão poderia com frequência opor-se-lhe!

O volume poderia chamar-se, simplesmente, «Tablóides», mas o autor quis que fosse Aforismos &Desaforismos de Aparício, personagem que aparece em O Espelho Poliédrico, em quatro capítulos, mas com o título de Aforismos &Venenos de Aparício.


Em carta, datada de 8 de Abril de 1978, e dirigida a Jorge de Sena, escreve sobre os seus «Tablóides:

Enfim, virei velho-ranzinza. Os meus venenos empeçonham-me a vida. Só me têm valido os «Tablóides» onde vou vertendo com cautela uma gota deles de vez em quando. Já levo mais de CEM colunas no Popular.

OLHAR AS CAPAS


Aforismos & Desaforismos de Aparício

José Rodrigues Miguéis
Organização e Introdução de Onésimo Teotónio Almeida
Círculo de Leitores, Lisboa, Maio de 1996

18 de Abril de 1978

Todos falam de «liberdade», como se a tivessem inventado, restabelecido ou merecido. Mas se eu não afivelar a máscara de um partido nem agitar o pendão de uma seita, serei sem demora ignorado, suprimido ou oprimido pela mais vil das armas políticas (ou fascistas!), que é o boicote ou o silêncio; pela crítica caluniosa ou degradante; ou pior que tudo isso, pela impossibilidade de publicar. Não terei jornal, nem editor, nem lugar ao sol. Cada grupo, facção ou quadrilha que se apodera dos postos de comando nas instituições públicas ou privadas onde se dispõe das vidas, carreiras e reputações dos cidadãos, exerce a seu modo, e na medida dos seus rancores, as funções que ontem cabiam ao ditador, ao censor e aos seus agentes policiais, impondo gostos, ideias, modas e ofícios.
Por isso eu me refugiei neste jornal de esquerda pluralista, onde encontro até a liberdade de escrever por vezes aquilo em que com ele não estou de acordo – porque a ninguém, nem a mim mesmo, reconheço a virtude de possuir toda a verdade. Deixei assim aos «neutros» e/ou «indiferentes», que ontem bajulavam ou serviam obedientemente os bonzos da tirania, o privilégio de passar a bajular ou servir os semideuses e mandarins do presente: servindo-se a si próprios, no processo, pela sua aptidão a serem amigos-toda-a-gente – o que os não obriga a serem amigos de ninguém.

25 DE ABRIL SEMPRE!

O DIA EM QUE ACABOU A CENSURA


Já do dealbar da tarde de 25 de Abril, depois de vividos os acontecimentos do Largo do Carmo, os tiros na fachada do quartel, o discurso de Francisco Sousa Tavares, megafone em punho, desemboquei na redacção do República.

O último dos tunantes de que fala o Fernando Assis Pacheco, nos cinco minutos para contar uma história, foi o José Cardoso Pires, sentado na secretária do Vítor Direito, sita no canto, junto à varanda, da redacção do República, um grande sorriso na cara, olho brilhante, cigarro atrás de cigarro.

O relato da transmissão das polícias do regime, foi publicado no República de 26 de Abril e que acima se reproduz.

Fica também  a crónica do Assis Pacheco e um pormenor da capa do República de 26 de Abril: nunca mais um jornal foi visado pela Censura.



segunda-feira, 24 de abril de 2017

POSTAIS SEM SELO


Que palavra é o silêncio?
Que silêncio é esta voz
que  num soluço suspenso
chora cá dentro de nós?

Natália Correia em As Maças de Orestes.

Legenda: Rocha de Conde de Óbidos: embarque de tropas para a guerra colonial.
Não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

CRAVOS E VERDI


Nos últimos anos da ditadura, o Teatro São Carlos estabeleceu uma parceria com o Coliseu dos Recreios de modo a que as óperas que Eram representadas no São Carlos também pudessem ser vistas na velha sala das Portas de Santo Antão.

Era a possibilidade de um vasto leque da população, sem dinheiro, nem fraque, nem jóias para frequentar São Carlos, pudessem usufruir desses espectáculos, como que dando seguimento à célebre frase de António Silva de que a ópera é música para operários.

Quando, nessa noite,  24 de Abril de 1974, perto de cinco mil pessoas aplaudiram freneticamente os artistas, com Alfredo Kraus e Joan Sutherland à frente do elenco, que representaram La Traviatta de Verdi, já as senhas do Movimento das Forças Armadas tinham sido transmitidas pela rádio.

A reportagem do Diário de Notícias dava conta que, no meio das ovações intermináveis, cravos foram lançados das frisas.

Regressando a suas casas, desconheciam que esse começo de 25 de Abril não era mais um dia do calendário, um dia como outro qualquer.

Um regime decrépito, que nos massacrava os ouvidos com afirmações de coragem e heroicidade, que se as forças do mal atentassem contra a  ordem estabelecida, vinham  para as ruas dar o peito às balas.

Em escassas horas, o senil regime esfrangalhou-se.

Não soltaram um pio.

Como disse o Hélder: foi um ar que lhes deu.

A partir desse dia, protagonistas de uma grande esperança, nem nos pesadelos mais negros, admitimos que viríamos a ser invadidos por um desencanto sem nome.

Aconteceu!

Encharca-nos os dias.


Mas é bom não esquecer que há coisas que não têm fim: a esperança num mundo melhor, por exemplo, e a luta por consegui-lo. 

A RELIGIÃO É HUMANAMENTE IMPOSSÍVEL


Muito lhe agradeço Eugénio a prosa que escreveu, e que a tenha escrito. Sem que isso implique juízos de valor a meu próprio respeito, gosto muito dela – e só lhe pediria que cortasse aquela da «nostalgia do catolicismo» (que é livre de manter se acha que não tenho razão) que já tem dado, ao longo dos anos, equívocos demasiados. O que nos meus primeiros livros apareceu, foi uma série de poemas irónicos, precisamente para libertação do que acaso existia de tal em mim, e que não sinto que haja. Nostalgia, afim, se a tenho, é de que a religião seja humanamente impossível. E nisso o catolicismo tem muito pouco ou nada. Se a nós sempre parece que essas questões se equacionam em termos dele, é porque na nossa tradição, não temos outros (e alguns anos de contacto com o protestantismo no Brasil e nos Estados Unidos mostram-me que a mentalidade protestante é ainda mais odiosa). E, pela minha parte, nunca senti senão repugnância pelas religiões orientais e extremo-orientais, tão em moda agora.

Carta de Jorge de Sena, 18 de Fevereiro de 1968, para Eugénio de Andrade em Correspondência

LIMITES


Há uma linha de Verlaine que não mais recordarei,
Há uma rua próxima vedada aos meus passos,
Há um espelho que me viu pela última vez,
Há uma porta que eu fechei até ao fim do mundo.

Entre os livros da minha biblioteca estou (estou a vê-los)
Algum existirá que já não abrirei.
Este verão farei cinquenta anos;
A morte, incessantemente, vai-me desgastando.

Jorge Luís Borges

Legenda: fotograma de O Sétimo Selo de Ingmar Bergman

domingo, 23 de abril de 2017

POSTAIS SEM SELO


Se uma pessoa está condenada a viver sempre com medo mais lhe vale morrer.

Agatha Christie em Morrer Não é o Fim

RECADOS


AO PROFESSOR S. R. K. GLANVILLE

Caro Stephen:

Foi você quem primeiro me sugeriu a ideia de uma história de detectives passada no antigo Egipto, e se não fosse a sua ajuda activa e o seu encorajamento este livro nunca teria sido escrito.
Quero testemunhar-lhe quanto apreciei toda a interessante literatura que me emprestou, assim como agradecer-lhe a paciência com que respondeu às minhas perguntas, o tempo que perdeu e os incómodos a que se sujeitou. O prazer e o interesse que experimentei ao escrever este livro já você conhece.
Sua amiga grata e afeiçoada.

AGATHA CHRISTIE

Dedicatória de Morrer Não é o Fim.

OLHAR AS CAPAS


Morrer Não É O Fim

Agatha Christie
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 237
Livros do Brasil, Lisboa s/d

- Estarás em segurança, Renisenb, porque se descres o carreiro eu descê-lo-ei contigo e nenhum mal te acontecerá.
Mas a jovem franziu a testa e abanou a cabeça.
- Não, Hori, descerei sozinha.
- Porquê, pequena Renisenb? Não terás medo?
- Terei, creio que terei… Mas, mesmo assim, devo fazê-lo. Lá em casa todos tremem, correm aos templos para comprar amuletos e afirmam que não se deve andar neste caminho à hora do pôr do Sol. No entanto, não foi magia o que fez a Satipy cambalear e cair; foi medo, medo provocado por um crime que praticara. È crime cruel roubar a vida a alguém que é jovem e forte e gosta de viver. Mas eu não fiz mal nenhum e, por isso, mesmo que a Nofret me odiasse, o seu ódio não me pode molestar. É assim que penso. De resto, se uma pessoa está condenada a viver sempre com medo mais lhe vale morrer. Sobrepor-me-ei ao meu medo
-Essas palavras são corajosas, Reinsenb.
- São-no talvez mais do que eu, Hori... -  Sorriu-lhe e levantou-se- - Mas fez-me bem dizê-las.

sábado, 22 de abril de 2017

DÉCIMO OITAVO POEMA SOBRE A MORTE DE DEUS


Proibia
a paz entre os amantes.

Dizia: agora agarrem-se
depois esperem o tédio
e no inferno separem-se.
Como se fosse Deus.

António Rego Chaves em Três Vezes Deus

Nota do editor: o primeiro poema está publicado em Dizendo-me Aqui Estou

Legenda: pintura de Van Gogh

QUOTIDIANOS


Durante dez anos Gracinda Rosa foi guarda substituta. Sempre nas passagens de nível em torno da Lamarosa, tendo muitas vezes que percorrer alguns quilómetros pela beira da linha para pegar ao serviço e para regressar a casa. Acompanhava-a o farnel com comida e a garrafa de água, porque alguns dos postos de trabalho onde cumpria turnos de 12 ou 14 horas não tinham sequer um poço. À noite, Gracinda tinha a companhia da lanterna com que fazia sinal aos comboios. De vez em quando, o farol de uma locomotiva varria a escuridão, o comboio passava veloz, e a ferroviária ficava a ver o farol da cauda, a luzinha vermelha a esvair-se na noite. Depois, novamente as trevas.
Dez anos demorou a entrar nos quadros da CP e, mesmo assim, só por ordem do tribunal. «Em 1990 é que entrei para o quadro. Foi o sindicato que tratou de tudo no tribunal. Foi fácil. Entrei para efectiva e ainda recebi uma indemnização».

Carlos Cipriano em Guardas de Passagem de Nível.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

POSTAIS SEM SELO


Sou um homem feliz mas não o digo a ninguém porque os deuses são ciumentos.

Jorge Listopad

DA MINHA GALERIA


Gosto de boleros e gosto muito da Cesária Évora.
Esta é uma extraordinária interpretação de Besame Mucho. Um bolero com um cheirinho a morna.

BASTA UMA JANELA PARA ME FAZER FELIZ


Verdade seja dita: não tenho muitas queixas a fazer do Destino. E aqui no estágio, além do mais, encontrei uma varanda linda: Linda porque Lisboa é linda e vê-se metade dela da varanda da sala 19. Uma vez subi a um quarto andar onde mora um tipógrafo; ia com ganas de lhe comer os fígados, porque me andava a enganar desde que o livro entrara na oficina. Pois recebeu-me, lá no alto, um sol magnífico a cair sobre Lisboa: isto tudo visto por uma pequena janela. Adeus, fúrias, adeus palavras como punhais! Basta uma janela para me fazer feliz e foi o que me aconteceu, quando cheguei à sala 19. Era o castelo, era o Tejo, era a cidade de mármore e granito (como dizem) a espreitar para dentro da aula. Vai, que fiz eu? Como queria tomar o pulso aos rapazes em matéria de escrita, propus-lhes aquele tema. «Da varanda da nossa aula» podia muito bem ser o título da redacção; mas também podia ser outro, à escolha do freguês. O que eles escrevessem servia para eu ver como escreviam, como viam e como imaginavam.

Sebastião da Gama em Diário

NOTÍCIAS DO CIRCO


O reitor do Santuário de Fátima, Carlos Cabecinhas, considerou hoje que a canonização de Francisco e Jacinta Marto, a 13 de Maio, reconhece a importância mundial de Fátima.

INFLUÊNCIA HUMANA


Conheci o William Burroughs quando tinha cerca de 22 anos, no Chelsea Hotel. Eu era bastante nova e o William costumava vir ao hotel com o seu sobretudo negro, as suas camisas e gravatas, e achei que era muito digno e tinha uma paixoneta colegial por ele… Costumava segui-lo por toda a parte e ele costumava dizer-me: «Bem, tu sabes que eu prefiro rapazes…», mas eu respondia-lhe «Tudo bem, eu vou ser a tua miúda de qualquer das maneiras…» Tornámo-nos grandes amigos e ele apoiou muito o meu trabalho. Costumava vir ao CBGB e sentar-se lá, nos primeiros tempos. Foi um grande amigo até morrer, visitei-o até ao fim da vida. Oliver e eu fomos ao seu funeral e está sempre na minha cabeça. Sempre adorei o seu trabalho, mas a maior influência que William Burroughs teve em mim foi uma influência humana. Ele tinha muita dignidade e sempre ensinou uma coisa: «Tem um bom nome, esforça-te por fazer bom trabalho», mas, em termos de sucesso… Para ele, sucesso era: se uma cidade que ele queria visitar o convidasse, mesmo que não tivessem dinheiro nenhum, mas a cidade o trouxesse e o tratasse bem, se lhe dessem algum café. Jantar, um pouco de vinho e amizade, ele actuava. Foi por isso que as coisas correram bem para mim. Vim a Lisboa, convidaram-me para o festival e foi um acto mútuo de fé. Não é um trabalho oficial, mas trouxeram-me cá e trataram-me muito bem, como uma amiga, e em troca eu faço o meu trabalho.

Patti Smith em Outubro de 2007.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

POSTAIS SEM SELO



Onde não há nada nem o diabo rouba.

Provérbio de origem desconhecida

A VIDA NUNCA ME SEDUZIU


No dia 31 de Março, terminei a peregrinação por algumas das páginas do livro que Cristina Carvalho escreveu sobre o seu pai, Rómulo de Carvalho, também poeta António Gedeão.

É tempo de cumprir promessa aqui deixada no dia 17 de Maio de 2011, dia em que comprei, na Feira do Livro, Memórias de Rómulo de Carvalho e em que deixei escrito que voltaria a falar do livro.

Li-o, então, de uma assentada, muitas vezes já o revisitei e, agora, é tempo de cumprir a promessa.

Trata-se de um livro comovente, lindíssimo, envolvente, 557 páginas, o delicadíssimo prazer de escrita de alguém, que, para meu grande espanto, a escassos 14 dias de morrer, deixou escrito:

A vida nunca me seduziu. Entre o viver e o morrer sempre preferi o morrer. Se não tivesse nascido, ninguém daria pela minha falta. Reconheço que estou a ser indelicado com todos aqueles que gostam de mim, mas peço-lhes que me desculpem.

Estas são as primeiras palavras da Introdução das Memórias de Rómulo de Carvalho:

Pois queridos filhos dos netos dos meus netos, tão queridos quanto é certo que nunca teremos trato pessoal. É fácil amarmos as pessoas à distância e por isso nos condoemos dos que padecem quando temos notícias dos sofrimentos, através dos meios de comunicação social. Se as conhecêssemos pessoalmente diríamos que tinham tido o que mereciam, e voltávamos a página. Eu amo-vos por princípio, mas como já haverá tanto sangue diverso entrecruzado nas vossas veias,, pouco teremos de comum.
Saí há dois dias do hospital onde fui sujeito a uma intervenção cirúrgica. Não sei se lá para meados do século XXI precisarão de consultar uma enciclopédia para saberem o que é um hospital. É um estabelecimento onde se recolhem as pessoas necessitadas de cuidados médicos que exigem vigilância activa e o emprego de aparelhagem que não se tem em casa. Recorri ao hospital porque o meu coração (sabem o que é?) precisa de conserto. Enquanto os corações normais funcionam ao ritmo de 70 pulsações por minuto, o meu, pobrezinho, tímido, inadaptado, envergonhado, trabalhava com metade daquele valor. Vinha assim decrescendo, em frequência, desde anos atrás, e preparava-se para me dar uma morte suave, com um suspiro, mais dia, menos dia. No hospital estenderam-me numa cama, abriram-me o peito com um golpe, à frente, à esquerda e em cima, quase a tocar no ombro, e por aí introduziram uma caixinha misteriosa, pequenina e complexa, superiormente sábia, que lá ficou escondida debaixo da pele e do tecido muscular. Da caixinha sai um tubo fininho que foi enfiado ao longo de uma veia até que a ponta tocasse no coração, metendo-o na ordem, fazendo-o pulsar com a frequência devida. Que métodos tão atrasados! Como era aquilo naquele tempo! Dirão vocês. E eu direi: que extraordinário progresso!

PEQUENOS CADERNOS


Nos Pequenos Cadernos há de tudo, como na botica.
Até um recorte da explicação de como surgiram as alheiras.
Pelo-me por alheiras.
Grelos salteados, uma batatinha cozida, um ovinho estrelado.
As alheiras mais maravilhosas que comi, foram as que uma tia do Germano fazia em Montalegre, Verdadeiramente de fabrico caseiro.
A tia do Germano já não se encontra entre nós.
Mas ficou o sabor e o prazer.

NOTÍCIAS DO CIRCO




Jornal de Notícias