Maria do Rosário
Pedreira revelou, há dias, no seu blogue, «Horas Extraordinárias» que,
andando à procura do poema «Ceguinha» de João de Deus foi ter a um
blogue com uma extensa lista de obras literárias relacionados com o problema da
cegueira.
Inevitavelmente,
está nessa lista o Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago - «se
podes olhar, vê. Se podes ver, repara» – e também A Nau de Quixibá
de Alexandre Pinheiro Torres, um livro imperdível.
Curiosamente, o
texto seleccionado do livro de Pinheiro Torres, é um dos muitos pedaços que do livro sublinhei.
Um tanto longo e que aguardava disponibilidade
para ser transcrito.
São páginas muito
bonitas.
Aproveito a
boleia do blogue «Sobre a Deficiência Visual» e transcrevo-as.
Deixo ainda uma
citação de Jorge Luís Borges que um viajante do «Horas Extraordinárias» deixou
na caixa de comentários:
«Para a tarefa de um artista, a cegueira não é
necessariamente uma limitação. Ela pode ser um instrumento».
A blogosfera,
tirando alguma – muita! – javardice que por lá campeia, oferece-nos pérolas que
nos fazem sentir gente.
Esticou o braço para o seu lado esquerdo donde o pobre
do sol, moribundo, ainda fulgurava nas suas barbatanas rápidas,
«Vou-te contar uma história. Havia aqui um homem quase
cego desde nascença. Tanto lhe minguava a luz que, para ele, quem lhe falasse
surgia-lhe como uma mancha equilibrada no alto de um varapau de palavras. Antes
de o conhecer não acreditava que um cego pudesse ter confiança fosse no que
fosse. Sempre dissera a mim próprio: "os cegos são as pessoas mais inseguras
do mundo". com os anos descobri que me enganava. O cego de que te falo
nunca tivera qualquer receio em atravessar as ruas de S. Tomé. Caramba!, sempre
há algum tráfego! Mas se fosse forçado a cruzar uma das ruas da Baixa de
Lisboa, caso estivesse a elas afeito, não seria por se lhe deparar mais
movimento que se mostraria mais aflito. Possuía, desde o mais fundo de si, uma
confiança absoluta no poder da bengala às listas brancas e negras. Um dia
perguntei-lhe: "Você não tem medo dos perigos?" Voltou para mim os olhos
parados (eu seria apenas mais uma mancha, apenas com voz diferente), e
contestou-me: "Que perigos?" O homenzinho mostrava-se
surpreendidíssimo. "Ser cego", disse-me, "também tem as suas
vantagens. Não posso ter medo daquilo que não vejo." Era tão óbvia a minha
incompreensão do mundo do cego que insisti: "Você não tem, por exemplo,
medo das alturas?" Ele riu-se: "Oh!, meu bom senhor!, então vossemecê
julga que eu vejo as alturas?" Olha, meu filho, fiquei com cara de parvo,
mas, como ele não podia ver-me a cara de parvo, aguentei firme.»
Aqui foi acometido por um prolongado ataque de tosse:
"mas que grande chatice!". Entrelaçou os dedos das mãos (notei que a
aliança lhe estava larguíssima), e deteve-se à tona de um sorriso que realmente
era só água:
«E depois?», perguntei-lhe.
Queria animá-lo a mudar de assunto: ressuscitar o sol.
«Bom. Um dia soube-se que vinha de Luanda um
oftalmologista de fama passar aqui umas férias a casa de um irmão, aliás primo
do Governador. Houve gente aí que aproveitou logo para consultá-lo, até eu, mas
alguém falou-lhe do cego, porque o oftalmologista examinou-o e desde logo
afirmou que aquele era um dos casos de fácil cura. O espanto é que o cego
andava como doido. Perguntava a toda a gente: «Que vai ser de mim quando deixar
de ser cego?» Um dia, encontrava-me eu na cidade, vejo-o parado à beira de um
passeio. Não vinha qualquer automóvel, mas havia uma curva perto. Eu atravessei
e ele ficou parado a olhar para todos os lados. Houve um momento em que pôs o
pé direito na rua mas retirou-o logo: «Então você agora é que tem medo de
atravessar?» Ele olhou-me e disse-me: «Reconheço-o pela voz. Já sabia que o
senhor era pequeno, mas não julguei que o fosse tanto!» O cego, aliás o
ex-cego, estava de boca aberta, e, nisto, diz-me uma coisa espantosa: «Oh!, meu
senhor, afinal os cegos têm medo de ver. Pode surgir um carro dali da curva e
eu não ter tempo de ir para o outro lado.»
«Um cego ter medo de ver», pus-me a rir. «Essa
realmente é muito boa.»
O meu Pai é que não ria.
«A história que te contei é uma anedota?»,
perguntou-me.
«Que é então?»
Olhava-o em desafio. «Então na história que te contei,
aliás verdadeira, não há nada de terrível?»
«Terrível?»
Nem tentei procurar uma justificação para o adjectivo.
Terrível, porquê? Mais valia considerá-la uma história de fadas. Imagine-se!,
um cego com tanta sorte que lhe aparece um oftalmologista, como que caído do
céu, e que torna a ver, quando há muito já perdeu as esperanças. Então
enchia-se de medo de ver. «Medo de ver?» Era de escachar a rir.
«E que tal um paralítico com medo de andar?",
ripostei, folgazão. "E um surdo com medo de ouvir? E um mudo com medo de
falar? E um morto com medo de viver?»
Ria, claro, para me vingar. Também precisava de o
ferir. Ele não achava piada nenhuma. Só murmurou, quase inaudível: «E um
cérebro com medo de pensar?» Voltou-se para mim:
«Então tu não percebes que ninguém tinha ensinado o
cego a ver? Puseram-lhe uma bengala nas mãos. A bengala tornou-se-lhe artigo de
fé. Mas quem cuidou de ensinar-lhe como atravessar uma rua por si só, de olhos
abertos, ele que sempre atravessara todas as estradas, pontes, picadas e vaus
da ilha de olhos fechados, defendido pela bengala? Ele viera de um universo que
conhecia. Do seu planeta de cego. Esse era o mundo que tinha aprendido, que lhe
tinham ensinado, o mundo em que acreditava, em que depositava confiança, a que
sabia responder.»
Suspendeu-se. Eu também parei de rir com a certeza
agora confirmada de que a história prolongava a conversa acintosa de há
momentos. Meu Pai realmente era habilidoso. Não dispunha de uma mentalidade
apenas meramente óbvia. Diagnóstico que se me impôs no mesmo segundo que ouvi,
do cofre das lembranças, esta frase de minha Mãe: «Teu Pai foi sempre uma luz
debaixo de um alqueire. Quando nós namorávamos escrevia-me as cartas mais
bonitas que até hoje se escreveram. Ainda hoje sei algumas de cor.» Logo se
fechara arrependida do desabafo.
Ora eis o que me desagradava no meu Pai: a urgência de
contestar, de convencer, de refutar, e, por certo, a de justificar-se como
falhado. Isto num tom a roçar o ostentoso, ou o teatral. Como para demonstrar a
exactidão do meu diagnóstico, fez outro longo gesto para o alto. Para o sol que
morria? Alçando a cabeça e olhando-me como se fosse agora dois ou três palmos
mais alto do que eu, intimou-me com a espingarda apontada do dedo:
«Então vem-nos, de súbito, uma luz de uma fonte
inesperada, vemos o que nunca vimos antes, ficamos a saber que há todo um mundo
para aprender e obstinámo-nos com a bengala? Então descobrimos que a luz de que
antes dispúnhamos até nos encerrava no conforto da cegueira, e não nos
assustamos? O problema do ex-cego é que ele tinha, além do mais, todo o seu
mundo-de-cego para desaprender.»
No seu inesperado entusiasmo quase se ergueu do
cadeirão, de tal forma que me roubava por completo o resto do sol. E eu a gozar
aquele tão minguadíssimo calor com a avareza de Diógenes. Disse-lhe:
«Oh!, meu Pai, estás-me a tirar o sol!» Reclinando-se
novamente na cátedra de palha, respondeu-me com estranhíssima calma:
«Não gostaria que me tivesses vindo ver, e de tão
longe, para eu, como prémio, nem sequer te proporcionar um pouco de luz.»
Houve, de novo, um longo silêncio. A ala esquerda das
nuvens forçava as barbacãs do cume do Calvário. A luta parecia desigual. A bruma
venceria a pedra. Mais próximo do mar, mas muito mais enterrado no algodão
negro do firmamento, o pico de S. Tomé já desaparecera do campo da batalha.
Que significaria a história do cego? Que meu Pai não
se encontrava de acordo com a maneira como a juventude do país era conduzida?
Ora a novidade! Se não errava na moral da parábola, esta constituía mesmo um
insulto disfarçado ao Portugal contemporâneo. Que poderia querer significar
senão que eu, como os meus iguais, vogávamos encantados num mundo que era
imperativo desaprender? Teria meu Pai acabado de se me propor como o
oftalmologista de que eu, na aparência, tanto carecia?
«O cego só começou a ter dúvidas depois de lhe
restituírem a vista...»
Sem comentários:
Enviar um comentário