quinta-feira, 20 de abril de 2017

A VIDA NUNCA ME SEDUZIU


No dia 31 de Março, terminei a peregrinação por algumas das páginas do livro que Cristina Carvalho escreveu sobre o seu pai, Rómulo de Carvalho, também poeta António Gedeão.

É tempo de cumprir promessa aqui deixada no dia 17 de Maio de 2011, dia em que comprei, na Feira do Livro, Memórias de Rómulo de Carvalho e em que deixei escrito que voltaria a falar do livro.

Li-o, então, de uma assentada, muitas vezes já o revisitei e, agora, é tempo de cumprir a promessa.

Trata-se de um livro comovente, lindíssimo, envolvente, 557 páginas, o delicadíssimo prazer de escrita de alguém, que, para meu grande espanto, a escassos 14 dias de morrer, deixou escrito:

A vida nunca me seduziu. Entre o viver e o morrer sempre preferi o morrer. Se não tivesse nascido, ninguém daria pela minha falta. Reconheço que estou a ser indelicado com todos aqueles que gostam de mim, mas peço-lhes que me desculpem.

Estas são as primeiras palavras da Introdução das Memórias de Rómulo de Carvalho:

Pois queridos filhos dos netos dos meus netos, tão queridos quanto é certo que nunca teremos trato pessoal. É fácil amarmos as pessoas à distância e por isso nos condoemos dos que padecem quando temos notícias dos sofrimentos, através dos meios de comunicação social. Se as conhecêssemos pessoalmente diríamos que tinham tido o que mereciam, e voltávamos a página. Eu amo-vos por princípio, mas como já haverá tanto sangue diverso entrecruzado nas vossas veias,, pouco teremos de comum.
Saí há dois dias do hospital onde fui sujeito a uma intervenção cirúrgica. Não sei se lá para meados do século XXI precisarão de consultar uma enciclopédia para saberem o que é um hospital. É um estabelecimento onde se recolhem as pessoas necessitadas de cuidados médicos que exigem vigilância activa e o emprego de aparelhagem que não se tem em casa. Recorri ao hospital porque o meu coração (sabem o que é?) precisa de conserto. Enquanto os corações normais funcionam ao ritmo de 70 pulsações por minuto, o meu, pobrezinho, tímido, inadaptado, envergonhado, trabalhava com metade daquele valor. Vinha assim decrescendo, em frequência, desde anos atrás, e preparava-se para me dar uma morte suave, com um suspiro, mais dia, menos dia. No hospital estenderam-me numa cama, abriram-me o peito com um golpe, à frente, à esquerda e em cima, quase a tocar no ombro, e por aí introduziram uma caixinha misteriosa, pequenina e complexa, superiormente sábia, que lá ficou escondida debaixo da pele e do tecido muscular. Da caixinha sai um tubo fininho que foi enfiado ao longo de uma veia até que a ponta tocasse no coração, metendo-o na ordem, fazendo-o pulsar com a frequência devida. Que métodos tão atrasados! Como era aquilo naquele tempo! Dirão vocês. E eu direi: que extraordinário progresso!

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