segunda-feira, 31 de maio de 2021

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


O ovo de madeira que a mãe de Almodóvar usa para cerzir meias é igual ao que vi na mão de minha mãe. São iguais os ovos de madeira que os filhos viram na mão das mães de famílias pobres ou remediadas. O que é bonito no cinema é ele restituir-nos o tempo perdido, o velho cheiro da bica, o amor que a vida nos fez esquecer. “Dor e Glória”, o filme de Almodóvar, está carregado de passado: tão bonita a cena das mulheres a lavar roupa na ribeira.

O de Tarantino, “Era Uma vez em Hollywood”, também. No corpo, silêncio e vagar de Brad Pitt recuperamos o orgulho de termos sido rapazes, do nosso desembaraço viril, o orgulho de sermos homens.

Manuel S. Fonseca na sua Página Negra

AFASTASTE-A DE TI HÁ ANOS

19 de Outubro de 1991

 A partir dum poema de Vladimir Holan:

 

A MORTE

 

Afastaste-a de ti há anos,

fechaste-a na cave, tentaste esquecer tudo.

Sabias que ela não estava na música, e é por isso que cantavas,

sabias que ela não estava no silêncio, e por isso te calavas,

sabias que não estava na solidão, e por isso estavas só…

pntão que é que poderá ter acontecido

Para te assustares como alguém

que vê de repente, na noite,

um raio de luz sob a porta do quarto do vizinho

onde há muito tempo já ninguém mora?

domingo, 30 de maio de 2021

ELEGIA MÚLTIPLA III


Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
pelo orvalho parado da noite.
Luzia no orvalho. Levava uma flecha
pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado
loucamente
por um caçador de que nada sabia.
E era pelo orvalho dentro.
Brilhava.

Não havia animal que no seu pêlo brilhasse
assim na morte,
batendo nas ervas extasiadas por uma morte
tão bela.
Porque as ervas têm pálpebras abertas
sobre estas imagens tremendamente puras.
Pelo orvalho dentro.
De dia. De noite.
A sua cara batia nas candeias.
Batia nas coisas gerais da manhã.
Havia um homem que ia admiravelmente perseguido.
Tomava alegria no pensamento
do orvalho. Corria.

Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas.
Que têm os olhos cegos como sangue.
Este corria assombrado.
Os mortos devem ser puros.
Ouvi dizer que respiram.
Correm pelo orvalho dentro, e depois
estendem-se. Ajudam os vivos.
São doces equivalências, luzes, ideias puras.
Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar

– a morte é passar, como rompendo uma palavra,
através da porta,
para uma nova palavra. E vejo
o mesmo ritmo geral. Como morte e ressureição
através das portas de outros corpos.
Como uma qualidade ardente de uma coisa para
outra coisa, como os dedos passam fogo
à criação inteira, e o pensamento
pára e escurece

– como no meio do orvalho o amor é total.
Havia um homem que ficou deitado
com uma flecha na fantasia.
A sua água era antiga. Estava
tão morto que vivia unicamente.
Dentro dele batiam as portas, e ele corria
pelas portas dentro, de dia, de noite.
Passava para todos os corpos.
Como em alegria, batia nos olhos das ervas
Que fixam estas coisa puras.
Renascia.

Herberto Helder de A Colher na Boca em Poesia Toda Volume I

sábado, 29 de maio de 2021

POSTAIS SEM SELO


Cantar, dizem, é um afastamento da morte. A voz suspende o passo da morte e, em volta, tudo se torna pegada da vida.

Mia Couto

Legenda: pintura de Paula Rego

O QUE É UM ENGAÇO?


15 de Agosto de 1974

As pessoas esquecem-se (os propagandistas esquecem-se) de que, antes, de pregarem a sua «redenção» têm de pregar a validade dela. É o que está acontecendo com os grupos de jovens que se espalharam pelos recantos do País a levar a alfabetização. «São comunistas», clamaram os caceteiros dos tempos do D. Miguel. E o povo fechou-lhes as portas. Teria razão? Mas mesmo que não clamassem. Antes de alfabetizar, é necessário provar a excelência do alfabetismo. O povo não sabe para que serve ler. O animal também não. É uma ingenuidade, por exemplo, promover o povo da pocilga em que vive à casa limpa em que se deve viver. Quem ama a casa limpa, é quem tem um espírito limpo em que essa casa se coordene com mil outros valores. O que é necessário é revelar-lhe esses valores. É por isso que muita gente em «bairros de lata», podendo viver num andar decente. Simplesmente, para esse «proletário», não é a casa que é um valor: é o carro (em quinta mão), a TV, o bom vestuário, o futebol e a borracheira. Valorizar a casa é ter hábitos de casa: convívio familiar, leitura, isolamento. A casa para o «proletário» é apenas o lugar onde de noite se cuida da demografia e não se apanha (muita) chuva.


Vergílio Ferreira em Conta-Corrente Volume I


Legenda: recorte de um jornal de Abril de 1999, em que o editor desconhece o título do jornal, bem como o autor da prosa.

O Dicionário de Morais diz de engaço:

OLHARES


Todos os anos, o governo da ilha da Madeira compra toneladas de areia que traz de Marrocos, para poder ter uma praia que não seja de pedras. Todos os anos, no final do Verão, o mar come a areia. As ilhas não gostam de cirurgias estéticas.

Claudio Ochman em Ilhas


OLHAR AS CAPAS


Poesia

Luís Miguel Nava

Edição de Ricardo Vasconcelos

Capa. Fotografia de Pedro Silveira

Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro de 2020


Sem Outro Intuito

 

Atirávamos pedras

à água para o silêncio vir à tona.

O mundo, que os sentidos tonificam,

surgia-nos então todo enterrado

na nossa própria carne, envolto

por vezes em ferozes transparências

que as pedras acirravam

sem outro intuito além do de extraírem

às águas o silêncio que as unia.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

SARAMAGUEANDO


10 de Julho de 1993

Nos Poemas Possíveis, que foi publicado em 1966, aparecem uns versos - «Poema a boca fechada» - escritos ainda nos anos 40 e conservados até àquela altura por uma espécie de superstição que me impediu de lhes dar o destino sofrido por tantos outros: não o cesto dos papéis, pois a tanto não chegavam os meus luxos domésticos, mas, simplesmente, o caixote do lixo. Desse poema, as únicas palavras aproveitáveis, ou, para dizê-lo doutro modo, aquelas que o puseram a salvo da tentação destruidora, são as seguintes: «Que quem se cala quanto me calei/ não poderá poderá morrer sem dizer tudo.» Sobre o dia em que elas foram escritas passaram quase cinquenta anos, e se é certo lembrar-me ainda de como era o meu silêncio de então, não sou capaz de recordar (se o sabia) que tudo era aquele que me iria impedir de morrer enquanto o não dissesse. Hoje já sei que tenho de contentar-me com a esperança de ter dito alguma coisa.

José Saramago em Cadernos de Lanzarote Volume II

QUEM MUITO VIU


Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,

mágoas, humilhações, tristes surpresas;

e foi traído, e foi roubado, e foi

privado em extremo da justiça justa;

 

e andou terras e gentes, conheceu

os mundos e submundos; e viveu

dentro de si o amor de ter criado;

quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

 

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe

em sorte como a todos os que vivem.

Apenas não viver lhe dava tudo.

 

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,

será sempre sem pátria. E a própria morte,

quando o buscar, há de encontrá-lo morto.

 

Jorge de Sena em Peregrinatio ad Loca Infecta 

quinta-feira, 27 de maio de 2021

FAZE DE CONTA QUE ÉS FAROLEIRO NAS BERLENGAS

20 de Janeiro de 1943

É uma pessoa que não é de cá. Mas como sabe o que diz e conhece isto às mil maravilhas, hoje, depois de me ver a braços com mais uma encrenca de ditos e e de mal-entendidos, aconselhou-me esta solução, que é a síntese perfeita de toda a possível vida social aqui:

- Não te aflijas, que não vale a pena. Faze de conta que és faroleiro nas Berlengas.

Miguel Torga em Diário Volume II

RELACIONADOS


Sou um velho apreciador de antologias.

Chegou-me às mãos uma revista de ensaios criativos e pessoais, inquietações na primeira pessoa, que dá pelo nome de Mamute, e o volume de que vos falo é o nº 2 referente a esta Primavera.

No editorial, Gonçalo Mira, escreve, entusiasmado, que o nº 1 da Mamute, encontra-se esgotado e isso deixou-o surpreendido.

Não dei pela revista, também terei que dizer que não tenho ido a livrarias, estupidamente o governo, por causa da pandemia, determinou que encerrassem e, como as livrarias independentes de que gostava, fecharam, para sempre portas, não tenho paciência para ir, motivos diversos e muito meus, às que me estão ao pé, como a Leya e a Bertrand na Avenida de Roma.

Devo, a estas antologias de textos, de poesias, muito, mas mesmo muito, do gosto pela leitura. Na biblioteca do meu pai havia uma série de antologias publicados pela Portugália Editora que serviram de trampolim para outros voos: Líricas Portuguesas, organizadas pelo Jorge de Sena, Antologia de Mestres do Conto Policial, Antologia de Obras de António Sérgio, Os Melhores Contos Portugueses, As Melhores Histórias Fantásticas, por aí fora.

Mais tarde comprei as antologias que iam sendo editadas: as da Inova, poesias publicadas nos anos 70 e 71 com direcção do poeta Egito Gonçalves, os textos da Grifo, editados pelo Vitor Silva Marques, As Escadas Não Têm Degraus da Cotovia, mais recentemente, os resumos de poesia publicados pela Assírio & Alvim, começados com a poesia publicada em 2009 e findos com a poesia publicada em 2013.

São cinco os textos deste número da Mamute.

Chamou-me logo a atenção o texto de Margarida Ferra, não só pela referência que tinha da autora como pelo título: Janela de Sacada.

Gosto do nome que logo me remeteu para os meus tempos de infância, passados numas águas-furtadas na Rua da Senhora do Monte, à Graça, uma vista esplendorosa para o Tejo, cheio de fragatas, de navios a descarregarem cereais a granel, a outra margem com as altas chaminés do Barreiro, desprendendo fumos.

A minha avó, nos dias de sol, punha um pano branco para fazer sombra, uma mesinha na pequena varanda daquela águas-furtadas, frente a um rio que é um mar, eu almoçava um bife, batatas fritas às rodelas, um ovo, manjar raríssimo lá pela casa dos meus pais, tempos muito difíceis…

Ficava ali horas.

Sentia que o mundo era maravilhoso e assim seria para todo o sempre.

Ali, era o meu lugar de eleição, uma magia única, um paraíso que não mais voltei a encontrar, qualquer coisa que toca, enfeitiça e que deixou marcante rasto.

Algures, Walter Benjamim diz que para conhecer toda a melancolia de uma cidade, é preciso ter sido lá criança.

 Como António Gedeão, sempre quis voltar a subir aquelas escadas, bater à porta, dizer a quem a abrisse, que um miúdo de 8 anos, em tempos distantes, olhava o Tejo daquela varanda e se poderia rever essa sensação.

Quando subo aquela rua, olho o marco do correio que ainda se encontra junto à porta e, ao contrário de Gedeão, nem as escadas subo.

Dado os tempos de insegurança que se vivem, talvez a ideia não fosse assim tão fácil de concretizar.

Quanto ao nome de Margarida Ferra, com o livro Curso Intensivo de Jardinagem, ainda está numa longa lista de livros a comprar. O livro foi editado, em 2010, pela & etc e nunca o encontrei nas livrarias, porque são livros que raramente descem aos escaparates, ninguém os compra, dão pouco lucro, ao contrário do lixo «escrito» por «pivots» e outros personagens de televisão ou do futebol.

Por uma manhã de Abril de 2014, quando finalmente concretizei uma visita ao subterrâneo do Vitor Silva Tavares, na Rua da Horta Seca, tantas e tantas vezes prometida aquando de nossas conversas em todas as Feira do Livro, até ele sair pela esquerda alta não sei para onde, («olhe que a acampainha, por vezes, não toca…») levava uma lista de alguns livros editados pela & etc., tenho o nº 1 da Colecção, todos os do Eduardo Guerra Carneiro, do João César Monteiro,  mas faltam-me alguns do Jorge Fallorca, a Carta ao Pai do Kafka  e o da margarida Ferra. O Vitor ainda se levantou da secretária, percorreu as estantes, não tinha nenhum dos livros que eu queria, desolado disse-me que iria falar com o Paulo da Costa Domingos e se tivesse alguma sorte me comunicaria.


O texto da Margarida Ferra, publicado neste volume da Mamute, espraia-se pela dificílima experiência que a autora enfrentou, um mês em casa com Covid, numa narrativa comovente e, num ápice, o leitor fica enredado naquela intensa comoção: janelas quase sempre abertas, um companheiro em tratamentos oncológicos, «cresce muito, o medo, quando tememos pelos que amamos», três filhos (15, 13, 2 anos), um gato, o frigorífico que se supõe avariado, a televisão que se recusa a fornecer imagens, a solidariedade dos amigos, dos familiares, dos vizinhos, as mensagens que a educadora do filho mais novo lhe manda, um postal da Hélia, as flores da Ana entregues por uma rapariga sorridente de bicicleta, a rua que a janela de sacada empresta, rua onde um inimigo sem rosto, implacável nos cerca, ameaça e humilha, mas tudo tão difícil por aqueles dias… tudo… a comida que tem de ser feita, um esparguete com ameijoas, o lamento por ter saído demasiado cosido quando lhe pareceu que a textura se afigurava «al dente», ah! e onde o sabor dos coentros?... também os testes do olfacto, cheirar mil vezes o café, cada vez mais longínquo... uma frase sentida : «nessa noite, jantei sem fome…», também a preocupação com os estudos dos miúdos «terei sempre dificuldade em perceber a carga de trabalhos que o ensino à distância trouxe a estes alunos.»

Se cada um fizesse o registo dos confinamentos que nos invadiram o quotidiano, ficariam as imagens escritas de que há sempre uns piores que outros, que há sempre histórias, experiências tristes, deslumbrantes, o ficarmos a saber que é possível, sempre, enfrentar os perigos, as dificuldades, somos por ventura melhores do que aquilo que pensamos saber.

Cá por casa também estivemos perfilados de medo, como na canção do Zé Mário Branco, confinados,  mas nunca doentes.

Saíamos pouco de casa, os filhos traziam o que era necessário, ocorreu-me, então, escrever sobre o desfiar daqueles dias, comecei a 18 de Março, não fui além de 3 de Maio, estão por aí com a etiqueta Diário dos Dias Difíceis.

Não que entendesse que os dias não iriam a continuar a serem difíceis, mas perdi-me, nada era como inicialmente previra fazer, acabei por cair em extremismos opinativos, em lamechices parvas, as palavras nunca saíam como queria que saíssem, e não vislumbrava ponta alguma daquele novelo…

Pus as culpas na historieta que os dias do vírus me perturbavam.

Balelas.

Senti que para continuar a viver os dias de pesadelo, teria que viver de forma mais inteligente, mas os tempos eram medíocres, repletos de chicos-espertos-opinativos, repletos de aldrabões e oportunistas, um oceano de palradores televisivos: use máscara, não use máscara, as melhores são aquelas que…

Tinha saudades da vida, mesmo sabendo que essa vida não tinha excepcionalidades por aí além, mas era a minha vida, a possível.

Sobravam-me, sobrarão para sempre, muitas dúvidas que essa tal vida nos volte a acontecer.

Quando os gestos diários estão sujeitos a estados de emergência ou de calamidade, sabia que nada disso provoca serenidade, tentava o meu melhor esforço para irradiar um ligeiro optimismo, mas…

Um dia, numas imagens que as televisões deram do encontro que a CGTP realizou no 1º de Maio, ficou-me uma: um homem já de meia-idade, máscara no rosto, bandeira vermelha na mão, tem um minuto em que baixa a máscara, põe a bandeira vermelha debaixo do braço, e mete um cigarro à boca. O repórter demora um pouco a imagem, mas segue para outros personagens, e eu sorri largo, fiquei a pensar no prazer do fumar que aquele homem de meia-idade conquistou naquele manso cair da tarde.

Fumar mata!

E daí?

Morre-se de tanta coisa.

Até de amor, como o King Kong, seguindo os passos de um texto-poema do Eduardo Guerra Carneiro.

Daqueles dias cruéis, de gratificante ficou pela casa o cheiro do bolo de laranja/limão que eu e a Aida, comíamos acompanhado com tisanas, perto das 2/3 horas da madrugada, quando terminávamos, mantas nos joelhos, o visionamento de velhos filmes em DVD e sempre a enorme frustracção de não podermos olhar, por avaria técnica, as tais 650 (180 minutos cada) cassettes VHS, com outros velhos filmes, documentários, concertos.

Tempo de deixar esta janela de sacada:

«A janela chega até ao chão. E tem uma porta como se levasse a uma varanda, protegida por uma grade de ferro trabalhado, sem lugar para pôr os pés. Sem espaço para avançar. Um rectângulo alto, uma falsa promessa de um piso diferente.»

Mas ainda o tempo para reencontrar, algures no texto, uma frase:

«O mais difícil está sempre para vir.»

OLHAR AS CAPAS


Mamute

Nº 2, Primavera 2021

Director e Editor: Gonçalo Mira

Textos de:

Mariana Rezende Pinto

Carolina Ferreira Baptista

Margarida Ferra

Miguel Szymanski

Yara Monteiro

Capa: Ana Freitas

Revista Mamute. pt

 

A vida é uma corrida, por isso se fala em curriculum vitae. Tive de enviar muitos. No jornalismo não conseguia trabalho. Se fosse necessário, iria arranjar jardins ou conduzir um táxi. Mas tinha de sair de Portugal, como tantos outros da minha geração e outros tantos mais novos e mais velhos. Candidatei-me para escrever textos para uma empresa de leilões de instrumentos de corda antigos em Konstanz. Como prova de admissão, pediram-me um texto sobre um violino Mittenwald do século XIX. A directora da leiloeira ligou-me e perguntou-me quanto queria ganhar. Tinha feito as contas, para sustentar a família – entretanto casara e já tínhamos duas filhas -, numa cidade tão cara precisava pelo menos de dois mil euros por mês. Foi o que pedi. A senhora disse-me que por menos de 1.500 arranjava um colaborador doutorado em História de Arte.

(Do texto A manta Amarela de Miguel Szymanski).

ANNABEL LEE


Foi há muitos e muitos anos já,

Num reino de ao pé do mar.

Como sabeis todos, vivia lá

Aquela que eu soube amar;

E vivia sem outro pensamento

Que amar-me e eu a adorar.

 

Eu era criança e ela era criança,

Neste reino ao pé do mar;

Mas o nosso amor era mais que amor —

O meu e o dela a amar;

Um amor que os anjos do céu vieram

a ambos nós invejar.

 

E foi esta a razão por que, há muitos anos,

Neste reino ao pé do mar,

Um vento saiu duma nuvem, gelando

A linda que eu soube amar;

E o seu parente fidalgo veio

De longe a me a tirar,

Para a fechar num sepulcro

Neste reino ao pé do mar.

 

E os anjos, menos felizes no céu,

Ainda a nos invejar…

Sim, foi essa a razão (como sabem todos,

Neste reino ao pé do mar)

Que o vento saiu da nuvem de noite

Gelando e matando a que eu soube amar.

 

Mas o nosso amor era mais que o amor

De muitos mais velhos a amar,

De muitos de mais meditar,

E nem os anjos do céu lá em cima,

Nem demónios debaixo do mar

Poderão separar a minha alma da alma

Da linda que eu soube amar.

 

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos

Da linda que eu soube amar;

E as estrelas nos ares só me lembram olhares

Da linda que eu soube amar;

E assim ‘stou deitado toda a noite ao lado

Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,

No sepulcro ao pé do mar,

Ao pé do murmúrio do mar.

 

Edgar Allan Poe, tradução de Fernando Pessoa

 

Legenda: fotograma do filme Way Down East de D.W. Griffith

Poema e fotograma tirados de  Um Mar de Filmes, Cinemateca Portuguesa 

quarta-feira, 26 de maio de 2021

PARA UM ETERNO DEPOIS DE AMANHÃ...

3 de Janeiro de 1967

 Reparei hoje no seguinte: com o desfazer dos anos, cada vez se dilui mais em mim a ideia da morte.

Dir-se-ia que, graças a determinantes fisiológicas e resultados psicológicos, já entrei naquele primeiro estádio saudável da velhice natural que se caracteriza pelo adiamento da morte para o futuro longínquo de um eterno depois de amanhã…

O abismo afasta-se… Sempre mais depressa do que os pés do viandante…

 José Gomes Ferreira em Dias Comuns Volume II

OLHAR AS CAPAS


 O Caso do Fantasma Sedutor

Erle Stanley Gardner

Tradução:  Fernanda Pinto Rodrigues

Colecção Vampiro nº 259

Livros do Brasil, Lisboa s/d

Foi Della Street, a secretária de Perry Mason, quem primeiro chamou a atenção do advogado para o fantasma sedutor.

- Porque está a sorrir? – perguntou-lhe Mason, quando Della dobrou um jornal e lho estendeu.

- Isto deve-lhe interessar.

- De que se trata?

- De um fantasma que algumas pessoas viram, a noite passada, no Sierra Vista Park, de um fantasma muito atraente. Um fantasma sedutor. Daria um caso que lhe interessaria.

- Você já me interessou.

Pegou no jornal que Della Street lhe estendia e leu, em cabeçalho:

FANTASMA SEXY ASSUSTA NAMORADOS RAPARIGA PERSEGUE-O COM UMA MANIVELA

GOSTAVA DE GOSTAR DE GOSTAR


Gostava de gostar de gostar.

Um momento... Dá-me de ali um cigarro,

Do maço em cima da mesa de cabeceira.

Continua... Dizias

Que no desenvolvimento da metafísica

De Kant a Hegel

Alguma coisa se perdeu.

Concordo em absoluto.

Estive realmente a ouvir.

Nondum amabam et amara amabam (Santo Agostinho).

Que coisa curiosa estas associações de ideias!

Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.

Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...


Álvaro de Campos em Poesias


terça-feira, 25 de maio de 2021

LIDOS QUASE CLANDESTINAMENTE

Escrever poesia, como editar poesia, como sobretudo ler poesia, é um acto de amor louco, gratuito e perdulário em tempos como estes, de prosa e de literatura de negócios. As poucas dezenas de exemplares que os prelos, nos intervalos das facturas, dos cartões de visita e dos romances do Lobo Antunes, dão à estampa são lidos quase clandestinamente, no segredo dos quartos, por seres fugidios e perversos, e recolhidos depois no fundo das gavetas intemporais da maledicência dos colegas do escritório e dos assinantes das «Selecções». Ou são lentamente folheados nos cafés, às horas mortas em que os vendedores já voltaram às ruas e os empregados bancários aos balcões, por aristocratas pálidos e decadentes e por vagos estudantes de Letras.

Manuel António Pina em Crónica, Saudade da Literatura

NOVAS CARTAS PORTUGUESAS


O jornal Público atingiu níveis de ilegibilidade. Pelo menos para os meus olhos. Virou neo-liberal e de direita.

Mas ainda mantém uns certos laivos de outros bons tempos. É o caso de ter iniciado uma colecção, Censura no Feminino, que reúne 10 obras de autoras portuguesas proibidas pela Censura, publicadas em fac-símile, e custam, cada um, 6,50 euros.

O primeiro volume da colecção foi Novas Cartas Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.

Pelos temas abordados, pela qualidade da escrita, o livro terá de ser, obrigatoriamente, lido por quem nunca o fez e passarão a saber da dimensão política e social que contém. Os tempos eram os da enganosa primavera política de Marcelo Caetano mas ainda hoje retém uma assombrosa actualidade.

«E a minha mãe fartou-se de moer o meu pai com palavras e choros, homem não te metas nestas coisas, olha o resultado que dá, a gente aqui a morrer de fome e os outros de barriga cheia, que o patrão não os castigou mas só a ti que eras o das ideias.

Que uma das tarefas dos patrões é a de castigar os empregados e a tarefa dos empregados é a de trabalhar para os patrões a fim de estes ficarem mais ricos e mais patrões. Talvez eu um dia case com um patrão.

A verdade é que isso não quer dizer nada, pois quando o meu pai vem bêbado e bate na minha mãe, grita: aqui eu é que sou o patrão. E ela cala-se e põe-se a chorar baixinho.»

Segundo Ana Luísa Amaral, foi em Maio de 1971, que Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa decidiram escrever um livro a seis mãos.

Em Janeiro de 1972 dão a obra como concluída e, em Abril, o livro seria publicado  pelas Estúdios Cor, então com direcção literária de Natália Correia que, mesmo tendo sido instada a cortar partes da obra, a publicou na íntegra.

O  pide-censor, a quem a obra foi atribuída para leitura e opinião, não teve dúvidas:

«Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referência, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução e processo-crime».

No processo podia ainda ler-se que o livro era pornográfico e a tentório da moral pública.

A Pide invadiu a editora e as livrarias e procedeu à apreensão da obra.

Chamadas à esquadra, as três autoras só não foram imediatamente presas porque Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa pagaram uma caução de quinze contos. Maria Isabel Barreno, por sua vez, provou que não tinha posses para isso e, em contrapartida, teve de comparecer uma vez por mês na polícia, para ofício de corpo presente. Posteriormente, David Mourão-Ferreira emprestou-lhe o valor para que também ela pudesse pagar a caução.

O julgamento começou a 25 de Outubro de 1973 e, nos interrogatórios, a acusação tentou por todos os meios saber quem escrevera o quê. Nunca o souberam e, Maria Teresa Horta, a única das autoras que ainda está entre nós, sobre essa autoria,  já disse que levava com ela o segredo.

O julgamento nunca veio a ter um fim.

Em Abril de 1974, um juiz mandava em paz as três Marias. 

Um livro de coragem dentro do cinzentismo ditatorial daqueles dias tão amargos.

Ana Luísa Amaral, é de opinião que o livro está muito além do seu tempo. Como as grandes obras normalmente estão. Entendo que este livro é uma grande obra, é um grande livro dentro da literatura portuguesa do século XX, dentro da história dos direitos humanos do século XX.

«Nas ancas tenho ainda a marca dos teus dedos; a marca da tua boca, o traço molhado da tua língua, dos teus dentes.

Desço:

macio deve ser o chão que as árvores conservam com a sua seiva.

Não necessàriamente meu amor sem ti a liberdade ou a pressa de morte do meu corpo»

GRITO


Em breve vou nascer no

mundo dos mortos    Ser nele

o nascido mais recente

e robusto   sacudido

 

pelos pés e levar uma

palmada no rabo e dar

dentro da morte o grito

nunca dado dentro da vida

Alexandre Pinheiro Torres em A Terra de Meu Pai

segunda-feira, 24 de maio de 2021

PESADELOS DE CONSCIÊNCIA

18 de Junho de 1967

Além das terríveis insónias e das distonias e neurovegetativas que me tornam penosas as noites (sobretudo o adormecer, que é uma espécie de luta entre o inconsciente e o consciente em que este se não deixa eclipsar por aquele), o meu sono é sempre dos tais em que se acorda mais cansado que ao deitar. Os sonhos são intermináveis discussões comigo mesmo ou com os outros, espécies de perpétuos exames de consciência em que o aluno fica sempre reprovado… As minhas manhãs são por isso sorumbáticas e amargas. Pesadelos de consciência. Foi uma boa praga, isto de me fazerem médico! Como pode debruçar-se atentamente sobre o sofrimento dos outros quem está em ferida por dentro?

Mário Sacramento em Diário

NA CIDADE ONDE ENVELHEÇO


Na cidade onde envelheço

não há brisa

há vento

 

A brisa é para o amor

e para os cabelos

 

Na cidade onde envelheço 

a roupa tem de secar

durante a noite

os operários levantam-se cedo

 

e o seu amor é simples

e no trabalho

 

António Reis em Poemas Quotidianos 

Legenda: imagem Shorpy

domingo, 23 de maio de 2021

O LUGAR SUSPENSO DA INFÂNCIA

13 de Setembro de 1991

Num texto do JL, sobre a nova mitologia cultural europeia, Eduardo Lourenço retoma o velho tópico de que apenas fomos felizes no lugar suspenso de uma infância irrecuperável. Quantas vezes não o ouvi dizer, e talvez, sonâmbulo, o tenha repetido? De quando em quando, na fórmula mágica da teoria: a infância é o espaço do Outro.

Sou sensível, como o não seria?, à ressonância intelectual destas formulações, com uma ressalva, que talvez explique tudo, isto é, nada: nenhuma perda, nenhuma relação de nostalgia, nenhum dilaceramento visceral, me liga à infância. Que foi feliz, sim, acho que sim. Mas a única infância verdadeiramente feliz foi a que me acompanhou pela vida fora – até hoje, até amanhã de manhã. Se tenho algum trabalho, é o de merecê-la – dia a dia. Pouco a pouco, fui-me sentindo capaz disso: um desprendimento, uma desenvoltura, uma isenção (sentar-me na relva, rodeado de vida por todos os lados, e olhar a vida a ver-se a si mesma). A minha infância é afinal o pressentimento quotidiano do que tem efectivamente importância.

(Talvez uma excepção, mas insistente: o dia em que festejavam o dia dos meus anos.)

Por vezes, ao fim da tarde, andando por aqui, nestas ruas do Marais, pergunto: não será esta a minha mais bela recordação de infância?

Eduardo Prado Coelho em Tudo o Que não Escrevi

POEMA DO HOMEM SÓ


Sós,

irremediavelmente sós,

como um astro perdido que arrefece.

Todos passam por nós

e ninguém nos conhece.

 

Os que passam e os que ficam.

Todos se desconhecem.

Os astros nada explicam:

Arrefecem

 

Nesta envolvente solidão compacta,

quer se grite ou não se grite,

nenhum dar-se de outro se refracta,

nehum ser nós se transmite.

 

Quem sente o meu sentimento

sou eu só, e mais ninguém.

Quem sofre o meu sofrimento

sou eu só, e mais ninguém.

Quem estremece este meu estremecimento

sou eu só, e mais ninguém.

 

Dão-se os lábios, dão-se os braços

dão-se os olhos, dão-se os dedos,

bocetas de mil segredos

dão-se em pasmados compassos;

dão-se as noites, e dão-se os dias,

dão-se aflitivas esmolas,

abrem-se e dão-se as corolas

breves das carnes macias;

dão-se os nervos, dá-se a vida,

dá-se o sangue gota a gota,

como uma braçada rota

dá-se tudo e nada fica.

 

Mas este íntimo secreto

que no silêncio concreto,

este oferecer-se de dentro

num esgotamento completo,

este ser-se sem disfarçe,

virgem de mal e de bem,

este dar-se, este entregar-se,

descobrir-se, e desflorar-se,

é nosso de mais ninguém.


António Gedeão de Teatro do Mundo em Poesias Completas

NÃO ME TINHAM DITO...

21 de Dezembro de 1966

O Sá Nogueira contou ao Nikias esta «anedota» verdadeira do nosso presidente, durante a inauguração de não sei quê em não sei onde… Um edifício qualquer em que existia, dependurada na parede, uma tapeçaria do Charrua, tecida com as cores predominantes do vermelho e verde.

O nosso Thomaz, ao ver aquilo, saiu-se com esta:

- Não me tinham dito que havia descerramento de lápide!

José Gomes Ferreira em Dias Comuns Volume I

sábado, 22 de maio de 2021

TU ME SONDAS, SENHOR, E ME CONHECES


Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Sabes quando me sento e me levanto,
de longe tu escrutas as menores intenções,
reconheces a minha marcha e vigias o meu sono.
Nada de mim te é estranho.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Estás em frente do meu rosto, estás atrás das minhas costas,
e pousaste a tua mão sobre a carne do meu ombro.
— Oh, tua ciência é a mais prodigiosa.

Como fugir à tua Face, como evitar teu Espírito?
Acho-te nos campos celestes e nas funduras da treva.
Se voo nas asas da luz para o outro lado das águas,
agarra-me a tua mão que jamais me deixará.
E se as trevas sem astros se derrubam sobre mim,
para teus olhos as noites nada mais são do que luz.

Foste tu, eu sei, quem ergueu a minha carne,
quem lentamente me urdiu no ventre de minha mãe.
Maravilho-me ao pensar no enigma criado.
De há muito já decifravas labirintos da minha alma,
e vias erguer-se a máquina dos meus ossos obscuros.
Minha vida estava inscrita no teu livro encoberto.
Ainda antes do tempo fixaras os meus dias.
Mas os teus, os teus enigmas, quem os pode decifrar?
Que se estendem pelo tempo como na terra as areias.
Odeio os teus inimigos com um ódio absoluto.
Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Tu que sabes do meu sono e da minha marcha incerta,
dá-me o caminho secreto para a tua eternidade.

Herberto Helder, excerto do poema Psaltério de O Bebedor Nocturno em Poesia Toda 1º volume. O poema é uma versão dos Salmos 137, 88, 22, 42, 57, 69 e 139, segundo montagem de Jean Griosjeam.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

DEFINITIVAMENTE...

4 de Julho de 1993

Deus, definitivamente, não existe. E se existe é, rematadamente um imbecil. Porque só um imbecil desse calibre se teria lembrado de criar a espécie humana como ela tem sido, é - e continuará a ser. Agora mesmo, aqui na vizinha ilha de Hierro, quatro populações engalfinharam-se à pancada porque todas elas se achavam com direito a levar às costas um pedaço de pau a que chamam Virgen de los Reys. E em Sivas (Turquia) uma pandilha de criminosos de «direito religioso», chamados integristas islâmicos, incendiaram o hotel onde vivia Aziz Nesin, editor de alguns capítulos dos Versos Satânicos no jornal de esquerda Aydinlik. Da façanha dos dilectos filhos de Alá resultaram 40 mortos e 60 feridos. Nesin foi salvo pelos bombeiros, esses abnegados «soldados da paz», que depois quiseram emendar a mão e linchá-lo quando o reconheceram. A intervenção de um polícia salvou a vida ao homem.

José Saramago em Cadernos de Lanzarote, Volume I

OLHAR AS CAPAS


Engano

Philip Roth

Tradução: Francisco Agarez

Capa: Rui Garrido

Publicações Dom Quixote, Lisboa, Janeiro de 2013

O senhor faz parte da massa de homens que vêm infligindo às mulheres grande sofrimento e extrema humilhação… humilhação de que só agora começam a ser libertadas, graças à ação incansável de tribunais como este. Porque é que publicou livros que infligem sofrimento às mulheres? Não pensou que esses livros podiam ser usados contra nós pelos nossos inimigos?

- A única coisa que posso dizer é que essa vossa suposta democracia da igualdade de direitos tem propósitos e objetivos que não são os meus como escritor.

- Por favor, o tribunal não está interessado em ouvir mais uma das suas lições de literatura. Na sua obra, todas as mulheres são estereótipos maliciosos, Era esse o seu propósito como escritor?

- Há muita gente que lê a obra de maneira diferente.

APRESENTAÇÃO DE UMA CRIANÇA AO SOL


Chegou o dia.

Filho

ficarás de pé

durante a luz do dia.

Passámos os nossos dias

preparando o teu dia.

Quando se cumpriram os teus dias,

quando passaram oito dias,

nosso pai o sol

veio sentar-se no seu lugar sagrado,

e como saíram os nossos pais da noite,

e estão agora no seu lugar sagrado,

viemos nesta noite propícia.

Agora  os nossos pais, sacerdotes da aurora,

saíram e estão no seu lugar sagrado.

Nosso pai o Sol

saiu e está no seu lugar sagrado.

Filho, é o teu dia.

Neste dia,

suplicamos e oferecemos a carne do milho branco,

ao nosso pai o Sol a oferecemos,

suplicamos e oferecemos esta farinha.

Podes percorrer o teu caminho,

podes  alcançar o caminho do teu pai o Sol?

Quando tiveres percorrido o teu caminho,

poderemos viver nos teus pensamentos,

poderemos ser aquilo a que os teus pensamentos se fecharam?

Por isso ao nosso pai o Sol a oferecemos,

suplicamos e oferecemos a carne do milho branco,

oferecemos esta farinha.

E por tudo isso

podes ajudar-nos a todos a cumprir os nossos caminhos?

 

América do Norte, Zunhis, versão de Herberto Helder em Rosado Mundo

quinta-feira, 20 de maio de 2021

POSTAIS SEM SELO


«A Cultura é a maneira de as pessoas viverem, é aquilo que pensam. É de todos os cidadãos, não só dos que têm dinheiro para comprar cultura. A Cultura não é uma coisa que se compre, é uma coisa que se vive».

Luís Miguel Cintra, juntamente com Jorge Silva Melo, distinguido com o grau «doutores honoris causa» pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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Maria Archer  nasceu em Lisboa a 4 de Janeiro de 1899 e morreu, também em Lisboa, a 23 de Janeiro de 1982.

Só terminou a escola primária aos 16 anos, tendo para isso que insistir com seus pais, que achavam desnecessária a sua formação.

Escritora, lutadora pelos direitos humanos.

Perseguida pela PIDE, foi obrigada a refugiar-se no Brasil. Depois do 25 de Abril regressou a Portugal com poucos meios de subsistência. O país, já democrático, negou-lhe a dignidade, o respeito, tudo o que lhe era devido pelas causas por que se bateu. Merecia que lhe dessem algo mais do que lágrimas de crocodilo, e até essas faltaram. Regressou pobre do Brasil, mas não queria caridadezinha, queria o respeito a que tinha direito por ter ajudado, pela sua atitude cívica e de escritora, a liquidar um regime opressivo e senil.

Morreu só, no Asilo de Santa Maria de Marvila.

Consideraram-na uma das principais mulheres escritoras portuguesas, talvez a grande ficcionista da primeira metade do século passado.

Disse João Gaspar Simões, em 1930:

 «Não conheço mesmo outra (escritora portuguesa) que à audácia dos temas e das ideias alie uma expressão tão enérgica e pessoal. O seu estilo respira força e solidez.»

Considerou ainda que apenas dois nomes eram dignos de emparceirar com os escritores homens: Maria Archer e Irene Lisboa.

Maria Archer, uma prosa elegante, século passado, uma prosa amável.

Recordo-me de ter lido este «Casa Sem Pão.

Por motivos que desconheço, o livro, quando fechei a cada do meu pai, não estava nas estantes.

A edição que hoje aqui se recorda, é o 3º volume da Colecção Censura no Feminino que o jornal Público tem vindo a publicar em edições fac-símile.

Foi o segundo livro de Maria Archer proibido pela PIDE.

A obra foi proibida aquando da sua publicação, em 1947, vindo a ser autorizada, embora com cortes, 12 anos depois.

O censor-leitor foi o capitão Rodrigues de Carvalho que não tem dúvidas em «achar perniciosa a divulgação deste livro sob o ponto de vista da moral social.» e para que não existam quaisquer dúvidas junta ao processo, «um relato desenvolvido com as transcrições dos passos mais escabrosos.»

Uma parte imoral, assim considerada pelo capitão-censor, aparece na pág. 60:

«Os passos de Felismina soam na passadeira do corredor. A chave da porta do seu quarto corre na fechadura. As duas raparigas fecham-se mais no silêncio e dobram-se sobre o bordado. Ambas pensam no pai e em Felismina, um homem e uma mulher fechados à chave no mesmo quarto, a despirem-se, a dormirem na mesma cama.. Ambos pensam em que seu pai, metido com uma mulher no quarto, está fazendo uma coisa vergonhosa, e em que Felismina não é uma pessoa de sentimentos. A Clarisse ensaia, timidamente, uma censura, em voz quase imperceptível:

- Casam-se para fazerem porcarias… 

OLHAR AS CAPAS


Casa Sem Pão

Maria Archer

Empresa Contemporânea de Edições, Lisboa, 1947

As estantes dos livros estão na saleta. O coronel tem as suas estantes fechadas à chave e traz consigo o molho das chaves. Nas prateleiras alinham as lombadas coloridas de várias colecções de romances, de Camilo, de Júlio Diniz, de Herculano, mas há também o Abel Botelho, o Balzac, o Zola. Adriana nunca entra na saleta sem demorara os olhos ávidos nas lombadas dos romances. Não há nada no mundo que deseje com mais intensidade que ler esses livros! Lá leu um romance, «A Morgadinha dos Canaviais». E que maravilha!... as suas leituras, até então, foram limitadas às «selectas» de português e francês, aos folhetins do «Notícias» e do «Ilustrado. Todos os dias lê o jornal de ponta a ponta. Mas é pouco para a sua fome de romanesco. Sabe que o pai tem as suas estantes fechadas para salvar as filhas dos riscos das más leituras. É o que o pai lhe diz. Adriana não discute a vontade do pai mas não se convence da sua razão.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

E NADA TENHO A DIZER


22 de Julho de 1974

Vou perdendo o jeito da escrita. Sufocado de jornais, rádio, TV. Tenho imenso a dizer – e nada tenho a dizer.

A valer a pena dizer. É necessário libertar-me disto, voltar à literatura. É a terra donde sou. O mais chocante de tudo era o que eu já sabia: que os homens são moralmente inferiores. E intelectualmente curtos. Daí resulta a submissão total aos que julgam vencedores e a miséria que lhes ordena o comportamento; como deriva a incapacidade de olhar o horizonte mais distante. A sedução do provisório vem de que têm os resultados à vista, os benefícios à vista. Aí joga por isso a maioria, porque todos gostam de vencer. Jogar na vitória a longo prazo é uma chatice, exige uma coragem e inteligência que não cabem no comum «bípede sem penas» (Aristóteles – Metafísica). Bom. Onde jogo eu? Creio que em parte nenhuma, porque não sou exemplar. Ao menos sei onde devia jogar. Todo eu estou no conflito entre o gosto da maioria e o que sei ser o destino da minoria.


Vergílio Ferreira em Conta Corrente Volume I