Todos
os olhos duma mulher jogados sobre o mesmo quadro. As feições do ser
amado perseguido pelo destino sob a flor
imóvel de um sórdido papel pintado
A
erva branca do assassínio numa floresta de cadeiras
Um
mendigo de cartão desventrado sobre uma mesa de mármore
As
cinzas de um charuto sobre o cais duma estação
O
retrato dum retrato
O
mistério duma criança
O
esplendor inegável dum aparador de cozinha.
A
beleza imediata dum farrapo ao vento.
O
louco terror da armadilha num olhar de pássaro
O
absurdo relincho dum cavalo descosido
A
música impossível das mulas de guisos
O
touro morto coroado de chapéus
A
perna nunca igual duma ruiva adormecida e a orelha com as suas maravilhas
O
movimento perpétuo apanhado à mão
A
imensa estátua de pedra dum grão de sal marinho
A
alegrai de cada dia e a incerteza de morrer e o ferro do amor na chaga dum
sorriso
A
mais longínqua estrela do mais humilde dos cães
E
salgado sobre uma vidraça o tenro gosto do pão
A
linha da sorte perdida e achada quebrada e endireitada adornada dos farrapos
azuis da necessidade
a
vertiginosa aparição dum cacho de uvas de Málaga sobre um bolo de arroz
um
homem numa pipa derrubando a copos de tinto a saudade da terra
E
a luz cegante dum pacote de velas.
Uma
janela para o mar aberta como uma ostra.
O
casco dum cavalo o cabo nu duma sombrinha
A
graça incomparável duma rota sozinha numa casa muito fria
O
peso morto duma pêndula e os seus momentos perdidos
O
sol sonâmbulo que acorda em sobressalto a meio da noite a Beleza
sonolenta e de súbito deslumbrada
que deita sobre os ombros
o pano da chaminé e o arrasta
consigo no negro de fumo
mascarado de branco de Espanha
vestida de papéis colados
E
tantas coisas mais
Uma
viola de madeira verde embalando a infância da arte
Um
bilhete de caminho de ferro com todas as suas bagagens.
A
mão que expatria um rosto que desfigura uma paisagem
O
esquilo acariciante duma rapariga nova e nua
Esplêndida
sorridente feliz e impudica
Surgindo
imprevistamente do troco apodrecido dum armário de garrafas
ou dum armário de música como
uma panóplia de plantas verdes
vivazes e fálicas
Surgindo
também imprevistamente do tronco apodrecido
Duma
palmeira académica nostálgica e desesperadamente belo antigo como o
antigo
E
as campânulas de vidro da manhã quebrada pelo grito dum jornal da noite
As
terrificantes pinças dum caranguejo emergindo do fundo de um cesto
A
última flor duma árvore com as duas gotas de água do condenado
E
a noiva bela de mais sozinha e abandonada sobre o divã carmesim do ciúme
pelo lívido pavor dos seus
primeiros maridos
E
depois um jardim de inverno sobre o espaldar dum trono uma gata inquieta
e o bigode da sua cauda sob
as narinas dum rei
A
cal viva dum olhar no rosto de pedra duma velha sentada junto dum cesto
de verga
E
crispadas sobre o zarcão fresco do parapeito dum farol todo branco as duas
mãos azuis de frui dum Arlequim errante
que olha o mar e os seus grandes
cavalos dormindo do sol poente e que
depois acordam com as narinas
espumantes os olhos fosforescentes
enlouquecidos pelo clarão do farol
e os seus horríveis lumes giratórios…
…
As ideais abandonadas esquecidas perdidas.
Postas
em estado de não prejudicar pela alegria e pelo prazer
As
ideias de cólera escarnecidas pelo amor de cor
As
ideias enterradas e aterradas comos os pobres ratos da morte sentindo
vir o espantosos naufrágio do Amor
As
ideias colocadas no seu lugar à porta do quarto ao lado do pão ao lado dos
sapatos.
As
ideias calcinadas escamoteadas volatilizadas desidealizadas
As
ideias petrificadas diante da maravilhosa indiferença dum mundo apaixonado
Dum
mundo reencontrado
Dum
mundo indiscutível e inexplicado
Dum
mundo sem bom-viver mas cheio de alegria de viver
Dum
mundo sóbrio e embriagado
Dum
mundo triste e alegre
Terno
e cruel
Real
e surreal
Terrificante
e divertido
Nocturno
e diurnos
Sólito
e insólito
Belo
como tudo.
Jacques Prévert
Tradução de José Saramago
Legenda: Jacques Prévert e Pablo Picasso
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